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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

13 agosto, 2008

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Um jantar

Mam’selle “poulette à la crème rouge” retorcia-se na travessa aquecida. Rodeavam-na pequenas batatinhas salpicadas e espargos gratinados. A cor dourada, o vermelho, mais o verde, davam-lhe aquele ar apetitoso que faz a saliva brotar sob a língua. As batatinhas estremeciam aos pontapés dos cotos bem tostadinhos. Os espargos, moles por natureza, nem despegavam do seu sítio. Sabiam-se inexcedíveis ao toque e gostosos no degustar. Para quê incomodarem-se? Que a comum da poulette fizesse algazarra, estava-lhe na capoeira do sangue. E no pequeno elevador, da cozinha para a copa, que antecedia a enorme sala de jantar, lá subiram eles aos solavancos, porque o dito cujo, estava assim, a modos que, enferrujado dada a falta de uso. Não é todos os dias que se servem jantares para tantos convivas.” La poulette” de peito bem recheado a lembrar o colo alto e anafado de uma prima-dona, motivada pela sua magistral beleza gastronómica, passa invejável por entre os dedos que lhe suportam o leito, melhor a travessa onde repousava lânguida e tostada. O sacolejar fazia-a sentir-se ligeiramente suada, porém, assim que respirou um pouco do ar de múltiplos odores, sentiu-se logo fresca e apetitosa. Depois é “très chic” subir de elevador até ao primeiro andar, embora estivesse um pouco demodé, mas também quem é que sabia? As outras primas poulettes que se perfilavam na mesa ordenadas de acordo com o estrato social, sentiam, também, aquele frenesim que precede a expectativa, pois que, tal como ela, iriam subir pelo velho elevador para logo serem levadas pelos criados de libré. Um desfile digno de registo. Recorda, a cozinha bem atarefada de mesa comprida, panelas luzidias, fogão crepitante e facas, muitas, compridas, largas e afiadas. Depois Tia Rosinha gorda, gordinha de grande avental branco e chapéu pregueado, redondo e alvo. O olhar de manteiga, braços de derriço, as mãos de artista que de uma simples poulette da capoeira fazia a melhor iguaria digna de honrar a mesa dos “Messieurs de Souzelas.” Mas, mais ainda do que a cozinha, ela “la poulette à la crème rouge” recordava-se sobretudo do misto de sentimentos que a alagara, ao saber, que iria viajar no velho elevador da cozinha até à copa. Havia anos que o pobre fora esquecido, pois que a cozinha passara a ser quase museu de tachos e panelões lustrosos de cobre pendurados. Um espaço novo e moderno fora instalado no andar de cima, passando a velha cozinha para as calendas gregas. Porém, naquela mesmíssima noite, a tradição tomara o seu lugar há já muito perdido, e começando pela antiga cozinha e respectivo elevador, tudo se pusera a funcionar com uma quase perfeição de locomotiva bem oleada. Porque isto é assim, casa que se preze tem elevador da cozinha para a copa e vice-versa. Os criados, criaturas de Deus, há muito que se tinham desabituado, de acordo com a evolução da espécie, das subidas e descidas até ao primeiro andar. Fora pois, lá pelos idos de 1889 que D. Antão de Souzelas mandara instalar o elevador, não para evitar o esmoer físico dos seus retesados serviçais, mas antes, pelo simples facto, de detestar comida fria, e não havendo outro modo de a conservar bem quente, senão por este processo, dada a lonjura da cozinha para a sala de jantar, aquiescera