(Tácito)
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(Thomas Hardy)
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"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
Herança
Parada no umbral, olha para dentro, vinda de fora. Está, assim, a meio do chegar antes de entrar. Há uma réstia de sol que lhe vem aquecer as pernas e o peito do pé esquerdo. O direito, embora mesmo ao lado, cobre-se já de penumbra. Olha para dentro, para aquela sala vazia cheia de memórias. Hesita. Entra ou sai? Recua instintivamente. Depois ergue o queixo respira fundo e dá um passo mergulhando na meia-luz do lugar.
Já no meio, roda sobre si perdida entre os mil objectos que a chamam. Dirige-se para o piano. Abre-lhe a tampa e, negligente passa os dedos longos pelas teclas. O som eleva-se díspar. Sacode-a. Franze a testa, o olhar poisa no quadro em frente. A avó perscruta-a do negro da tela. O azul claro do vestido de musselina amacia-lhe a expressão. Os olhos têm aquela característica única de verem sorrindo. A boca, cujas comissuras são pequenos semi-círculos, humedece uns lábios macios de polpa. Os cabelos, teimosos nos caracóis castanhos, emolduram-lhe o rosto malicioso onde o riso está subjacente ao olhar, nos lábios, na pele e nas rugas quase imperceptíveis do nariz e da testa.
Olha-a de novo. A avó sorri-lhe maliciosa e cúmplice.
Beatriz senta-se no cadeirão verde já desmaiado de tempo. Recorda a figura, muito vagamente, ou se calhar, apenas o que ouvira dela. Já nem sabe...Mas aquele sorriso, aquele sorriso prende-a. Pressente um segredo vencedor. Pestaneja aturdida. Por segundos pareceu-lhe que avó piscara o olho, sorrindo. Anda mesmo de todo. Ah, a imaginação está a deixá-la meia louca.
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Maria Alice olha-se no toucador. Está perfeita. Um chic suficientemente simples. Balança o pé no sapato fechado. O vestido florido dá-lhe aquele ar primaveril que lhe faz realçar os olhos tão verdes. Ajeita os caracóis que dançam na cabeça castanha. Ata um lenço que cruza na nuca. Não vá o vento despenteá-la. Pega na malinha e desce para a rua. A tarde amorna-se na luz do dia. Uma brisa, daquelas em que o vento suspira entre dentes, varre o ar. Maria Alice, ou antes, Alicinha aspira-o e, num passo elegante, tal qual as suas saias rodadas, caminha pela rua fora no balancé do seu andar elástico.
Chega ao destino O portão está encostado, abre a cancela e entra com aquele à vontade de quem conhece o caminho. Sorriem-lhe os olhos e a boca. Adivinha e suspira.
Entra. Fecha a porta suavemente com um simples toque de encostar. Uma penumbra fresca aligeira-a. Um cheiro a madressilva inunda-lhe as narinas. Sem hesitações dirige-se ao quarto da janela grande. Aquele onde a luz jorra pura. Na cama, uma figura de cera penteada de branco esgueira-se por entre os lençóis. Inclina-se beijando-a.
-Boa tarde, Mãe, como vai hoje?
-Vou indo. Estou cansada. Estava á tua espera.
-Sim mãe? Então o que se passa? Está sente-se pior?
-Nada disso. Tudo na mesma. Quero dizer-te algo. Muito importante. Vem. Senta-te aqui ao pé de mim. A mão aberta poisa na borda da cama.
Alicinha senta-se espalhando a roda de flores no leito triste. Suavemente recoloca uma madeixa de névoa que fugiu para o rosto de cera, acaricia-lhe as faces, e devagar, devagarinho prende-lhe as mãos frias.
-Então diga lá. O que é assim tão importante?
