Shaw , Bernard |
.
"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
Partiste Pai.
ALVA
Alva senta-se no rodado da saia. O frio que lhe atiça as coxas recorda-lhe as palavras gélidas ainda vivas no papel da carta que acabou de reler. Tanto tempo sem saber dele e agora, assim de repente, tudo e nada.
Diz quem escreveu que falecera.
Talvez.
Alva abana a cabeça, incrédula.
Outros tempos, outras terras. Outras cores. Fora há muitos anos. Tantos que decidamente quase se esquecera do contorno do seu rosto. Era tempo de amor. Quando o calor aquecia o corpo, mais os sentidos.
Alva dos Santos.
Que tempos aqueles. Quase olvidara como fora. O tempo tem sempre destas coisas, lava. Lavara-lhe os desejos, apagara-lhe as memórias. Agora recorda. Sente uma tremedeira que há já muito esquecera. A carta. Maldição. Um desvendar de coisas que julgara sepultadas. Não sente saudades. O passado deve ficar por lá. Já fora joeirado. Depois dançado e iluminado de fogo.
Fora num tempo de verão. Quando as amoras refulgiam de pesadas por entre as silvas. Fora quando o pai fizera aquela promessa ao Santo Patrono a propósito das sezões da Lila. Lila era a irmã do meio. Nascera assim fraquinha, e, depois sempre que o verão apertava, a coitada rebolava os olhos, empalidecia, e zás. Caía. Assim pró chão. Desabada. O Chico das Mós, homem de boas promessas e trabalho, empenhou-se a fundo, arrastando toda a família. Alva era moçoila feita por essa altura. Moçoila bonita, muito mesmo. Alva como o nome. Toda ela vibrava. Tinha namoro. Tinha. Até já lá ía a casa, isto é ao pátio, que o pai não era de modernices.
Mas o sofisma da vida, fez que o destino lhe trocasse as rédeas. Jorge Feitor. Ai, ainda lhe rói o nome. Bem-apessoado, bem-falante, bem jeitoso. Tudo bem e bom. Lá foi com o pai até à igreja, à sacristia. Trataram da promessa. Os olhares enviesados que entretanto se iam dando. Os calores. Os sobressaltos. O pai não viu, não reparou. Também fora discreta. Só pelo rabo do olho se encontrarem naquele espaço de cheiro a sabão e cera. Tão lavado e engomado que sabia a pecado só olhar.
Mas naquela noite, deitada na alcova, lado a lado com a Lila que gemia, Santo Deus como aquela alma gemia. Enquanto Lila gemia, e estrebuchava de mansinho, ela rebolava a carne no ardor do cheiro que lhe ficara. Cera e sabão. Decidiu no dia seguinte visitar a igreja. Fazia-o ao domingo com a família. Nunca se apercebera como era bonito! Também de longe e no meio daquela sotaina toda. Pouco tinha para ver. Ah, amanhã ía lá. Tinha que ir.
Levantou-se com os pardais mais o desejo.
Na cozinha encontrou a mãe. Aquela criatura nunca devia dormir. Era a última a deitar-se, ouvia-a de noite, e de manhã já estava de pé. A mãe. Sempre pressentiu nela, mais do que corpo e alma, uma espécie de oráculo de tristeza. Nunca se lembra de a ter visto gargalhar. Os olhos enormes, fundos, as olheiras. Um rosto liso e inexpressivo, mas meigo. A bondade vestia-lhe a pele. Era assim a mãe. Serena ou alheada? Nunca percebeu bem.
.-Ó Alva já a pé? O que te aconteceu?
-Nada, mãe. Não tinha sono. Fez muito calor de noite.
-Estamos no tempo dele., minha filha.
-Ó mãe, como o pai me pediu para tratar do assunto do patrono, levantei-me cedo para ter tudo em ordem e depois ira até à igreja.
-Ah, mas o pai e tu já não foram lá?
-Já mãe, mas sabe como é, há sempre coisas pra fazer…
E fora assim. Visita hoje, encontro amanhã, recado depois. Batina rolada, saia caída e… o mundo mais as rezas, promessas, cera e sabão, tudo desfeito na erva do campo, na alcova por detrás da sacristia. No quarto caiado de branco com o crucifixo na parede. A mudança vestiu-a de mulher. Sabia o quer queria. Não pensava em desistir. Nem Jorge. Como era bom amarem-se. Como se sentia plena. Mesmo quando o cheiro a sabão e cera se misturavam e o olhar do crucifixo a ponteava. Não havia sentimento de culpa. Ela amava um homem. Só isso. Podia durar, queria que durasse. Mas também, não podia.