na compra e instalação de tão moderno artefacto. Não fora a excessiva elaboração de um brasão esmaltado que roubava toda a atenção, senão alento, aos que chegavam de novo, relegando para segundo plano, o “dernier cri” do casarão. Não fora por este excesso, a preciosidade mecânica teria tido toda a admiração própria dos pacóvios de província, por sinal dignos frequentadores dos salões da casa. Bem instalado no vão das escadarias que circulavam entre a cozinha e o nobre primeiro andar, o elevador desaguava numa copa bem guarnecida de serviços de vidros, baixelas e demais parafernália, ligando por meio de um arco abobadado, vestido de pesados reposteiros de veludo mel, ao digníssimo salão de degustação, alegoricamente decorado de tapeçarias e pinturas de mestres. Mas, retomando o nosso elevador, nosso como quem diz, de “Mam’selle la poulette à la crème rouge,” que por aquelas alturas já ocupara o lugar central numa simetria perfeita, na grande mesa coberta de alvo linho. Varria-a uma excitação, era uma viagem única, quase uma aventura da cozinha para a copa. Entre o sacolejar, vai que não vai de uma subida, um arredondar de ruídos, um afogar de guinchos, um retesar de cabos e finalmente uma paragem brusca, eis que chegou ao destino. Abriu-se a portinhola de madeira e mãos enluvadas retiraram a bela da travessa totalmente decorada ao claro gosto da sábia Tia Rosinha A arte nascia-lhe sob os dedos assim que pressentia repastos fidalgos, e hoje as cores tinham-se vestido de verde e vermelho numa orgia de odores apetecíveis. Mam’selle sentia-se inchada, não se percebia se era da forma, se antes da importância, que lhe servia de mote. Assim ufana, revestida de uma vaidade dourada como o tostado da sua pele, a galinha passa em revista todas as outras frangas que se dispunham pela mesa. A mania das importâncias que lhe pulsava sob a pele estaladiça tornava-a semelhante a uma daquelas tias de nariz empertigado, voz rouca e cérebro quase vazio, mas de aparência fabulosa, assim era Mam’selle la poulette. À excitação da subida juntava-se-lhe o orgulho tolo da importância. Sentia-se tão magnífica que se esquecera que em breve seria trinchada, fatiada, mastigada e engolida. Depois cairia no esquecimento. Mas que importava isso. Feliz, Mam’selle suspirava regozijada. Depois dos preliminares comuns ao cerimonial de uma refeição de libré, a sua vez chegou. Não tugiu nem mugiu, apenas se sentiu esvaziada de carnes, delapidada de articulações, enfim comida. Saciados os humores estomacais dos ilustríssimos convivas, de novo as librés inclinaram-se recolhendo as vitualhas, que em forma de ossos pululavam as travessas. Despidas de encanto, com um ar bastante descomposto, aqueles mais os restos de todas as poulettes, desceram da copa para a cozinha no velho elevador que cansado resfolegava na descida. O dia fora-lhe pesado, e nem o óleo nas juntas lhe mitigavam o esfalfamento daquele dia. As mazelas da idade se bem que disfarçadas, chegada a hora da verdade rangiam por tudo quanto era sitio, no caso, em tudo que era porca, roldana ou cabo. Os criados exaustos retiravam as travessas descuidadamente do cubículo, e despejavam os restos num grande panelão. Entre os sobejos da travessa maior, uma pele tisnada sobressaía, colada ao fundo, como se a pobre tivesse deixado incólume o invólucro para futuras receitas de tisnado. Um guia culinário digno de uma escrita à la mode como é de praxe nestas andanças.

