Cachos loiros, redondos, pingados. Cachos que bebem o sol, mais a terra. Cachos doces de Setembro. Flores de uma terra acre seca, de socalcos redesenhados, bagos translúcidos de néctar. Cachos sombreados de ouro rubro, pétalas sôfregas nos bardos prenhes de doçura. Linhas de pó e xisto pontilhadas de malmequeres minúsculos no seu infindável bem-me-quer, mal-me-quer que o vento trás e leva e a chuva arrasta e semeia. Parras vestidas de sangue rubro e mel doce. Folhas riscadas em seiva quente, que tapam o tesouro ou o desventram, no tempo do colher. Terra embalada no leito macio das águas dolentes, saciando, nos seus requebros, as raízes que se estendem de socalco em socalco.
Berço de sonho e neblina do passado, alforge de riqueza e labuta dorida de corpos curvados pelo peso da esperança. Pão de cada dia trincado no vórtice do amanhã. Xisto erguido em socalcos de néctar. Bagos brancos, bagos vermelhos. Risos e lágrimas. Branco e tinto. Ouro velho, ouro novo. Doçura enrolada de beiços em danças rodadas de sons e cantares. Doce e amargo. Vinho e luta. Terra e pedra. Água e murmúrio. Poesia da manhã embalada nas asas do vento. Vento espargido pelo som ora das matinas, ora das vésperas. E o tempo esconde-se no monte vestindo o socalco de noite. E as uvas repousam. Adoçam-se na noite. Oferecem-se no dia. Pisam-se nas tardes. Maturam-se na noite e renascem em cada lágrima de tempo fecundo.
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" Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome." (Perto do Coração Selvagem)
Uma porta aberta, um cortinado que esvoaça em movimento ténue, um céu azul carregado de promessas de luz, um arabesco subtil que desenha a onda verde do arroz. Um quadro, ou antes, uma visão feliz. No interior, ainda despido de raios de sol, perpassa o som amortecido do novo dia. A vida refulge lentamente nesta manhã de luz. Um corpo, qual linha quebrada, ergue-se por entre o colorido dos lençóis. A massa de cabelos cor de chocolate encobre o rosto, que de pronto livre, aponta para o ar, cumprimentando-o. Roda o corpo apoiando as palmas das mãos. Gesto maquinal. Depois, os pés calçam o chão e levanta-se. É franzina, uma silhueta quase de criança. Sem sobressalto na lentidão própria de quem conhece as horas, Frederica dirige-se para a porta da varanda do seu quarto. Inspira o ar, aquele cheiro a água e lodo, onde as raízes do arroz se vivificam. O olhar perde-se no horizonte. Para além do verde, onde o azul é apenas uma linha, está o mar. As pupilas verdes dilatam-se como se quisessem albergar nelas o outro lado do mundo , o de aguada azul-verde. Suspira e calmamente retrocede. Porém, como que uma voz a chamasse, volta-se de novo, e olha ao longe. Um som possante, estridente, um grito cavo, propalado no vento, fá-la vasculhar o tempo. A viagem da memória invade-a. …
Um subir e descer agoniado, ora acima, ora abaixo. Um bater constante de corpos, um escorregar, um lacerar de carnes sempre que as vagas a sujeitavam ao chão, às paredes, aos objectos. Os golpes dilatados, o sangue quente escorregando em fios vermelhos, o sal que a queimava em bofetadas de água. Um inferno líquido. Não de chamas, mas de vagas. A luta. A esperança. Na loucura da vida procurara fugir à morte e conseguira-o. Trémula encosta-se ao ferro do varandim. Agarra-o com força. As nós dos dedos pintam-se se da cal branca dos tendões hirtos. Uma dor fina, aguda revolve-lhe o peito. Instintivamente olha o cotovelo esquerdo. A cicatriz vertical é testemunha do rasgar da carne, quando a vaga, mais forte, ainda do que as anteriores, a cuspiu para o exterior, fazendo-a emergir da água para o monte de cordame que