A capa e o livro
Três horas de uma tarde de primavera. Daquelas em que o frio é ainda cortante mas onde o sol se rebola no azul desmaiado. Aquece a alma, mas não o corpo. Os casacos, mais os cachecóis, dão o calor, que o tempo parece negar. O tempo, mais a idade. Os rostos revelam os caminhos percorridos da vida. Os sulcos, riscos cavados no sol e chuva da vida, dão o traço à moldura humana da mesa. No entanto, pese as tintas se terem desmaiado aqui e ali, as vozes, vibram límpidas e cheias. É o encanto dos anos em compasso de harmonia. Seis homens sentam-se nos bancos corridos de madeira trabalhada, em redor de uma mesa de tampo liso, castanho, ainda brilhante da cera da manhã. Os florões entalhados adoçam os móveis e emprestam um ar de aconchego. András, Ánton, Érvin, Férenc, István, János, seres humanos na curva descendente da vida. É o tempo do afastamento, da solidão, do estar a mais, no quotidiano do mundo. Depois, e porque eles sabem ainda o que querem, encolhem os ombros e sorriem por dentro. Em seguida, simplesmente sentam-se e conversam. Conversam e discutem o desdém da sociedade. Não ripostam, não estrebucham, porque a ordem da vida é assim mesmo. E eles sabem disso, sentem-no em cada grão da sua pele já engelhada mas ainda viva. E, no entanto, as mentes discernem ávidas, as vozes convergem na análise do dia-a-dia. O encontro diário mitiga-lhes o deserto dos carinhos. Uns são viúvos, outros casados ainda, outros ainda solteiros por opção ou prosaicamente divorciados. Os estados civis em carrossel de vivências passadas. Mas são solitários. Vivem em pequenas casas puídas de memórias, de quartos rotos de carinho e salas prenhes de fotografias desbotadas. Vidas que tiveram rosto. Mesmo a preto e branco.
Diariamente, os seis cavaleiros do passado, reúnem-se no “Ruszwurm” e entre um copo de Tokaji bem fresco, debitam as suas angústias, ripostam as suas certezas e interrogam o seu amanhã. Nos lábios secos e engelhados o líquido adoça-lhes a verborreia, fazendo incendiar as veias, onde o sangue ainda há pouco adormecido pelo tempo se liquefaz e numa correria, agita-lhes os rostos dando-lhes a expressão de vida, que falta no resto do dia. Entre gestos, piscadelas, risos, despir de casacos, coceiras nos ralos cabelos ou ainda o cofiar do bigode alvo e ralo, entreouve-se:
-Meus velhos tenho uma novidade para vos dar, diz András.
O silêncio veste a mesa. Há interrogações nos olhares.
Premeditadamente, András, bebe mais um gole do seu branco, devagar, saboreia-o, pousa o copo, pigarreia e afivela um doce e matreiro sorriso. Depois assim de um jacto, como se as palavras fossem um assobio. Vou-me casar!
Estupefactos os cinco entreolham-se e, vá-se lá saber porquê, as gargalhadas brotam em cascata num só tempo. Riem, riem. As lágrimas irrompem nos olhos já gastos dando-lhes aquele brilho malicioso mas simultaneamente ladino. Escancaram-se os rostos. A alegria incrédula, a surpresa, o sopro de vida que os bafeja, fá-los rejuvenescer. A incredulidade apaga-se perante a simplicidade da novidade. O sessentão do András, solteirão impenitente, o solitário, o discreto, o mais subtil de todos eles, o indivíduo que parecia não padecer de sentimentos, sair-se com esta!
-Estás a gozar, não estás? Pergunta-lhe István, sempre inquisitivo
-Ora essa! pura verdade. E é já para a semana. Estão convidados.
-Homessa…quem diria. Mas, perdoa que te pergunte, András, quem é a extraordinária criatura? Mulher, não é? Pergunta meio espantado, o bonacheirão do Érvin.
-Claro que é, essa agora! Chama-se Kássia. Conheço-a há anos. Desde sempre. Crescemos quase juntos. A vida separou-nos mais o tempo. Agora juntou-nos, e vamos viver o resto das nossas vidas, ou o que sobrar delas. Mas juntos.
-Não acredito, não posso. Ó rapaziada, o nosso querido András, tão calado, tão … tão ele. O eterno apaixonado. E nós sem nos apercebermos. Afinal o que somos? Amigos? Homens? Trastes? Desculpa, meu velho por nunca termos percebido ou compreendido, diz-lhe János, o Bom.
-Ora, ora, deixa-te disso, János. Somos o que somos. Homens somos, amigos também. Mas não te esqueças, só sabemos o que mostramos. A capa, o livro que fica muitas vezes por ler, porque as palavras pesam, porque as linhas se estreitam, porque os personagens não somos nós. E pura e simplesmente desviamo-nos. Tão humano, meus caros. Por isso meus amigos, convido-vos para as páginas do meu livro. E sorrindo András cala-se. A firmeza da sua voz, a par com o seu sorriso aberto, empresta ao grupo uma alegria que se traduz em efusivos abraços e parabéns e nova rodada de branco fresco.
A tarde torna-se mais viva. Na mesa, sob a janela, onde o sol deixou de debicar, e passou a iluminar, os seis homens sentem nos corpos uma espécie de frémito que os compele ao sonho. Não ao imaginário, voo de águia em espaço a descobrir, não, apenas à ilusão de estar vivo e, de sentir, sendo correspondido. À fantasia de nada ter ainda acabado. Ao devaneio, àquele, onde as prateleiras não existem e os espaços não se constrangeram a rotinas. Sentem na pele o estremecimento da vida e, pressagiam-na, nas suas almas. Vozes trémulas, depois mais redondas e fortes, ecoam. Cantarolam enquanto se embalam no ritmo, no calor e na esperança. Estão felizes e plenos, os amigos.
Horas depois, quando o capote do crepúsculo decidiu enroupar o dia, um a um despedem-se e saem. Já na velha Praça Vorosmarty, respiram fundo, bebendo a humidade da noite. Os ossos ou as articulações nada sentem. Não estão duras, não ardem no movimentar do corpo. Os passos tornam-se lépidos quase em széki. O ritmo do sentir. A modorra quebrou. A esperança ainda é vida. E o amanhã está ainda na esquina à espera…para ser lido.
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