"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
14 janeiro, 2009
O prémio tem regras, iguais a todos os outros, mas.....(risos) há sempre um mas
deverá ser atribuido só a mulheres:
- copiar o prémio e colar no seu blog
- fazer referência do meu nome e colocar o endereço do meu blog
- presentear seis Mulheres cujos blogs sejam uma inspiração para si
- deixar um comentário nesses blogs para que saibam que ganharam o prémio
Aqui vão seis, poderiam ser tantos mais, por ora serão estes...
blog Aguarelas de Turner
blog Árvore das Palavras
blog Fio de Ariadne
blog Voando Por aí
blog Repensando
blog Não há rios iguais
01 janeiro, 2009
Pai,
Escrevo-te porque não posso dizer-te, suspiro as palavras porque já não as posso dirigir. Neste vai e vem de sílabas não ditas, arrecadadas, sentidas, fica o tempo. Esse tempo que me cobriu de saudade e de dor fina. Aquele esguicho que corrói de mansinho, mareja os olhos e purga a alma. Aquele retrato que perpassa na moldura dos dias, cujas portadas batem sincopadas nas paredes dos sentidos. Não, não é a imagem, a sépia, que se depara ante os meus olhos, é o teu rosto móvel, sentido, a alma de ti que eu amei e recordo. Essa força, qual mola vinda das entranhas, que te fazia ora conversador apaixonado ora ensimesmado e dorido, a gema áspera da vida que te feriu e te moldou assim mesmo. No encanto de um momento, ou no espasmo gutural de um sentir. Não foste sépia, para ti escolho as cores vivas de um Matisse e as pinceladas febris de um Van Gogh, visto-te de Renoir e oiço-te em dias felizes na paleta de um Turner e nos outros sombrios e duros de Lautrec.
Pai.
Um ano, um tempo, um sentir, uma mágoa.
Na gaiola aberta do tempo roçam os sentires que tantas vezes ficaram por mostrar. Treme o corpo, humedece o rosto, e dentro, bem dentro, junto à alma fica a dor, aquela dor triste por se ter perdido o tempo de mostrar o sentir. Porque partiste, e porque o pudor dos afectos se esvaiu, agora, consigo dizer-te as palavras que não ousei e calei.
Amo-te, Pai.
Um ano, um tempo.
Partiste Pai.
Não sei onde estás.
Acredito, porque me ensinaste a Acreditar.
Acredito porque existo, porque sou pedaço de carne e alma vinda de ti, porque sou repositório de sonhos e esperanças falhadas ou concretizadas. Porque sou um dos teus ramos. Talvez o mais descarnado. Aquele que se vergou mais ao tempo e à vida. O ramo primeiro. Aquele ramo, a quem tu ensinaste a olhar para além da forma. Usavas palavras simples mas que temperavam a minha imaginação. Não, não eram o sal do mundo. Não, eram palavras para uma criança, para mim. Memória macia da minha infância. Segredos passados no côncavo de uma mão pequenina dentro de outra mão. A tua, Pai.
Não sei precisar no verbo o tom rebuscado do sentir, porque sou tão simplesmente filha. Não sei, apenas ouso relembrar-te tal como te sinto, Pai. Não burilo na dor contornos vivos, não sei amar assim. Não possuo o arroubo da paixão nem o descrédito do desamor. Só sei que me faltas, sei que os meus dias são incompletos, sei que no cinzento das tardes estás presente, sei também que em cada alba te lembro, que o hoje não é igual ao ontem, e que o amanhã será diferente. Sei que, nas minhas mãos agora vazias pingam as palavras nunca ditas. Sei que a pátina veste o tempo, mas que a tela bordada de memórias vivas é intemporal. A tela que me deixaste é a mais doce obra de arte. Chama-se “Vida”. Coloquei-a naquele quarto onde a janela se abre para o mundo, perto das paredes da alma.
Pai.
Obrigada.
30 dezembro, 2008
26 dezembro, 2008
ALVA
Alva senta-se no rodado da saia. O frio que lhe atiça as coxas recorda-lhe as palavras gélidas ainda vivas no papel da carta que acabou de reler. Tanto tempo sem saber dele e agora, assim de repente, tudo e nada.
Diz quem escreveu que falecera.
Talvez.
Alva abana a cabeça, incrédula.