E assim findou um jantar de poulettes e um velho elevador que embora caquéctico ainda cumpriu as suas funções. Na vida fugaz de todos nós, um pouco de óleo e de pele tisnada, por vezes, são capas coloridas de belas recordações!....

One Last Look - Robin Spielberg


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02 agosto, 2008

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.Ei-las , finalmente chegaram! Até breve.
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31 julho, 2008

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O Ascensorista

Joe, negro, sessenta anos, vestidos de verde-garrafa e amarelos polidos perfila-se junto ao elevador. O número um, o da ala central. Inclina-se ligeiramente, puxa a porta, abrindo-a ao mesmo tempo que sorri calorosamente. Murmura num timbre quente e arrastado de sulista:

-Bom dia Mr. Owens. It is a good day, isn’t it?

-Bom dia Joe. It seems so, indeed.

É um espectáculo de elegância o velho Joe. Sempre erecto, engomado, irrepreensível. Na tez cor de chocolate as rugas pregueiam-se horizontalmente na simetria dos seus trejeitos. O vinco das calças acompanha a elegância das longas pernas, que terminam nuns pés calçados de preto brilhante. O boné, onde as dragonas em ouro velho sobressaem, dá-lhe aquele ar chic dos anos quarenta em filme da MGM. A sua destreza no abrir e fechar de porta, bem como a sua natural bonomia e sorriso tornaram-no uma referência, no foyer, deste edifício imenso de trinta andares, mesmo no coração de Manhattan. Os mármores negros que revestem dois terços do imenso átrio, os metais amarelos reluzentes, as plantas verdes, brilhantes e profusas, o vidro que enobrece de luz a parte frontal da entrada, a par de um suave meddley na voz de Frank Sinatra, acrescente-se a frescura, ou amenidade, de acordo com a estação do ano, fazem deste lugar, o eleito de Joe Bellow. Hoje é o seu último dia. O elevador número um, o principal, aquele que ele viu nascer e crescer passará para outras mãos. Tem pena, mas a idade não lhe perdoa. A artrite já lhe tolhe os gestos. O esforço por vezes é doloroso, não o demonstra, mas depois em casa é a sua Mabel que lhe alivia as dores com as pomadas, mais as massagens. Chegou o dia que ele temia. Não deixa transparecer a solidão que já pressente. Ninguém parece saber que é o seu adeus. Entra no ascensor. Mr. Owens e Mr. Sutton vão para o décimo, Mrs Trevor para o décimo segundo, Mr. Parker para o décimo sete, Miss Page para o vigésimo, os outros dois cavalheiros, asiáticos por sinal, não sabe, terá que lhes inquirir. O espaço está completo. Entra, prime os botões. Sorri afável. Depois de devidamente esclarecido aperta o botão no andar, que os desconhecidos lhe solicitaram. Joe suspira. Mais uma subida, mais uma viagem. O carrossel dos seus sonhos em vertical. O número um dera-lhe a possibilidade de viajar na imaginação das subidas e descidas. As suas viagens, embora breves, eram sempre ricas em indução nas figuras que o pululavam. Joe conhecia bem, o pulsar daquele edifício, e muito das vidas dos seus personagens. Havia trinta anos que fazia viagens na vertical. Recorda o ano em que Mrs Trevor teve os seus trigémeos. Ocupava-lhe dois terços do espaço dado a sua expansão física. Por essa altura tivera que fazer mais subidas e descidas. Depois finalmente os três Bês nasceram. Bruce, Brandon e Barbara. Hoje têm vinte e dois anos! Como o tempo passou. Recorda o ainda jovem Mr. Sutton, Steve de nome, quando entrou na firma. Hoje director e sócio. Trinta anos Uma vida, a sua. Ali, no “Rox Building” viu as estações sucederam-se ao ritmo das suas viagens. Ora mais movimentadas ora mais lentas. O décimo andar era sem dúvida, a zona por excelência de paragem. Muitas vezes subiu até lá apenas para aspirar o cheiro da elegância bem como dos passos deslizantes daquele pequeno mundo: Owens, Sutton & Partners Consultores. O número um sempre se portara á altura dos seus utentes. Elegante, discreto e oleado. Não fizera birras, deslizara ora cima ora baixo ao som das necessidades pontuais das suas personagens. O velho Joe tinha orgulho dele, da sua subtileza, da elegância, da fiabilidade, da generosidade e do mundo que lhe dera no seu abrir e fechar de portas. Ele, Joe, filho do Mississípi, de gentes pobres e numerosas, imigrara para a cidade, quando na década de vinte a fome apertara de tal forma, que a sarabanda fora total. Ele e os irmãos tinham vindo para a Grande Maçã. Os anos encontraram-no em trabalhos de ocasião. E fora de degrau em degrau que chegara até ao Rox Building. Porteiro. Uma posição. Aprendera muito. Não fora só escolaridade, fora mundo. E isso não se frequenta, adquire-se. Sabia avaliar as pessoas. Aprendera a ser humilde sem ser subserviente. A gente, deste meio, detesta o servilismo sistémico, desprezam-no, podem sorrir ao inclinar constante, ao assentir repetido, mas no virar de costas existe aquele sentimento de quase desprezo ou então de sentido superior. Joe sabia, que entre os poderosos não se pode ser fraco, porque motiva o desprezo, não se deve ser altivo, porque irrita a pele e os sentidos de quem está ao lado. Aprendeu, pressentiu e evitou o excesso de aquiescência, ficando-se sempre pelo seu incontornável sorriso, um sofisma por decifrar. Manteve a sua postura erecta como se fora, o fio-de-prumo, porém sobe sempre revesti-lo de uma afectuosidade envolvente. Todos apreciavam Joe Bellow. Havia uma familiaridade dos anos, uma espécie de corrente de entendimento. Os pequenos favores que lhes pediam eram satisfeitos com sabedoria e contenção. Nem mais nem menos. O ponto exacto de viragem entre o pedir, fazer e agradecer. Um tratado de bem viver, era assim que se podia ser definido Joe Bellow, o ascensorista. Uma época que cessa hoje. A idade encheu-se dos anos, as memórias saturaram o presente, os ritmos tornaram-se contínuos, os espaços estreitaram-se e os costumes tomaram aspecto de aguarelas. Um outro século que surge vibrante na dobra da mudança incógnita. O que era já não é, o que for, poderá, talvez vir a ser. Visualiza, em seu lugar, um porto-riquenho de cabelo oleado e de estatura mais baixa, menos contido, usando um tom familiar e nada circunspecto, pelo contrário, quase de igual para igual, que irá abrir a porta e carregar nos botões. Haverá um franzir de sobrolho, um pigarrear, um ah, hum e depois… depois… tudo subirá e descerá no rolar afinado dos cabos mais das alavancas. Tal como a vida.