jazia junto à amurada. A sua carne arrancada como se fora pele. A dor lancinante, rapidamente ultrapassada por uma maior, quando a água salgada lhe banhou a ferida. Desmaiou. Mas o tempo foi curto. Logo acordou, ainda mais exausta, exangue quiçá nefelibata. Hora após hora, num imenso tropel de agonia, o barco vogou ao sabor da tempestade. Os raios coscurantes cortavam a tapeçaria nua de estrelas. Havia o ribombar do trovão furibundo, o bater possante das ondas, estalando-se contra o barco como desejassem esbofetear as vidas no seu interior. Frederica recorda, o comungar uníssono dos elementos, a obstrução permanente do mar encolerizado ao pequeno vapor, caixa-de-noz à deriva rebolando nos alcatruzes das águas, as ondas. Fora nessa variável de semi-tempo, perdida dentro do grande tempo, que o pai fora varrido pelas águas em sibilo avassalador de fúria. Gritos, uivos dolorosos, arrancados à alma numa fusão de dor e impotência, lágrimas quentes de sal misturando-se com o outro que a abrasava, o erguer de braços, mãos em prece, exponente de fé e clemência. Porém houve surdez, houve esquecimento. Houve desdém. E o mar engoliu-o, em boca vazia de dentes, em golfada prenhe de desejo. Logo, recorda, tudo serenou. Como se as entranhas liquidas se tivessem saciado. Sózinha, sofrendo o ostracismo final dos elementos, Frederica pouco mais relembra. O medo, a dor, o cansaço venceram-na.
Frederica recolhe a lembrança. Entra no quarto. A dança da cortina é compasso de sentir. Volta-se. Olha o quadro na parede em frente. Um rosto, masculino. Um olhar, uma certeza. Um passado, um degrau já erodido de passos perdidos. Na tela, o pai, olha-a, sem o distanciamento da sombra que o tempo suportou. Os olhos possuem a luz envolvente do amor. Há um misto de irreverência e ternura como se pretendesse minimizar o caos que o arrebatara para sempre. É o conselheiro mudo das suas manhãs. Frederica sorri-lhe, enviando-lhe um beijo na ponta dos dedos. É assim todos os dias. Uma conversa de sorrisos. O dia recomeça no seu casulo de vivências. Num gesto simples rebola o olhar, gira a cabeça, entrelaça os dedos nos cabelos longos, castanhos e brilhantes, qual moldura vertical de um rosto vivo, onde a vulnerabilidade do passado tem sempre a cancela semi-aberta. Afastar o pesadelo daquela noite sem luar, onde nem o farol da fé brilhou, é método cartesiano de vontade. Já no exterior, no jardim voltado para os arrozais, descalça, pisa a relva onde o orvalho amaciou a dureza da erva, e deu licença à terra húmida para beijar as flores gráceis, ainda meio estremunhadas que limpam os olhos da aurora já recolhida em vitrais de rosácea iridescentes. Inala o ar que lhe traz o odor salgado da sua vida. O verde espraia-se na sua frente. Em breve o grão germinara. Bago branco pespontando na planície viçosa. No horizonte, o limite entre o céu e a terra torna-se difuso. Há uma mistura de tons como se o pastel se tivesse alastrado de uma tela para outra, tomando-lhe a cor. O quadro do tempo azul-verde parece inundar o olhar, e beijar a alma do dia. A beleza da tela, ante os seus olhos, é de tal forma pura e serena que lhe fere os sentidos. E as lágrimas saltam. Duas. Cristais rasgados da saudade, de pena e de solidão. Frederica compara as telas da sua vida. A do passado, forte, azul, branca, vermelha, ladra avara do deu mundo de afectos. A presente, perfeita, verde, branca, azul, dourada, um retalho do seu país em tríptico de uma vida quebrada. A sua.
Logo, quando o sol se puser, o arrozal enterrar-se-á nas suas raízes, tal com ela, no sono das suas memórias e a água deslizará, uma vez mais, nas margens da noite até ao acordar da vida.