Outros tempos, outras terras. Outras cores. Fora há muitos anos. Tantos que decidamente quase se esquecera do contorno do seu rosto. Era tempo de amor. Quando o calor aquecia o corpo, mais os sentidos.
Alva dos Santos.
Que tempos aqueles. Quase olvidara como fora. O tempo tem sempre destas coisas, lava. Lavara-lhe os desejos, apagara-lhe as memórias. Agora recorda. Sente uma tremedeira que há já muito esquecera. A carta. Maldição. Um desvendar de coisas que julgara sepultadas. Não sente saudades. O passado deve ficar por lá. Já fora joeirado. Depois dançado e iluminado de fogo.
Fora num tempo de verão. Quando as amoras refulgiam de pesadas por entre as silvas. Fora quando o pai fizera aquela promessa ao Santo Patrono a propósito das sezões da Lila. Lila era a irmã do meio. Nascera assim fraquinha, e, depois sempre que o verão apertava, a coitada rebolava os olhos, empalidecia, e zás. Caía. Assim pró chão. Desabada. O Chico das Mós, homem de boas promessas e trabalho, empenhou-se a fundo, arrastando toda a família. Alva era moçoila feita por essa altura. Moçoila bonita, muito mesmo. Alva como o nome. Toda ela vibrava. Tinha namoro. Tinha. Até já lá ía a casa, isto é ao pátio, que o pai não era de modernices.
Mas o sofisma da vida, fez que o destino lhe trocasse as rédeas. Jorge Feitor. Ai, ainda lhe rói o nome. Bem-apessoado, bem-falante, bem jeitoso. Tudo bem e bom. Lá foi com o pai até à igreja, à sacristia. Trataram da promessa. Os olhares enviesados que entretanto se iam dando. Os calores. Os sobressaltos. O pai não viu, não reparou. Também fora discreta. Só pelo rabo do olho se encontrarem naquele espaço de cheiro a sabão e cera. Tão lavado e engomado que sabia a pecado só olhar.
Mas naquela noite, deitada na alcova, lado a lado com a Lila que gemia, Santo Deus como aquela alma gemia. Enquanto Lila gemia, e estrebuchava de mansinho, ela rebolava a carne no ardor do cheiro que lhe ficara. Cera e sabão. Decidiu no dia seguinte visitar a igreja. Fazia-o ao domingo com a família. Nunca se apercebera como era bonito! Também de longe e no meio daquela sotaina toda. Pouco tinha para ver. Ah, amanhã ía lá. Tinha que ir.
Levantou-se com os pardais mais o desejo.
Na cozinha encontrou a mãe. Aquela criatura nunca devia dormir. Era a última a deitar-se, ouvia-a de noite, e de manhã já estava de pé. A mãe. Sempre pressentiu nela, mais do que corpo e alma, uma espécie de oráculo de tristeza. Nunca se lembra de a ter visto gargalhar. Os olhos enormes, fundos, as olheiras. Um rosto liso e inexpressivo, mas meigo. A bondade vestia-lhe a pele. Era assim a mãe. Serena ou alheada? Nunca percebeu bem.
.-Ó Alva já a pé? O que te aconteceu?
-Nada, mãe. Não tinha sono. Fez muito calor de noite.
-Estamos no tempo dele., minha filha.
-Ó mãe, como o pai me pediu para tratar do assunto do patrono, levantei-me cedo para ter tudo em ordem e depois ira até à igreja.
-Ah, mas o pai e tu já não foram lá?
-Já mãe, mas sabe como é, há sempre coisas pra fazer…
E fora assim. Visita hoje, encontro amanhã, recado depois. Batina rolada, saia caída e… o mundo mais as rezas, promessas, cera e sabão, tudo desfeito na erva do campo, na alcova por detrás da sacristia. No quarto caiado de branco com o crucifixo na parede. A mudança vestiu-a de mulher. Sabia o quer queria. Não pensava em desistir. Nem Jorge. Como era bom amarem-se. Como se sentia plena. Mesmo quando o cheiro a sabão e cera se misturavam e o olhar do crucifixo a ponteava. Não havia sentimento de culpa. Ela amava um homem. Só isso. Podia durar, queria que durasse. Mas também, não podia.
Era aquele tempo.
