"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
23 junho, 2009
17 junho, 2009
Pauta de sílabas
Pauta de sílabas
Sou o vento das palavras, o método do pensamento, a riqueza da frase qualificada. Sou tudo isso na ordem simples e complexa do escrever, dizer, ou apenas construir, sempre que o sentir explode no bico redondo de um lápis ou de uma caneta. É a minha pauta, ou antes a consciência das letras. A minha pauta não é um pentagrama, não possui clave de sol, nem de fá. É uma simples linha branca que se tinge de maiúsculas ou minúsculas, qual fileira de bonecos de papel. Sou ainda e sempre ,a alma do pensamento. Cosem-me em mil regras morfológicas, sintácticas, semânticas e sei lá que mais. Sou despida, avaliada, pesada, medida, catalogada e arrumada As sílabas que assobiam, trincam, cantam ou suspiram fazem o meu tecto. As sílabas são os braços e as pernas do meu mundo. Juntas formam as palavras. As palavras derivadas, aglutinadas e justapostas tal como as vidas que vão definindo. As palavras que riem esticando as letras. Umas ficam longas, outras curtas, e outras rebentam. Explodem em rictus de dor, e aí há lágrimas, esgares e sofreres que se transformam em palavras-sombra, as que perseguem o caminho da vida. Há ainda as palavras-carrossel. “Mais uma volta, mais uma”, e as palavras riem em cima, em baixo, sob a música do gargalhar feliz. São as que alegram a vida. Há também as palavras-insípidas, aquelas que nascem, crescem e morrem sem deixarem recordações porque são soturnas e cinzentas. Palavras-vento são as que varrem os instantes e fogem correndo. Depois há ainda as palavras-vaidosas., as tais, as que são ditas com um rolar redondo de língua reproduzindo o tortumelo interior, são palavras escolhidas, quais canteiros formais de um jardim gizado em quadriculas de faz-de-conta. Em contraponto escondem-se as palavras-ascetas, aquelas despidas, fortes, mas puras .Às palavras ,vestimo-las todas ,desde as bonitas às cruéis, porque o mundo é porta escancarada de sentires complexos. As palavras-sábias, essas, coitadas, deitaram-se na letargia dos tempos e quando surgem apenas pontilham pequenos chapéus de pensamento.
Harpeja o vento sob o arco dolente , no ar, no redondo do mundo elástico e breve, o cordão de sílabas desenha-se.
A palavra nasceu. Chamaram-lhe arte.
Adagio in G Minor.mp3 - Albinoni
15 junho, 2009
02 junho, 2009
Memeando
Memeando…
Foi Selma Barcellos do " tia Selma "que me deixou entrar na roda e brincar ao Meme. Memear quer dizer repetir algo, seguir um modelo.
Regras da brincadeira: escolher um(a) cantor(a) ou um grupo; para cada pergunta, dar como resposta um título ou um trecho de suas músicas; repassar para outros blogs.
Porém dado que o Meme já atravessou o Atlântico optei pelos poetas em vez de um cantor(es).
Escolham pois. Miguel Torga teve a primazia, porém outros se seguiram... Agora é a vossa vez.
És homem ou mulher?
Descreve-te:
Quero ser um bom menino/ E guardar/Este segredo comigo E depois ter um amigo/ Que faça o pino/A voar...( Miguel Torga in Segredo)
O que as pessoas acham de ti:
Aberta a porta selada/Sou pensada já não penso/ Se a Musa fica calada/ Como dizer o silêncio?
Natália Correia in Como dizer o Silêncio
Como descreves teu último relacionamento?
Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio /E suportar é o tempo mais comprido
Descreve o momento atual de tua relação:
No mistério do sem-fim equilibra-se um planeta. E no planeta um jardim e no jardim um canteiro no canteiro uma violeta e sobre ela o dia inteiro entre o planeta e o sem-fim a asa de uma borboleta.
Cecília Meireles
Mundo à nossa medida/Redondo como os olhos, E como eles, também, A receber de fora/ A luz e a sombra consoante a hora.
Miguel Torga in Cântico
O que pensas a respeito do amor?
Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?
Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura.
O que é a tua vida?
Fernando Namora, in 'Jornal sem Data'
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O que pedirias se pudesses ter só um desejo?