- Zuri me leva, me leva. Maínha não gosta de Thembi, não gosta, não .Maínha matou a Bunmi de Thembi, puquê Zuri, puquê? Bunmi era velhinha e boínha. Bunmi era amiga de mim. Puquê Zuri? Maínha não é boa, não.... Os soluços são profundos, vêm da lonjura do pequenino coração. Thembi leva as mãozinhas papudas aos olhos salpicados de lágrimas . O ranho espreita, a par da baba, que escorre pelos cantos da boquita prenhe de infância. Enterra a tristeza no corpo de Zuri, o irmão. A camisa, farrapo branco, descai-lhe pelo corpo roliço, cor de chocolate. Nas pernas e pés, a areia fina e branca cola-se como se fosse lantejoulas do mar. Thembi está muito triste. Mataram a sua Bunmi. E ainda lhe roubaram o casaco castanho de quadrados cor do velho Tamu. Tamu, o coqueiro ou antes o castelo, onde Thembi e Bunmi descansavam depois das grandes cavalgadas pela praia. Tamu sempre desgrenhado, por causa do vento, que soprava do mar azul-verde. Tamu, que quando estava triste, deixava cair sempre uma grande nyembeti verde e pesada, que ele, Thembi abria e bebia com gula. Ah, que bom e depois aquele cansaço redondo que o deixava zonzo. Afinal, Thembi era só um mininho piquinino.E o olho fechava de mansinho e dormia. Bunmi, ali ao lado, quietinha, com a pata direita mesmo encostadinha à bochecha como numa espécie de cafuné. Como Thembi gostava. Sentia que o azul de cima e o de baixo entravam assim no seu coraçãozinho, enchiam-no de lindeza dando-lhe uma quentura que o fazia feliz. Depois, quando a tarde entreabria a porta à noite, e a lengalenga dos pescadores começava a ouvir-se vinda do mar, bem como o chapinhar dos remos na água lisa, numa canção de despedida ao espírito do azul-verde, que se ía deitar. Thembi abraçava a sua Bunmi, deixava-a olhar bem para ele, e corria para a pequena floresta logo depois da praia. Thembi suspira e de novo as lágrimas espreitam. Thembi, pedaço de chocolate doce, recorda aquele outro dia, quando ele e Bunmi brincavam nas águas lisas espelhadas de azul-verde, e, de repente, viram “a mulher peixe”. Bunmi, rápida, nadou para perto dele. Mulher peixe é sereia. E sereia encanta. Não fosse ela roubar o seu pedacinho de chocolate quiçá enfeitiçá-lo. Tartaruga tem muitos anos de mundo- água. Viu coisas que gente nem sonha. O paraíso, lá no fundo é de cores vivas, mais lindas que as de cá, mas tem também muitos perigos. E Bunmi sabe o que a “mulher-peixe” já fez aos homens e aos outros meninos quase homens. Não vá ela, desta vez, querer um minino mesmo. Thembi olha para os cabelos verdes e longos da sereia, os olhos são esquisitos, têm o mundo de coral neles, agarram a alma da gente. O minino sente, sente que a sereia o puxa, puxa. Está já rodando o corpinho na sua direcção, atraído pelos cabelos, pelos olhos, pelos seios verdes, cheios e redondos que lhe lembram os de maínha, assim soltos e opulentos. Lambe os beiços pensando no alimento, e mais um pé que mexe, a água faz ondinhas finas, devagarinho. Bunmi, que também de mansinho se tinha aproximado, dá-lhe uma vigorosa patada que o deixa meio zonzo. O encanto quebrou. A mulher-peixe gemendo volta a mergulhar e Thembi fica ali, zonzo, olhando no vazio. O que passou? Bunmi tão boínha bateu nele? O que passou? Depois Bunmi empurrou-o para o areal. Naquele dia não houve brincadeira. Tamu, o castelo ficou vazio, naquela tarde esquisita. Thembi foi para casa. Maínha estranhou vê-lo assim de cedo. Olhou, remirou mas nada disse, quando o viu deitar-se na esteira, e dormir toda a tarde. Maínha