Mas, as histórias têm sempre um mas, a Lila, a irmã, a menina das sezões, a doentinha, a tadinha. Não era parvinha, não era, não. Fazia-se. Convinha-lhe. Ameaçou-a. Disse que sabia de tudo. Que a tinha visto. Que a seguira. Que ia dizer ao pai. Que o homem era o padre. Uma vergonha. Uma desgraça.
Alva suspirou.
O último reencontro não foi fácil. Foi de despedida. Não pediu nada, porque nada havia para pedir. Não chorou, porque tinha rido. Não o recriminou. Não tinha que o fazer. Porém, não sentia vergonha, nem asco, nem nada. Apenas estava saciada. Toda. As carnes vibravam, alvas e deleitadas. O resto estava sereno. Tudo.
O seu episódio de vida nunca fora um paralogismo, mas antes o mais puro realismo ideal.
O frio da pedra acorda-a para as palavras.
Levanta-se, entre dentes murmura, enquanto amarfanha a carta. “Ser é ser percebido” foi sempre o que eu quis. Foi tudo o que eu quis.
Act 1 La Traviata: Libiamo, nelieti calici (Brindisi - Inessa Galante
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19 dezembro, 2008
Uma filhós
Uma filhós...
Abre a bolsa. Está minguada. Apenas umas moeditas lá dormem. Volta a fechar e aperta-a contra os dedos. Maldito dinheiro. Sempre se some, nunca leveda, nunca. Pelo menos para ela. E o Natal que se aproxima. O pequeno já lhe anda a pedir uns patins em linha. E não se cala. Todos os dias a ladainha é a mesma:
“-Portei-me bem, não portei? O pai Natal vai dar-me os patins, não vai mãezinha?”
Claro que ela diz que sim, claro que ela lhe diz que tem que continuar a portar-se bem. Claro que sente um nó na garganta, quando poisa o olhar, nos outros olhos, ainda puros. Claro que sorri, sorri sempre. É a forma mais simples de sanar o impossível. Maldito dinheiro. Vida sem tino.
Todas as manhãs levanta-se às cinco da manhã. No seu pequeno apartamento, pequeno, porém grande na altura de pagar a renda, mais a água, mais a luz, respira-se o frio e o escuro da madrugada. O clarear tímido passou ao lado, para a janela da frente, do outro, a do vizinho. O seu, o do canto, o mais económico, só vê luz lá pelo meio-dia. É escuro e húmido. É o que pode ter. Uma cozinha, dois quartinhos, uma casa de banho e uma salinha. Tudo e tão pouco. Mas chega-lhe. É simples e gotejado. Parece que escorre sempre. Nas madrugadas líquidas de Inverno a água perpassa pelas costas e aloja-se-lhe na alma. Um arrepio. Levanta-se. Enfia os pés nos chinelos. O dedão espreita. O tecido espirrou de puído. Imperceptivelmente encolhe o dedo. Olha para baixo. Abana a cabeça de caracóis ruivos. Muito.
Uma espécie de labareda veste o espaço. É a luz que a madrugada teimou em roubar. Já de pé coça os caracóis como se estes lhe atrofiassem os pensamentos. Mais um dia, mais uma rotina. Arranja-se. Depois, já com o sol nos lábios vai até ao quarto do seu menino. Dorme tão docemente, o seu rapazinho. O rostinho está rosado do calor dos lençóis, os caracóis sedosos espalham-se na testa. Chama-o de mansinho.: -“Pedro, Pedrinho, querido…”
Volta-se sonolento, rebola os olhos, chucha na língua e resmunga: -“Hum…só mais um cadinho…tá quentinho.”
Ela senta-se na borda da cama, afaga-lhe o rosto e sorri no amor de mãe, murmurando:” - Mais cinco minutos, Pedro, só mais cinco minutos.”
E fica ali a amá-lo. Tão só com o olhar e o sentir.
Tão só, como se fora pouco.
E o Natal que chega daqui a dias. E o dinheiro que não leveda. E os patins do seu menino. As pálpebras obedecem ao ritmo do pensamento abatendo-se sobre o olhar verde e lindo. Uma menina grande e dorida vexada na imensidão do seu amor de mãe. O querer dar sem ter. Os olhos enevoam-se de estrelas de água. De novo abana o seu Pedro. Lá fora, o dia pesponta preso em teias de labuta. Há que o seguir.