-Maria Alice olha-me nos olhos. Eu sei que o que se passa entre ti e o Júlio. Eu sei o que vos une. Eu sei. Desprende uma mão, afastando uma hipotética negação. Não, minha filha não te julgo, não posso, não devo. Ele também é meu filho, tal como o Manuel, o teu marido. Não, não te escondas, minha filha. Eu compreendo-te. Não me olhes assim Maria Alice, eu sei o que estás a sentir. Sou uma velha mulher a quem o peso da mentira sempre vergou. Não soube rir, nem beber a vida, porque me sentia culpada, porque carreguei sempre comigo o peso do meu segredo. Tive medo, aniquilei-me por cobardia. Não te vou deixar fazer o mesmo. Não, não vou. Promete-me que não haverá aviltamento, nem tristeza. Não haverá culpa, nem negação. Promete-me que olharás em frente, e aceitarás a tua escolha seja ela qual for. Que rirás da vida, porque ela te fez amar duas vezes de forma única e distinta. Que vais amar muito e sempre o teu filho. Ele carregará o nome desta nossa velha família. Não importa se é filho de Júlio ou de Manuel. Ele é e será sempre o teu filho, o meu neto. O nosso menino. Não te escondas, não vale a pena. Sabes? Soube-o sempre. Como? Sim, foste discreta e ele também. O Manuel também. Não esperes a exprobação do teu marido. Manuel é um ser especial, mas acima de tudo é um orgulhoso. Sim, Alicinha ele também sabe. Sempre soube. Eu conheço o meu filho mais velho. Conheço-lhe a alma e ao Júlio conheço-lhe o coração. Os meus dois filhos, a minha vida, dois ramos de mim.
-Oh, eu...eu...
-Não, não digas nada, nada há para dizer. Eu sei, minha filha o que sentes. Divides-te entre o dever e o sentir. Sentir e dever raramente se casam. São antes divórcio antecipado. Uma espécie de sabão com perfume de sabonete mas sempre com espuma de sabão. Percebi assim que vos vi. Compreendi quando te vi sorrir e o Júlio gargalhar. Confirmei-o ao ver as sombras no olhar de Manuel. Depois a cabeça loira de Lourenço é também o espelho do meu eterno segredo. Confesso-te minha filha que eu amei perdidamente o irmão de teu sogro, tanto que Júlio é seu filho. Percebes? Oh sim, também eu. Parece um látego que corre na família. Parece. Não sei se o é, ou se apenas nós mulheres buscamos o infinito quando estamos presas pelo finito. Sei que vives dividida tal como eu vivi. Amei o transcendente e vivi o terreno. Sei tudo, conheço a diferença, e muito mais, porque sou tão mais velha do que tu. Tão mais, que me acabo. Por isso, Alicinha, peço-te não te acobardes. Ama, sorri e vive Não vale a pena ser infeliz. Não, não me olhes assim, não estou louca. A lucidez alaga-me. Leio o teu conflito, avalio a tua dualidade, peso o teu sorriso na metade de uma gargalhada por brotar. É a vergonha, o pudor de ti. O corpo e a alma anseiam por tudo o que a mente se compraz em punir. Sei que amas o Manuel daquele modo de todos os dias, que o mundo impõe. Sei que adoras o teu filho e sei que Júlio é, a tua essência de mulher. A nossa desdita é amar demais. O desejo da plenitude...
-Mãe...eu...
-Não fales, escuta... estou cansada, muito. Tanto, tanto. Mas promete-me, promete-me: Ama -os, ri, cresce e gargalha, trinca a vida, bebe-a, sorve-a, não deixes que ela corra ao teu lado como uma miragem. Rasga-a em trapos de desejo, ata-a em redor de ti, enlaça-a junto ao coração, mas não passes por ela sem a usares. Não finjas o que não sentes nem sintas o que não tens. Não acredites nas palavras porque elas são as máscaras do sentir. No fundo de cada olhar está a alma. Lê-a e depois decide. Agora vai. Deixa-me. Não digas nada. Vai...vai...