desgostava de Bunmi. Maínha enciumava-se da amiga, Thembi sabia. Estava muito quente, lembra, e doía a cabeça. O dia recolheu-se quando sol se deitou no mar. A noite calçou as estrelas e os sonhos vieram brincar na esteira de Thembi lambuzando-o de centelhas doces. No outro dia, o sol amanheceu dourado na ilha, como todas as manhãs. Ouro líquido derramado no areal branco e nas águas lisas. Thembi saltou da esteira, esfregou os olhitos, coçou a cabeça e chegou-se perto de Maínha que aquecia o mata-bicho. Beberricou o líquido, lambeu o doce no pão, e devagar, devagarinho foi-se escapulindo. Assim que se achou fora da aldeia, desatou numa corrida desenfreada em direcção à praia. Bunmi já o esperava. Não devia ter dormido muito, porque a cabeça estava inquieta, pequenina, rodando de um lado para o outro, e os olhos grandes, redondos, estavam inchados. Bunmi estava em desassossego, sentiu. Ajoelhou-se, pôs os bracitos roliços à volta do pescoço e deitou a cabeça no casaco de quadrados. Assim ficaram ,um longo tempo, ouvindo-se no silêncio do coração. E Thembi escutou: “Há muito, muito tempo, quando as tartarugas se passeavam em bandos no azul-verde, e as ostras também vinham brincar com elas numa roda grande, se ouvia as vozes dos peixe-palhaços, dos peixe-anjos e a dança das anémonas e a cor vestia o azul-verde num turbante colorido. Tão lindo. Só quando o peixe-crocodilo vinha, ou o tubarão, é que tudo fugia para se encapotar no muro de coral, bem escondidinhos à espreita. Logo, vinham para cima rindo, outra vez. Era um tempo feliz. Mas um dia, uma sinhôa de nome Bilkis, de um reino de longe, Sabá diziam chamar-se, visitou o Bazaruto. Era bela. A sua pele ébano puro, brilhante, cabelos negros, olhos enormes. Tão bela que as nossas danças e brincadeiras se quedaram ao vê-la. As ostras, meio tontas, abriram a boca e mostraram o seu tesouro. Bilkis ao ver tantas e lindas pérolas, imperiosa, exigiu-as. Ao mar redes e redes foram lançadas, as pobres primas ostras, foram apanhadas, desventradas e depois de roubadas, algumas devolvidas, outras comidas. A raiva tomou conta de nós. E chamámos o espírito do mar. E chamámos o vento, mais a chuva e o trovão. Chamámos toda a noite. Chamámos. E na manhã seguinte quando a bela Bilkis, nua, se veio banhar no azul-verde, os espíritos agarraram-na, amordaçaram-na e levaram-na para o fundo. O castigo foi grande, muito. Já Bunmi era avó, quando viu a nova Bilkis. Já não era bela, já não era mulher, era sereia, era a” mulher peixe.” Desde então ela vem sempre que cheira inocência. Por isso, meu pedacinho de chocolate, por isso eu te bati ontem. Não esqueças nunca: Cucurira chimunanga, manguana chinowiq , que é como quem diz ,se criares uma árvore com espinhos, amanhã picar-te-ás. “ Thembi recordou tudo isto entre soluços, muita tristeza. De cabeça ainda afundada na barriga de Zuri, o belo, Thembi, o forte, despregou o olho lentamente, e olhou. Viu-a nua, despida do seu belo casaco de quadrados castanhos, que desaparecera. Jazia, ali, entre as pernas dos pescadores mais as de Maínha. Até Tamu deixara que os seus cabelos tapassem o areal, uma espécie de cama para a sua amiga Bunmi. Quis gritar, chorar, berrar. Quis tudo, mas o som não saiu. Ficou mudo, trémulo, assim dorido de sentir. E enquanto a tristeza o tomava, uma voz, aquela que Bunmi fazia ouvir, aquela que vinha do coração e lhe dizia:”Pedacito de chocolate estou no teu coração, sempre. Fecha a boca, os olhos, vês… Sorri… Sorri…” -Zuri me leva!