-Mãezinha, quantos dias faltam para o Pai Natal?
-Faltam doze dias, Pedro.
- Sabes mãezinha já escrevi a carta a pedir os patins. Ele vai mos dar, não vai? Portei-me bem, não portei, mãezinha?
-Sim Pedro. Talvez, o Pai Natal pode estar muito ocupado. Sabes há muitas cartas. E se por acaso, a tua, se perde? Já pensaste? Pode acontecer.
-Pode? A Rosa disse-me que o Pai Natal faz sempre a vontade aos meninos que se portam bem.
-A Rosa, disse isso?
-Sim, mãezinha.
-Pois, lá deve saber, então
Ah! Então vou ter os meus patins, não vou. Ah vou, vou…Ah, mãezinha que bom!
-Vamos ver, vamos ver, Pedro.
Deixa-o na creche e corre para o comboio. Tem que atravessar a ponte, logo apanhar o metro. Pega às oito em ponto. Até às cinco e meia. Hoje é daqueles dias longos. Arranjou um extra no restaurante. Vai ficar até às onze. A Rosa, a amiga, vai buscar o Pedrinho. Está descansada.
Este trabalho veio mesmo a calhar. Oxalá lhe paguem para poder comprar os patins, e mais umas coisitas. Bolas, afinal é Natal. A vida é um alcatruz de nora. Tem tanta esperança quanto desengano. Uns pegam no princípio, outros no fim. Ela agarrou no fim. E a vida escreveu-se-lhe assim de páginas voltadas.
Já na cozinha de avental bem assente, touca e luvas descasca as batatas. A faca desenha a espiral certa, que solta, se despenha no caixote. Mais uma, e outra, e mais, e mais. Vai ser assim durante a próxima hora. As espirais dos seus sonhos na ponta de uma faca, caindo no fundo do caixote. Levanta a cabeça. Toma o ar altaneiro que lhe pertence. Daqui a pouco vai ter que bater as filhós. É a sua especialidade. Saem-lhe fofas e túrgidas. Um deleite de sabor. Assim o dizem.
Entranha as mãos na massa, aperta-a, espreme-a, depois alisa-a, bate-a em golfadas de prazer e dor. A força da sua vida num rolar de punhos adentro. Tende-a ainda liquefeita. Uma teia fechada. Estica-a. Ainda não está. Enfia as mãos com força, com ardor, com raiva e doçura. Com os ingredientes do sentir. Uma vez e outra, mais outra e outra ainda. Assim repetida e vorazmente. A massa borbulha. Abre-se. Em bolhas que rebentam em ais de satisfação. Está pronta para crescer. Uma manta a enrolar o alguidar. Vai levedar. Logo estará mais leve, se possível mais fofa ainda.
Tira o avental enfarinhado que joga para o cesto, alisa a bata. Já na casa de banho, humedece o rosto onde pérolas de suor fizeram os sulcos de cansaço. Está fresca. Maquinalmente olha-se ao espelho. Lá está a cara pálida com uns olhos enormes e uns cabelos de labaredas, teimosos e encaracolados. Ah, como gostaria de ser comum. Olham-na sempre. Os cabelos são tão esfusiantes não têm nada a ver com o seu estado de alma. Mas enfim, a mãe natureza teve destas coisas. Tem que viver com o que tem. Uma enormidade. Pensa que tudo está ao contrário. O calor gelado da sua vida. O desamor feito colar que lhe cinge os sentidos.
Compõe a toca, coloca um avental lavado, olha o relógio. Dirige-se para o alguidar, levanta a manta no canto. Espreita a massa. Lá está ela lêveda. Soberba! Vão ficar boas as filhós. Um tacho, borbulhas de óleo quente, massa que rebola e dança, um prato de açúcar e canela para o enfeito de cor e doce. Eis as filhós. Logo, logo estarão à venda. Quentes e doces.
Dez dias de filhós. Quentes e doces.
Um alguidar de massa, mãos sentidas de dor, raiva batida, esticada. Suor e rubor. Tempo e alento. Fé. No amanhã que se desenha e mais um gesto de amor. Uns patins.
………………
-Mãezinha, mãezinha! Grita a criança.
-…?
-O Pai Natal, O Pai Natal lembrou-se de mim!
-…!
-Mãezinha estou tão feliz!
Santa Clause is coming to town -