.Uma sopinha
A neblina húmida da manhã varria o passeio emprestando-lhe o molhado que torna as solas dos sapatos mais escuras. Era uma manhã de Outubro. Daquelas em que o ar fresco espreita nos olhos do dia. Uma correntezinha com uns piquitos de frio percorreu as costas de mulher que ataviada de mala, computador e mais carteira, não deixava muito por adivinhar qual seria a profissão. Era professora. Vestia o cansaço dos dias nas olheiras bem aconchegadas, no macilento do rosto e ainda num cabelo pseudo-penteado. Percorria o passeio junto ao mar, talvez para beber a calma do rio. Do outro lado, o Porto remexia-se na paisagem. Mais meia hora, e, aquela calma feita de nevoeiro e abraçada no cheiro de maresia lá ficaria para trás. Inspira e fustiga o passo. Ainda bem que trouxe estes sapatos, estão um bocadito cambados mas as calças disfarçam. E trincando uma barra de chocolate, um devaneio, senta-se no banco de pedra da marginal. Quer arrecadar o princípio do dia na alma. Inspira.
………………
Na casita areada de amarelo sujo, pespontada de janelas pequenas e porta velha, Mário pega na mochila saindo pela porta da cozinha que fecha devagar. Cá fora traga o ar molhado que lhe enche os pulmões e preenche o estômago vazio. Dói. A fome dói. Que bom era agora uma molete quentinha mais uma caneca de leite. Engole mais um pedaço de saliva para forrar a fome. Atravessa a rua. Não resiste. Tem que ir até à beira-rio. Ainda tem um tempinho. Enquanto caminha dez réis de gente, corpo miúdo, olhar nervoso e cabelo negro escorrido em guedelhas sem pesponto, Mário pensa como a vida está brava. A mãe, esfalfa-se a trabalhar. Dá horas em casa de duas patroas. Mas, a coisa está má. Não lhe pagam. Não é justo. As Madamas todas de nariz empinado e voz aflautada, sempre ao volante dos seus BMWs ou Audis, todas aperaltadas sem partirem uma unha que seja. A mãe, coitada sempre dobrada ora na limpeza ora na lavagem, ao ferro, e, sabe-se lá que mais. Depois nem um cêntimo. Lá lhe vão dando umas migalhas. Os restos da pouca comida que faziam. Esta gente come pouco É chic. Só os pobres têm fome. Rico não tem. Coisas da vida. Até na barriga há diferença. Injustiça, isso sim. O pai está no desemprego, sempre o conheceu nesta profissão. Foi sempre a mãe. Um dia quando for rico vai dar-lhe tudo. É tão boa a sua mãe. Sorri e a fome parece que se esconde um bocadinho.
Do outro lado o Douro acorda molengão e cinzento. Hoje também não está feliz. Olha-o. Encosta-se ao banco mesmo em frente. Na outra ponta senta-se uma senhora de ar cansado. Ah, já a viu. É isso, é professora lá na escola. Um cheiro doce agride-lhe as narinas. Instintivamente dilata -as. ui! que picada no estômago, foi mesmo do cheiro do bendito chocolate. Olha, lambendo os lábios. Ah, que bem lhe sabia uma dentadinha… devagar, devagarinho entreabre a boca. Os olhos fixam-se quase hipnotizados no pedaço de chocolate. A professora olha-o. Pára de mastigar e pergunta-lhe:
-Já tomaste o pequeno-almoço
-O que é isso?
-Já comeste, bebeste leite ou comeste pão?
-Não. Ontem à noite comi a sopa.
Olha-o. A neblina desceu -lhe aos olhos. Levanta-se, chegando-se a ele, poisa-lhe a mão no braço e diz-lhe:
-Anda daí vamos tomar o pequeno-almoço…
Mário arregala os olhos escuros. Pega na mochila e coloca-se ao seu lado. Conhece-a. Tem cara de boa. Isto tem que se sentir, ter um certo cuidado. É isso, vai com ela. Está seguro.
-Como te chamas?
-Mário, Mário Silva
-Olha Mário vamos aqui já a este cafezito e tu vais beber uma meia de leite e comer pão, está bem?
-Oh, obrigado, mas …. Eu não quero dar trabalho.
-Qual trabalho, qual carapuça. Vais comer e pronto.
Fernanda senta-se na cadeira em frente do pequeno. Mário, com uma mão na chávena e outra no pão despacha, voraz, ambos. Uns bigodes cor de avelã sombreiam-lhe os lábios, A língua espreita aproveitando os restos que se colam. O olhar pisca-lhe entre os goles. Come e bebe de um fôlego, como se o leite ou o pãozinho pudessem ter pernas e fugir. Tem nos olhos o calor do corpo já aconchegado. Nas comissuras dos lábios reina um trejeito alegre. Fernanda sente um arrepio. Estremece. Cruza a perna, alisa maquinalmente os caracóis revoltos e tocando-lhe no braço pergunta-lhe:
-Ouve Mário vives com os teus pais?
-Sim, com eles, com a Ritinha e com a Xanata
-Tens irmãs é isso?
-Sim, a Ritinha e a gata.
-…. ?
-A minha mãe trabalha o dia todo, em casa de duas senhoras. O meu pai está aleijado, muito. Teve um acidente. É ele que vai fazendo alguma coisa lá por casa. E trabalha na madeira. É muito bom. Mas não tem encomendas. Eu logo que saio da escola, vou a correr buscar a Ritinha. Devia vê-la, é tão bonita a minha irmã. E Boazinha. Tem cinco anos.
-E tu? Quantos anos tens?
-Onze! Ando já no sexto ano. E até não sou mau aluno. Há algumas disciplinas que não gosto muito, mas lá tem que ser.
- Olha Mário estão aqui duas sanduíches para comeres ao almoço, mais um pacote de sumo. Agora vamos, que está quase na hora.
-Obrigada, a professora é professora, não é? É muito boa. Sabe ,dantes lá em casa ,não era assim. Havia comida, mas agora o dinheiro que vem, vai para os remédios do pai, para a Ritinha que ainda é pequena. Depois temos que pagar a renda senão põem-nos na rua. É difícil ,e, as Madamas não pagam à minha mãe ,que se mata a trabalhar. Está difícil. Mas não somos os mais pobres. A minha mãe faz a sopa e comemos à noite, e temos casa, e temos água e luz e ainda alguma roupa e sapatos. Não somos os mais pobres. Não somos, não.
-Olhe professora eu posso dar uma sandes ao João, posso?
-Quem é o João, Mário? O teu pai?
- Não professora. É o meu amigo. Ele é pobre. Nem sopa tem. Posso dar-lhe uma sandes não posso?
Um nó, daqueles que cortam o sentir do mundo atravessa-lhe a garganta estendendo-se ao peito que dói de vergonha. A crise de solidão, a aspereza das relações, o egoísmo do mundo abate-se na sua mente. Uma criança, aquela, que ali sentada lhe sorri por entre os bigodes cor de avelã, e lhe diz numa voz doce, sorrindo, que até não é o mais pobre, que tem sopa…e ela sempre tão infeliz…
-Pega lá. Estão aqui mais duas sandes, Mário.
Saem os dois. Lado a lado. Fernanda pestaneja. Não sabe se da neblina da manhã se das gotas da alma. Mário, na sua verdade de criança, mostrou-lhe a chaga do mundo.
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