Três horas de uma tarde de primavera. Daquelas em que o frio é ainda cortante mas onde o sol se rebola no azul desmaiado. Aquece a alma, mas não o corpo. Os casacos, mais os cachecóis, dão o calor, que o tempo parece negar. O tempo, mais a idade. Os rostos revelam os caminhos percorridos da vida. Os sulcos, riscos cavados no sol e chuva da vida, dão o traço à moldura humana da mesa. No entanto, pese as tintas se terem desmaiado aqui e ali, as vozes, vibram límpidas e cheias. É o encanto dos anos em compasso de harmonia. Seis homens sentam-se nos bancos corridos de madeira trabalhada, em redor de uma mesa de tampo liso, castanho, ainda brilhante da cera da manhã. Os florões entalhados adoçam os móveis e emprestam um ar de aconchego. András, Ánton, Érvin, Férenc, István, János, seres humanos na curva descendente da vida. É o tempo do afastamento, da solidão, do estar a mais, no quotidiano do mundo. Depois, e porque eles sabem ainda o que querem, encolhem os ombros e sorriem por dentro. Em seguida, simplesmente sentam-se e conversam. Conversam e discutem o desdém da sociedade. Não ripostam, não estrebucham, porque a ordem da vida é assim mesmo. E eles sabem disso, sentem-no em cada grão da sua pele já engelhada mas ainda viva. E, no entanto, as mentes discernem ávidas, as vozes convergem na análise do dia-a-dia. O encontro diário mitiga-lhes o deserto dos carinhos. Uns são viúvos, outros casados ainda, outros ainda solteiros por opção ou prosaicamente divorciados. Os estados civis em carrossel de vivências passadas. Mas são solitários. Vivem em pequenas casas puídas de memórias, de quartos rotos de carinho e salas prenhes de fotografias desbotadas. Vidas que tiveram rosto. Mesmo a preto e branco.
Diariamente, os seis cavaleiros do passado, reúnem-se no “Ruszwurm” e entre um copo de Tokaji bem fresco, debitam as suas angústias, ripostam as suas certezas e interrogam o seu amanhã. Nos lábios secos e engelhados o líquido adoça-lhes a verborreia, fazendo incendiar as veias, onde o sangue ainda há pouco adormecido pelo tempo se liquefaz e numa correria, agita-lhes os rostos dando-lhes a expressão de vida, que falta no resto do dia. Entre gestos, piscadelas, risos, despir de casacos, coceiras nos ralos cabelos ou ainda o cofiar do bigode alvo e ralo, entreouve-se:
-Meus velhos tenho uma novidade para vos dar, diz András.
O silêncio veste a mesa. Há interrogações nos olhares.
Premeditadamente, András, bebe mais um gole do seu branco, devagar, saboreia-o, pousa o copo, pigarreia e afivela um doce e matreiro sorriso. Depois assim de um jacto, como se as palavras fossem um assobio. Vou-me casar!
Estupefactos os cinco entreolham-se e, vá-se lá saber porquê, as gargalhadas brotam em cascata num só tempo. Riem, riem. As lágrimas irrompem nos olhos já gastos dando-lhes aquele brilho malicioso mas simultaneamente ladino. Escancaram-se os rostos. A alegria incrédula, a surpresa, o sopro de vida que os bafeja, fá-los rejuvenescer. A incredulidade apaga-se perante a simplicidade da novidade. O sessentão do András, solteirão impenitente, o solitário, o discreto, o mais subtil de todos eles, o indivíduo que parecia não padecer de sentimentos, sair-se com esta!
-Estás a gozar, não estás? Pergunta-lhe István, sempre inquisitivo
-Ora essa! pura verdade. E é já para a semana. Estão convidados.
-Homessa…quem diria. Mas, perdoa que te pergunte, András, quem é a extraordinária criatura? Mulher, não é? Pergunta meio espantado, o bonacheirão do Érvin.
-Claro que é, essa agora! Chama-se Kássia. Conheço-a há anos. Desde sempre. Crescemos quase juntos. A vida separou-nos mais o tempo. Agora juntou-nos, e vamos viver o resto das nossas vidas, ou o que sobrar delas. Mas juntos.
-Não acredito, não posso. Ó rapaziada, o nosso querido András, tão calado, tão … tão ele. O eterno apaixonado. E nós sem nos apercebermos. Afinal o que somos? Amigos? Homens? Trastes? Desculpa, meu velho por nunca termos percebido ou compreendido, diz-lhe János, o Bom.