Era aquele tempo.
Mas, as histórias têm sempre um mas, a Lila, a irmã, a menina das sezões, a doentinha, a tadinha. Não era parvinha, não era, não. Fazia-se. Convinha-lhe. Ameaçou-a. Disse que sabia de tudo. Que a tinha visto. Que a seguira. Que ia dizer ao pai. Que o homem era o padre. Uma vergonha. Uma desgraça.
Alva suspirou.
O último reencontro não foi fácil. Foi de despedida. Não pediu nada, porque nada havia para pedir. Não chorou, porque tinha rido. Não o recriminou. Não tinha que o fazer. Porém, não sentia vergonha, nem asco, nem nada. Apenas estava saciada. Toda. As carnes vibravam, alvas e deleitadas. O resto estava sereno. Tudo.
O seu episódio de vida nunca fora um paralogismo, mas antes o mais puro realismo ideal.
O frio da pedra acorda-a para as palavras.
Levanta-se, entre dentes murmura, enquanto amarfanha a carta. “Ser é ser percebido” foi sempre o que eu quis. Foi tudo o que eu quis.
Uma filhós...
Abre a bolsa. Está minguada. Apenas umas moeditas lá dormem. Volta a fechar e aperta-a contra os dedos. Maldito dinheiro. Sempre se some, nunca leveda, nunca. Pelo menos para ela. E o Natal que se aproxima. O pequeno já lhe anda a pedir uns patins em linha. E não se cala. Todos os dias a ladainha é a mesma:
“-Portei-me bem, não portei? O pai Natal vai dar-me os patins, não vai mãezinha?”
Claro que ela diz que sim, claro que ela lhe diz que tem que continuar a portar-se bem. Claro que sente um nó na garganta, quando poisa o olhar, nos outros olhos, ainda puros. Claro que sorri, sorri sempre. É a forma mais simples de sanar o impossível. Maldito dinheiro. Vida sem tino.
Todas as manhãs levanta-se às cinco da manhã. No seu pequeno apartamento, pequeno, porém grande na altura de pagar a renda, mais a água, mais a luz, respira-se o frio e o escuro da madrugada. O clarear tímido passou ao lado, para a janela da frente, do outro, a do vizinho. O seu, o do canto, o mais económico, só vê luz lá pelo meio-dia. É escuro e húmido. É o que pode ter. Uma cozinha, dois quartinhos, uma casa de banho e uma salinha. Tudo e tão pouco. Mas chega-lhe. É simples e gotejado. Parece que escorre sempre. Nas madrugadas líquidas de Inverno a água perpassa pelas costas e aloja-se-lhe na alma. Um arrepio. Levanta-se. Enfia os pés nos chinelos. O dedão espreita. O tecido espirrou de puído. Imperceptivelmente encolhe o dedo. Olha para baixo. Abana a cabeça de caracóis ruivos. Muito.
Uma espécie de labareda veste o espaço. É a luz que a madrugada teimou em roubar. Já de pé coça os caracóis como se estes lhe atrofiassem os pensamentos. Mais um dia, mais uma rotina. Arranja-se. Depois, já com o sol nos lábios vai até ao quarto do seu menino. Dorme tão docemente, o seu rapazinho. O rostinho está rosado do calor dos lençóis, os caracóis sedosos espalham-se na testa. Chama-o de mansinho.: -“Pedro, Pedrinho, querido…”
Volta-se sonolento, rebola os olhos, chucha na língua e resmunga: -“Hum…só mais um cadinho…tá quentinho.”
Ela senta-se na borda da cama, afaga-lhe o rosto e sorri no amor de mãe, murmurando:” - Mais cinco minutos, Pedro, só mais cinco minutos.”
E fica ali a amá-lo. Tão só com o olhar e o sentir.
Tão só, como se fora pouco.
E o Natal que chega daqui a dias. E o dinheiro que não leveda. E os patins do seu menino. As pálpebras obedecem ao ritmo do pensamento abatendo-se sobre o olhar verde e lindo. Uma menina grande e dorida vexada na imensidão do seu amor de mãe. O querer dar sem ter. Os olhos enevoam-se de estrelas de água. De novo abana o seu Pedro. Lá fora, o dia pesponta preso em teias de labuta. Há que o seguir.