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01 junho, 2009
AMOR
AMOR
Olhos abertos. Olhos bebidos. Olhos vividos. Olhos cansados. Olhos.
Mãos descarnadas, longas, engelhadas, manchadas. Mãos de suor. Mãos de luta. Mãos de amor.
Mulher.
Senta-se no canto do escano. Saia enrolada e blusa folgada. Avental a jeito bem enovelado. Lá escondem-se as mãos. Cansadas. Gretadas de amor.
O rosto é um pêssego seco de maduro. A boca morde-se por entre os dentes. Emoldura-lhe o traço aquele azeviche ponteado aqui e ali de riscos brancos, que teima em dançar sob o lenço de papoilas de sangue. A sua garridice. Nas orelhas, pendem lassos, os brincos enfiados nuns lóbulos já frouxos, há muito, do peso. Os ombros vestidos de chita cinzenta atraiçoam uns ossos escalavrados de fadiga. Vinca-se pelo meio, pela cintura ainda viva. Lá reside o laçarote do avental cinzento e riscado. Assim curvada espreita os chinelos. Estica o dedão, depois o outro, e o outro ainda, assim, num leque de dedos inchados.
Suspira.
E as mãos continuam arrecadadas dentro do avental enovelado, naperão da saia escura, que lhe veste as pernas magras.
As mãos.
Esfrega-as rolando-as entre si. Lenta e sofridamente. Sente-lhes as gretas ásperas. Liberta-as do avental, e poisa-as no regaço. Olha-as. E, então, suavemente, como se fossem pétalas acaricia-as. As mãos inchadas e gretadas a beberem carícias.
Sincopadamente rola os dedos. Tal como fizera com o dedão. Um leque de dó, ré, mi, fá, sol, lá si. E os dedos giram em pauta. Assim repetidas vezes. Quase um piano de contas balbuciadas. Aquietam-se sobre o riscado do avental. Olha-as. Uma lágrima. Redonda, doce, trémula quase, quase um pingo de beiral cai-lhe na palma da mão direita. Ergue o rosto e pisca os olhos aguados de lembranças.
Mãos macias de meninice, mãos doces embalando, mãos suaves mitigando, mãos férteis criando, mãos de trabalho semeando, mãos calejadas mondando, mãos amigas amparando, mãos de amor labutando, mãos felizes amando, mãos velhas acariciando. Sempre as mãos. As suas. A vida. A sua.
Mãos e vida. Mãos e olhar.
Benedita
Cruza os pés nos chinelos cambados. Olha o vazio da cozinha. O castanho da íris repousa. Um barulho lá fora fá-la pestanejar. Breve entrechocar de seda negra. Os músculos jazem inertes no rosto imóvel. Permanece solitária dentro de si. Nada a perturba. Depois as mãos movem-se descaindo do regaço. Caem laterais, desalentadas. Rolam pelo corpo como berlindes partidos. Impeçam na cadeira e ali ficam. Tremula o olhar em fugaz faísca. Um estilhaço de vidro frio calça-lhe o castanho da íris.
Benedita foi-se.
Benedita de mãos ásperas-doces e olhos rotos de amor.
Benedita passou por aqui.
Ave Maria (Violin Duet from La Corda dOro) - Schubert
29 maio, 2009
Testamento
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À prostituta mais nova,
do bairro mais velho e escuro,
deixo os meus brincos lavrados
em cristal, límpido e puro…
E àquela virgem esquecida
rapariga sem ternura,
sonhando algures uma lenda,
deixo o meu vestido branco,
o meu vestido de noiva,
todo tecido de renda…
Este meu rosário antigo,
ofereço-o àquele amigo
que não acredita em Deus…
E os livros, rosários meus
das contas de outro sofrer,
são para os homens humildes,
que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
esses, que são de dor
sincera e desordenada…
esses, que são de esperança,
desesperada mas firme,
deixo-os a ti, meu Amor…
Para que, na paz da hora,
em que a minha alma venha
beijar de longe os teus olhos,
vás por essa noite fora…
com passos feitos de lua,
oferecê-los às crianças
que encontrares em cada rua…
Lisboa, 1950
Alda Lara (Poemas – Obra Completa de Alda Lara, Editora Capricórnio, Lobito 1973)