CADEIRÕES
Três cadeirões. Três. Três madeiras diferentes. Três estofos distintos. Três estilos. Nogueira, Carvalho e Faia. Algodão, Cabedal e Courtisane. Sentam-se desencontrados. As pernas revelam-se, escondem-se, ou ignoram-se consoante o design. A postura é altaneira. Estão irrepreensíveis. Têm o ar da compostura necessária à hierarquia que sentam. O padrão resvala do florido pastel, para o branco intemporal, mas frio. Em permeio fica o castanho robusto da pele. Gretas de idade assomam-lhe nas esquinas. São peças diferentes sentadas no soalho polido de uma sala, algures, numa casa sem paredes.
A de Nogueira, mais antiga, sólida, de recorte elegante e traço simples, revela os nós do tempo no pedaço redondo de madeira polido que lhe serve de braço, e, nas pernas recurvadas que poisam no soalho. O vigor senta-se em ângulos quase redondos, devassando a amenidade dos anos. Tem história esta cadeira, tem experiência, tem alma. Ao lado, mas numa posição quase de costas, senta-se a de couro. É a maior, a mais imponente. Não necessita de grandes adjectivos, a sua solidez fala por si. Pode ter um pouco de sebo, frestas e manchas. Pode ter tudo isso, mas é o cadeirão. É o género.
No outro lado, à direita, fremente nas linhas minimalistas, pese a solidez da forma, senta-se a Faia vestida de Courtisane branco. Quem entra, vê-a primeiro. A sua luminosidade cativa. O ranger melodioso das suas molas conta poucos anos. O uso ainda não a adoçou.
Três cadeiras. Três estilos.
Cabedal, Courtisane e Algodão.
Três formas, três padrões. Três estofos. Um trio dissidente na percepção estética. Um arranhar de policromia, mais, um risco fundo na harmonia da sala sem paredes. Um feixe de luz atravessa a janela e vem adormecer no soalho frio, espevitando as cadeiras que silenciosas carpiam os seus pensamentos ou entretinham as suas estratégias.
O cadeirão de algodão florido, aquele, o mais idoso e macio, suspirou, afastou as pregas da sua saia, que lhe tapavam as pernas, e murmurou:
- Amanhã vai chover, sinto-o nas molas!
-Pois é, os anos, os anos, não perdoam… já são muitos, responde-lhe o cadeirão de cabedal, acrescentando um meio-sorriso às palavras que veste sempre de ironia.
-Pois será.
O silêncio desce de novo. No entardecer dolente ,o cadeirão de nogueira florida semi-cerra as flores ,e recolhe-se ao seu silêncio. O cadeirão de cabedal permanece alerta, mas revestido da sua bonomia de macho. Relança um olhar, e, contente de si, semicerra, também, as pálpebras. Uma modorra prazenteira senta-o descansadamente. A certeza do aleatório crepita no recôndito das entranhas. Gosta de vestir a sua importância ,pese a insegurança ,que o envolve. Uma capa que lhe cobre as entranhas dando-lhe um ar que não possui. A forma em contradição com a essência. A estruturação do desestruturado.
Fremente nos raios finais de luz, a Faia lança um gargalhar nervoso, talvez para se acordar, talvez para recordar a sua presença, talvez, quem sabe, para quebrar a melopeia das ideias caladas. Ambos cadeirões soerguem-se, endireitando as costas e olham-na inquisitivos. O que será agora?
Rapidamente num esgar de tempo, a Faia desfia um rosário de considerandos ao tempo, ao dia, à vida. Quase um muro de reclamações na primeira pessoa. Depois recolhe-se, de novo, na importância do seu estofo de Courtisane. Fervilham-lhe as ideias que pensa serem únicas, acertadas, maduras. A sua sabedoria carece de anos, tal como o seu estofo carece de uso.
O silêncio desce dando as mãos à penumbra. Vão sentar-se nos cadeirões mais velhos.
Logo a noite cairá ,e os fantasmas do ontem, das palavras por dizer, se aninharão por entre os espaços soltos. Depois o vento virá deitar-se nos estofos ciciando a história inerte dos dias. Tudo acabará por adormecer na paz doente do tempo.
Outrora, aquele espaço possuiu paredes, janelas e risos. Resmungos, arquejos, choros e silêncios. Outrora fora casa. Casa de argamassa, alvenaria e alma. Uma casa igual a tantas outras ,perdida numa cidade ,algures no mundo. Os inquilinos tinham sido gente. Gente viva e não esquissos retocados em poses de bem-estar.
Porém, um dia a casa fechou. Despiu-se.
Os anos comeram-lhe as entranhas. As raízes invadiram os vidros, engoliram-nos e avançaram. Avançaram.
A casa pereceu e o seu espírito também. Apenas restaram os cadeirões. Epitáfios perdidos de outras vidas, consciências escondidas da verdade. No seu recôndito guardaram as memórias dos tempos felizes.
Quando eram sentados, amassados ou repuxados sob o peso dos corpos que os sentavam. Quando no trejeito das palavras ouviam a história da vida que por ali corria. Era, então, o tempo do semear. Semeava-se o sorriso por entre os sulcos do sentir. Era assim naqueles dias.
Chorava-se quando morria alguém ,ou simplesmente ,quando um cisco de dor magoava as pupilas. Quando as crianças se arranhavam, zangavam ou gritavam, o ar compunha-se em chuvadas de palavras. Era assim o tempo de então.
Depois, depois ,as vozes foram amaciando ou engrossando. Foram partindo. Partindo.
Os cadeirões descansaram. O piano calou-se. As conversas fugiram.
O silêncio tal como o vento tomaram conta da casa. Mais tarde ,foi tempo da tristeza , das caixas pesadas, dos olhares sem luz, das olheiras roxas. O adeus.
E a casa ficou mais vazia.
E os cadeirões foram ficando. Imutáveis na forma, carpindo o tempo, procurando um lugar na ribalta dos dias. A dança da vida parou, calou-se. O espaço é agora total, o desígnio inexistente.
E o estribilho do vento, qual melodia inacabada do tempo sibila por entre os espaços vazios de memória. A crueza do vazio, a falácia da harmonia numa sala vazia de paredes.
O Mio Babbino Caro From "Gianni Schicci" - Jeanne Newhall.