Joe sai. Não olha para trás. Já recorda. O ontem e o hoje já foram. Amanhã recomeça a subida do outro tempo que lhe resta.


I did it my way - Frank Sinatra


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29 julho, 2008

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Faire Pendant

No calor sufocante do Inferno, a alma entreabre o casulo que a reveste e tenta respirar. Lá fora, na abóbada que cobre o lugar, o calor dilui-se por entre espirros de vapor, que infernizam as outras almas em passeio nocturno. Tímida, incauta despe-se da sua pele e voa pelo espaço. Vagueia em ziguezague, está meio zonza, a esfera é pesada, enxofrada e arrepanha-lhe o espírito. Imprime mais movimento ao seu vaguear, como se a rapidez lhe desse o alento que sente desfalecer. O lugar para onde a enviaram é casa de expiação, sente-o. A morte apanhara-a desprevenida. Estivera dançando com o luar, e num pestanejar azul fora-se, lado a lado, com um suspiro de adeus. Depois fora a viagem. O casulo onde a tinham depositado, após pesada, medida e avaliada, tinha-a forçado a uma postura vertical que lhe comprimira os neurónios, de tal forma que ainda não apreendera o todo da sua novel situação. Para já e após um breve vistoria apurara que o lugar era variável em temperatura de acordo com o número de casulos que chegavam. Regressada ao seu alvéolo, prepara-se para descansar um pouco quando entreouve uma conversa de outras duas almas, por sinal um pouco afogueadas que lhes confere um tom rosado de quase felicidade. Conversavam, assim, as energias:

-O ostracismo grassa lá por cima.

-Nem me diga. Os meus últimos dias foram péssimos…Não me ligavam nada. Posta assim de lado como se a lepra me tivesse tomado.

-Mas então porquê, o que é que a querida fez, ou não fez?

-Olhe a querida sabe que no meu país, pois a menina vem de um outro mais a norte, e desconhece as regras, mas como lhe contava, lá por bandas do Oeste”quem não é por mim é contra mim”. Uma frase já muito antiga, pisada, descartada mas que serve sempre para vestir quem calça os corredores do Paço.

-…?