-Mãezinha, quantos dias faltam para o Pai Natal?
-Faltam doze dias, Pedro.
- Sabes mãezinha já escrevi a carta a pedir os patins. Ele vai mos dar, não vai? Portei-me bem, não portei, mãezinha?
-Sim Pedro. Talvez, o Pai Natal pode estar muito ocupado. Sabes há muitas cartas. E se por acaso, a tua, se perde? Já pensaste? Pode acontecer.
-Pode? A Rosa disse-me que o Pai Natal faz sempre a vontade aos meninos que se portam bem.
-A Rosa, disse isso?
-Sim, mãezinha.
-Pois, lá deve saber, então
Ah! Então vou ter os meus patins, não vou. Ah vou, vou…Ah, mãezinha que bom!
-Vamos ver, vamos ver, Pedro.
Deixa-o na creche e corre para o comboio. Tem que atravessar a ponte, logo apanhar o metro. Pega às oito em ponto. Até às cinco e meia. Hoje é daqueles dias longos. Arranjou um extra no restaurante. Vai ficar até às onze. A Rosa, a amiga, vai buscar o Pedrinho. Está descansada.
Este trabalho veio mesmo a calhar. Oxalá lhe paguem para poder comprar os patins, e mais umas coisitas. Bolas, afinal é Natal. A vida é um alcatruz de nora. Tem tanta esperança quanto desengano. Uns pegam no princípio, outros no fim. Ela agarrou no fim. E a vida escreveu-se-lhe assim de páginas voltadas.
Já na cozinha de avental bem assente, touca e luvas descasca as batatas. A faca desenha a espiral certa, que solta, se despenha no caixote. Mais uma, e outra, e mais, e mais. Vai ser assim durante a próxima hora. As espirais dos seus sonhos na ponta de uma faca, caindo no fundo do caixote. Levanta a cabeça. Toma o ar altaneiro que lhe pertence. Daqui a pouco vai ter que bater as filhós. É a sua especialidade. Saem-lhe fofas e túrgidas. Um deleite de sabor. Assim o dizem.
Entranha as mãos na massa, aperta-a, espreme-a, depois alisa-a, bate-a em golfadas de prazer e dor. A força da sua vida num rolar de punhos adentro. Tende-a ainda liquefeita. Uma teia fechada. Estica-a. Ainda não está. Enfia as mãos com força, com ardor, com raiva e doçura. Com os ingredientes do sentir. Uma vez e outra, mais outra e outra ainda. Assim repetida e vorazmente. A massa borbulha. Abre-se. Em bolhas que rebentam em ais de satisfação. Está pronta para crescer. Uma manta a enrolar o alguidar. Vai levedar. Logo estará mais leve, se possível mais fofa ainda.
Tira o avental enfarinhado que joga para o cesto, alisa a bata. Já na casa de banho, humedece o rosto onde pérolas de suor fizeram os sulcos de cansaço. Está fresca. Maquinalmente olha-se ao espelho. Lá está a cara pálida com uns olhos enormes e uns cabelos de labaredas, teimosos e encaracolados. Ah, como gostaria de ser comum. Olham-na sempre. Os cabelos são tão esfusiantes não têm nada a ver com o seu estado de alma. Mas enfim, a mãe natureza teve destas coisas. Tem que viver com o que tem. Uma enormidade. Pensa que tudo está ao contrário. O calor gelado da sua vida. O desamor feito colar que lhe cinge os sentidos.
Compõe a toca, coloca um avental lavado, olha o relógio. Dirige-se para o alguidar, levanta a manta no canto. Espreita a massa. Lá está ela lêveda. Soberba! Vão ficar boas as filhós. Um tacho, borbulhas de óleo quente, massa que rebola e dança, um prato de açúcar e canela para o enfeito de cor e doce. Eis as filhós. Logo, logo estarão à venda. Quentes e doces.
Dez dias de filhós. Quentes e doces.
Um alguidar de massa, mãos sentidas de dor, raiva batida, esticada. Suor e rubor. Tempo e alento. Fé. No amanhã que se desenha e mais um gesto de amor. Uns patins.
………………
-Mãezinha, mãezinha! Grita a criança.
-…?
-O Pai Natal, O Pai Natal lembrou-se de mim!
-…!
-Mãezinha estou tão feliz!