-Ora, ora, deixa-te disso, János. Somos o que somos. Homens somos, amigos também. Mas não te esqueças, só sabemos o que mostramos. A capa, o livro que fica muitas vezes por ler, porque as palavras pesam, porque as linhas se estreitam, porque os personagens não somos nós. E pura e simplesmente desviamo-nos. Tão humano, meus caros. Por isso meus amigos, convido-vos para as páginas do meu livro. E sorrindo András cala-se. A firmeza da sua voz, a par com o seu sorriso aberto, empresta ao grupo uma alegria que se traduz em efusivos abraços e parabéns e nova rodada de branco fresco.
A tarde torna-se mais viva. Na mesa, sob a janela, onde o sol deixou de debicar, e passou a iluminar, os seis homens sentem nos corpos uma espécie de frémito que os compele ao sonho. Não ao imaginário, voo de águia em espaço a descobrir, não, apenas à ilusão de estar vivo e, de sentir, sendo correspondido. À fantasia de nada ter ainda acabado. Ao devaneio, àquele, onde as prateleiras não existem e os espaços não se constrangeram a rotinas. Sentem na pele o estremecimento da vida e, pressagiam-na, nas suas almas. Vozes trémulas, depois mais redondas e fortes, ecoam. Cantarolam enquanto se embalam no ritmo, no calor e na esperança. Estão felizes e plenos, os amigos.
Horas depois, quando o capote do crepúsculo decidiu enroupar o dia, um a um despedem-se e saem. Já na velha Praça Vorosmarty, respiram fundo, bebendo a humidade da noite. Os ossos ou as articulações nada sentem. Não estão duras, não ardem no movimentar do corpo. Os passos tornam-se lépidos quase em széki. O ritmo do sentir. A modorra quebrou. A esperança ainda é vida. E o amanhã está ainda na esquina à espera…para ser lido.
Visto-me de Setembro em cada ano. Visto-me da neblina encaracolada na luz do dia, e nos orvalhos da noite. Visto-me da liquidez do tempo e da convulsão das cores. Visto-me antes de o Inverno chegar...Sim visto-me frágil, trémula, nas manhãs sonoras de adeus, quando a alma, suspira no corpo descansado, de repoiso. Visto-me, não de casacos ou outras peças comezinhas, visto-me de vida, da que palpita lá fora, qual capa ondulando ao vento do desejo. Visto-me de ânsia, porque o meu corpo estremece. Nicho de cada estação, onde o cálice frutifica em ondas plangentes de sentir. Freme a pele, soluça o vento, sorri o tempo porque me Setembro.
Setembro-me, porque estou nua de tempo e cores. Quero para mim os rosas quentes, os dourados eternos, os térreos flamejantes e o verde que me adoça e beija os pés. Quero o azul por cabelo, já que as nuvens são os meus caracóis, soltos em tufos de algodão macio. Quero a brisa por carícia, afagando-me o pescoço em látegos de deleite incandescente. Quero rebolar na terra húmida, sentir o húmus, o cheiro, a voz, a essência do mundo. Quero beber na fonte o orvalho do dia e da noite, trincar os bagos dourados, deixar escorrer pelo corpo o líquido doce e morno, lambuzar-me de néctar, saciar-me de vida, calcar as cores e cobrir-me de grinaldas purpúreas de desejo e correr, correr pelas encostas engalanadas de cores, e quentes de luz. Quero colher o tempo, a luz, a vida em Setembro.
Respiro saciada. O vento partiu, a brisa beijou-me.
08 setembro, 2008
Neste céu cinzento, Que me envolve Vejo as aves que planam.
Elas rodopiam, Sobem, Descem, Como num louco carrossel
Em bandos De ondas, Num vai e vem, constante Elas correm... Como um corcel.
E eu, parado Olho, observo... Com o meu olhar de vazio.
E elas, enamoradas Em duetos, desejados Escrevem no ar Passos de dança Orquestrados... Em valsas, Em tangos, Ou outras danças de voltear
Elas passeiam-se no ar Perdidas, em abraços De tanto namorar.
E eu perdido, neste jardim Já nem me encontro, Em mim, De tanto ficar tonto Destes voares loucos Que se desprendem de mim. Em pequenos sonos De loucos sonhos Onde passo, tantas vezes Por ti...