-Eu explico, querida. Tal como na moda, as ideias devem faire pendant, faz parte das alíneas do Tratado Europeu. Não somos nós Europeus, todinhos, pelo menos nesta secção? Veja as benesses que temos em relação aos pobres chinesitos…

-Lá isso é verdade, temos mais direitos…muitos mais…mas também eles não estão habituados, não lhes deve fazer impressão.

-Rica, mas como lhe dizia, tive assim um ataque de rebeldia e decidi vestir a minhas ideias. Foi o fim, querida. O fim! Fui logo posta de lado, riscada e enxotada, assim à laia de mosca varejeira. Senti-me a coisa mais abjecta apenas porque pensei, veja lá, mas fiquei tão desgostosa, ferida, magoada que tudo isto acabou por inundar o meu ser, e assim finei-me.

-Pobrezinha da rica. Olhe, myself também…, estou ainda a acomodar-me, pois que como sabe, só cheguei após o resultado do referendo na minha Ilha. Naturalmente que votei Não. Logo, fui considerada persona não grata e expedida directamente para este lugar. Lá fora vive-se numa banheira de espuma sem água. Só marketing. Fazem-me lembrar os nossos duendes mais os potes de ouro, só lendas….Como vê é tudo igual, por isso é que estamos na ala da Europa que por sinal é enorme.

-Pois a menina tem toda a razão. Andei eu, uma vida inteira a pensar, e a penar pela Europa, e afinal vejo que este lugar está repleto. De boas intenções vaiadas. Um dia destes, o continente passa a ser aqui. Pelo jeito parece que a população aqui cresce a olhos vistos. Se excluirmos o ar, até se está bem melhor do lá em cima ou em baixo, olhe que perdi o tino, e depois, querida, podemos ter as nossas ideias, não podemos?

-Ah, claro que sim, e até fazemos manifestações, e somos ouvidos… veja uma coisa quase inaudita para mim… desde que a Ilha passou a estar em Paz, como dizem, tudo deixou de ser ouvido. Era lá para os lados de Bruxelas que cozinhavam as nossas vidas, sem sequer se dignarem a saber o nosso prato preferido. Tudo igual. Uma vergonha.

-Um horror, rica. Sabe que ao olhar para trás vejo que não passei de uma nefelibata. Nem me apercebi que estava rodeada de tartufos e mentecaptos. Fico estarrecida. Agora!

-Ai rica, que a menina fala caro. Também só pode né? Lá nas suas bandas são todos bem-falantes e pouco mais…Um país de linguajar pomposo para esconder a pobreza de…

Ouve-se um estrondo, seguida de uma algazarra, logo sobreposta por uma voz imperiosa. As duas almas calam-se. Escutam. Então a alma lusa, aflita contrapõe:

-Ó rica, ó rica, cale-se que vem aí o meu chefe, deve ser engano, mas se me apanha a falar estas coisas ainda me despromove e …

Lá vou parar ao quinto dos infernos! Sabe como é, não sabe, rica? Sempre à faire pendant!


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28 julho, 2008

O que é atraente nem sempre é bom, mas o que é bom é sempre belo.

(Ninon de L'enclos)