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Beatriz sente de novo aquela sensação esquisita. Alguém que não vê mas que pressente Não é a sua imaginação. Abana a cabeça. Tão simples.
A avó. O látego. Ela.
Beatriz levanta-se. Agita a cabeça fulva e olhando de espírito aberto para a mulher que lhe sorri maliciosa por entre o azul da musselina e o verde do olhar, murmura:
-Obrigada avó. A tua herança chamar-se-á Maria Alice.
Murmúrios
Dorme o monte embalado no vento do tempo. Dormem as gentes no aconchego morno dos corpos. Há prece muda nos sinos ensonados. Encarrapitada, lá no cimo, a aldeia dorme. Agasalha-se nas suas ruas estreitas calçadas de xisto, sempre que a melodia sibilina assobia por entre os dentes de pedra. É a ladainha agreste da voz do mundo.
Foi por ali que calcorreei os caminhos de pé nu ou bota gasta, que vesti as calças de alças e remendos. As costas das mãos foram o linho que me secou, as pedras calejaram-me os pés, a terra, mole e fremente vestiu-me as pernas e o rosto de poalha fina. Foi assim que cresci entre os homens e os outros bichos numa terra nua de poesia que quer as letras quer as aguarelas teimam em enroupar.
É essa terra, a matriz, cuja alma se desfia sob os meus pés cansados, que eu oiço no calcorreio dos campos, ou quando adormeço no crepúsculo do dia. Oiço-a quando a noite desliza nos campos drogados de adubo. Foi esta a terra que me moldou, qual pedaço de barro desterroado por pés convulsos de labuta. Paro no alto, junto da oliveira prenhe de fruto. O vento traz-me aquele ciciar macio que me estremece. Dobro-me. Atordoa-me a força que se desprende, o hálito que me envolve. Sinto-me zonzo. O húmus das suas entranhas é demasiado forte. Já não lhe pertenço como outrora.
A memória devolve-me a sua cantilena das tardes quentes, era então, assim, que eu a escutava:
“Sou a erva-fina, o cheiro húmido que lava o sentir. Sou a flor miúda, amarela vinagreira que brota nos dias húmidos quando o sol resolve preguiçar. Sou a semente do mundo que germina humilde sob a capa que me vestem, borrifam-me as chuvas, pisam-me os pés, exaurem-me as bocas, amaldiçoam-me os sóis e os ventos, debicam-me as aves, sugam-me os répteis. Mas eu sou a Mãe, o útero do Mundo.”
Cresci nesta melopeia de sentires, entre o tempero do corpo e a forja do espírito. A terra, a aldeia, foi o meu berço. A voz do vento, o odor húmido da terra, o espaço em declive folheado de vinhedos, o rio lá em baixo manso e liquefeito de tons embebedou-me sempre a razão. Há neste pedaço de mundo uma magia tal que faz a Gente crescer para lá do corpo. Casa rude de traços ásperos e janelas abertas onde as paredes xistosas deixam aninhar o vento do destino. Eis a fachada onde mora o sentir. Barro, xisto, água, semente, vento, sol, chuva e labor germinam o telúrico de um povo.
Subo a estrada estreita retorta pelo xisto que se ergue nos taludes socalcados da vinha. Lenta e deliberadamente aspiro a poalha da terra me envolve. Sinto-a no rosto, respiro-a Aquele sabor a terra forra-me a língua, cuspo na estrada estreita. Cuspo mas o sabor fica. Engulo. Sinto o estômago acre. Arranho-me interiormente, porém a mente está lúcida. Há uma clareza invulgar neste subir de estrada. Sei o que me empurra, visiono o meu destino. Antevejo o meu percurso.
Há uma força, uma voz que me empurra estrada acima, que me impele mais além. E o murmúrio do vento cada vez mais perto. E subo, subo arrastando-me contra a fúria que em meu redor sibila cuspindo a golfadas de ar que entram a jorros pelas portas do meu corpo. Ferem-me, cortam-me mas lavam-me a alma. E continuo subindo, subindo. Está quase, quase. Lá em cima no ermo, no monte vazio a razão espera-me.