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27 julho, 2008

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Urze e Giesta

(…) X


É no vento que sopra por entre os montes, é no ar fresco bebido de neblina, que Isabel repousa a cabeça. Pedro já partiu. Está sozinha. Vinte anos depois está sozinha. Tem os filhos, é verdade, mas são eles que repousam a cabeça no seu ombro e não ela. Não tem onde descansar a cabeça. Pedro sempre esteve lá, foi o companheiro, o amante, o amigo, o marido, o pai. E agora? A raiva invade-a. Não sabe contra quem lutar. Sim, porque uma luta tem sempre dois rostos. Onde está o outro? A ausência do nada é pior que o excesso do todo. Como retomar uma vida onde o princípio se desfez? Ah! Que raiva, que dor, que esgar. Tinha que fugir, fugir. Fugiu da lógica e veio refugiar-se no seio da vida, onde os vagidos ainda ecoam e as vontades são dobradas. As suas raízes são estas, o seu mundo é este. Lento, rude, talhado por entre gumes de rocha cinzenta, dura, árida, erguida em pique contra o céu. Neste mundo, sem redondos nem subtilezas, está a sua alma. Mas onde pára? Onde dorme? Algures, na planura do vale pespontado de amarelo e verde, ou mais além, no sorriso cerrado dos montes, naquele declive rosado, não, talvez mais além ainda, naquele punho fechado de pedra agreste desafiando o céu mesmo por cima. Estará mesmo por ali? Se no seu vaguear perdido de anos, se no seu adejar contínuo, se na sua busca de sentido humano tivesse crescido para além das grades da forma, se tivesse distanciado, e liberta lhe gargalhasse rouca e profundamente, ofendendo-lhe os tímpanos, profanando-lhe os sentidos. Era o que sentia. A revolta. A alma reencontrara-a ou ela reencontrara-se. Tudo jorrava, agora, numa vaga surda, que se formava no estômago e lhe rebentava em explosão no cérebro. A lógica perdia-se. A infelicidade tomava-a num jacto amarelo de enjoo que a entumecia causando-lhe arrepios. Agoniada, cambaleava, mas logo em seguida, endireitava-se em ímpeto de garra, e num frenesim de segundos, disparava mentalmente contra tudo e todos. As pernas acompanhavam os disparos mentais. Os passos estugavam-se como se fugisse de uma horda em tumulto. Caminhava. Mentalmente látegos de vitupério formavam-se na língua prontos a serem expulsos. Mas não os vomitava. Com raiva e dor, engolia-os. Lentamente o cansaço invadia-a num ofegar de calor e suor. Empapada, vermelha e cansada, acalmava, então.

Isabel engalfinha as mãos. São esguias e tratadas. São mãos de cidade. Não possuem o sabor áspero da terra, apenas o dedilhar do saber mental. Baixa o braço, e de mão aberta apanha uma espiga madura. Sem ver, tacteando abre-a, esfarelando as flores sésseis já cheias, depois deixa-as cair, e de novo outra flor, e mais outra, ao longo dos seus passos. Caem abertas ao vento, as mãos. Estão vazias. Ergue os braços e em concha aberta, dirige-as para o zéfiro e grita. Porquê? Porquê? Deixa-se cair, lentamente, O ar assobia-lhe. Enfrenta-o ajoelhada. Não grita nem gesticula, apenas se deixa desabar perdida no tapete de erva macia e húmida. Ali fica imóvel de olhos perdidos no azul mosqueado de pedaços pastosos de branco. O mundo gravita à sua volta. Fecha os olhos. Entreabre os lábios que humedece com a ponta da língua. Instintivamente ajeita os cabelos que se emaranham com o vento. Deixa-se ficar queda e leve aspirando a brisa que abraça o fim do dia.

O dia começa a esconder-se por entre os cabeços dos montes. O azul tinge-se de amarelo e violeta, depois paulatinamente lança a rede das estrelas. Isabel levanta-se, sacode-se, articula-se e caminha.

Na velha casa vestida de granito e madeira, a luz já aquece a noite. Isabel empurra a porta pesada que chia nos gonzos meio ferrugentos e entra na cozinha onde Adelaide, a mãe, faz o caldo pra janta. Olha-a como se a visse pela primeira vez. E compreende então. Compreende o que sempre a magoou. Compreende o desamor, a amargura e aquela rudeza magoada. Então, como se fora ainda menina , sorri à Mãe com a alma nos lábios.

Silk Road - Kitaro


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22 julho, 2008

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Descendo o Tempo.