Até lá a Terra Mãe protege-me. Assim seja.
Les Petits Chevaux de Tarquinia
Sous la chaleur écrasante d'un petit village d'Italie, au bout d'une route, au pied d'une montagne au bord de la mer, deux couples passent des vacances comme chaque été. Gina et Ludi, Jacques et Sarah et leur enfant , ainsi que d'autres personnes qui gravitent en électrons libres : Diana une amie ; la bonne indisciplinée et son douanier ; Jean aussi, l'homme au bateau que nul ne connaît. Ils se baignent, discutent, mangent le sempiternel menu infâme de l'hôtel, sirotent d'innombrables bitter camparis, transpirent, se déchirent, se trouvent parfois, s'ennuient beaucoup, portés par la routine de leur indolence quotidienne. Dans la montagne, au-dessus du village, un jeune homme a sauté sur une mine. Ses parents sont venus récupérer les morceaux dans une caisse à savon. Ils veillent là-haut, le temps de faire un deuil qu'ils ne parviennent pas à accepter. L'épicier du village leur tient compagnie avec des histoires vraies et rêvées qui lui permettent de tenir debout.
Un roman figé dans une torpeur accablante de chaleur où l'oisiveté est la seule occupation. On s'ennuie ensemble, on partage ses solitudes, on affronte en palabres vides des amours larvées qui s'étouffent, se cherchent pour les uns dans l'adultère, pour d'autres dans la liberté d'un voyage à Tarquinia. Le désir d'amour est au centre de l'œuvre, de chaque vie surtout féminine, si différente et si commune. La représentation qu'elles ont de l'amour, des relations amoureuses. La torpeur est source de dépouillement. Elle ramène chacun aux fondements de son être, aux assises de son existence : le désir, le manque, l'amour, la reconnaissance de son existence, le sentiment d'exister. Elle est déréliction. Que faire de soi et de la liberté ? Qu'être sans l'amour de l'autre ? L'amour absolu étant impossible, il n'empêche que le désir d'amour ne connaît pas de vacances. Il est une source de conflit latent et peut mal vieillir. Seul l'amour maternel échappe aux questionnements et redonne sa place à l'amour de l'homme.
Ces histoires bercent comme un chant, une litanie où ne subsistent que des mots récurrents qui tendent à dégager une atmosphère lourde et pesante. Marguerite Duras déploie ce style si particulier qui cultive l'ellipse, l'ambiguïté et l'intuition. Les événements et les décors sont dorénavant réduits au minimum et le dialogue, direct ou indirect, devient un élément fondamental. Les hésitations, les reprises nombreuses, les répétitions permettent d'insérer des zones de silence qui se rapprochent de la vérité de personnages incomplets, incertains. Ce niveau d'abstraction et la large ouverture de l'écriture au dialogue, y compris ses absences, ont facilement permis le passage des oeuvres au théâtre et au cinéma. "Marguerite Duras accepte crânement la tragédie de son sujet sans jamais s'en laisser accabler. Ce livre est un roman de ressources. Il éclate de richesse et, dans cet éclatement même, se contient. Les personnages y sont précipités dans une cruauté qui ne dément pas et qui, pourtant, les laisse entièrement libres de leurs choix. Comme de leur exigence. Ce parti pris peut déplaire à certains. A moi il apporte la joie précieuse d'une lecture om les mots vont toujours plus loin que le masque de leur sens extérieur, où le sous-entendu, où le suggéré sont à ce point cursifs que l'apparence est d'autant plus ombreuse et d'autant plus prodigue de mystère qu'elle se veut plus linéaire."
Raymon Guérin in Humeurs.
CANTAR A LIBERDADE
«Trova do Vento que Passa»
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.
E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
Manuel Alegre