Entra, puxa a porta de ferro forjado, de folhas hirtas, que ao dobrar se animam em laços de toucado. Encosta-se à parede. Estica o braço, e com o indicador em riste onde a unha vermelha sorri, prime o botão. Rés-do-chão. Um ligeiro solavanco faz deslizar os cabos já cansados de sobe e desce. Ela, figura solitária olha-se no espelho que engalana o cubículo forrado a vermelho de veludo já esgaçado. Devolve com trejeito, o olhar. A boca, carnuda e húmida de polpa carmim, deslaça um sorriso que restitui à imagem. Os caracóis sedosos escapulem-se do petit-chapeau que lhe cobre o lado direito. A minúscula rede enevoa-lhe as pupilas, que se percebem aquosas, cor de mar. Figura gentil, coquette.Gira sobre si num trejeito de momice. Depois recosta-se ao veludo da parede. Lento num estrebuchar de idade, o elevador desce no tempo. O chiar monótono alinha-se com as memórias. O tempo vivido aqui e ali. O zurzir dos gritos interiores, prontamente alinhavados em súplicas ou sorrisos de promessas. Foi hoje, lá quarto andar onde vive, mora, se melhor pensar. Lá, onde o seu quotidiano vazio se prende às paredes profusas de cores e penumbras. É no terceiro andar da sua vida, que abre o álbum dos retratos por definir. É por aí, que puxa a porta adereçada e toma a descida. O hoje, já ficou para cima, na caixa escura, onde circula. Agora, começa o ontem, quase fresco de imagens e parábolas de quotidiano. Gerardo, o seu amante, o seu homem de sempre. Viril, canalha e lascivo. A sua sorte, o seu vício e o seu prazer. Ora uma eira de sentidos, ora uma campa de camarço. Não fazia sentido viver sem ele. Mesmo no desventrar do seu corpo, no repúdio do sentir, mesmo quando as entranhas se contraíam em vómitos e o sangue borbulhava de rancor, Gerardo era a seiva do seu Ser. Todo ele. A sua figura morena esquiva, lúbrica, brilhante e autoritária. O seu olhar cruel, profundo, desdenhoso, devasso e amante. Tudo nele tresandava a vida. Amava-o humilhando-se. A sua memória sabia-o, mas a sua carne era um animal esfomeado, necessitava da saciedade tal como o espírito se alimentava da raiva subcutânea fermentada nos poros, e que eclodia naquela dualidade de amor-ódio, trave mestra do seu quotidiano. Os dias do seu terceiro andar. O elevador desce inexorável. Ouvem-se esbatidos, saídos de uma grafonola, a voz gasta de Piaff e”La vie en Rose”. Um calafrio perpassa-a. Sacode-se como que extirpasse algo impalpável todavia objectivo, algo pegajoso e indesejado, a memória da verdade. O elevador desce. Segundo andar. O Pai. O corpo fica convulso. As unhas vermelhas cravam-se na carne. A pele láctea tinge-se de violeta. O seu Estigma. Revê o olhar negro, encovado, roxo, bruto. Aquele hálito de surro que embebedava o próprio ar. Aquelas mãos grandes, suadas que lhe procuravam o corpo nas noites geladas. Era ele, o homem que lhe aquecia a cama, lhe violava o ventre e roubava a alma. Era aquele monte de desejo putrefacto que se servia dela. E a mandava calar quando gritava. Era o caniço que o dominava e nela se satisfazia. Na filha. E fugiu, fugiu da podridão, fugiu da servidão, do ódio, da convulsão. Veio para o mundo. Que mais poderia fazer, se outra coisa, não sabia. A sua sina fora aberta no dia em que o pai dela se servira. Menina ainda. Depois fora o hábito, depois a perícia e agora a arte. Sim, arte, em tudo há arte. As imagens esbatem-se lentas mas fortes. Abalam. O negro, o escuro e o vermelho. Tingem a alma. O elevador continua a sua descida. Está a uma nesga do primeiro. A Mãe? Não se lembra. Fugiu. Sabe que fugiu com outro. As feições? Dizem que ela, Lisete, é-lhe parecida. Talvez.

Primeiro andar. O elevador pára, sacudindo-se como se os cabos mais não aguentassem. No baloiçar, a memória sorri. Um bibe de riscado, uma côdea na mão, umas tranças meias-feitas. De mão estendida procura tocá-la suavemente. A garota volta-se, acena e sorri. Um olhar doce, umas covinhas malandras. Ágil desaparece. Vai numa corrida desengonçada. A escola é mais além. Vê-a sentada, chupando no polegar enquanto pensa. Depois lesta, dedo no ar. A visão desvanece-se. Outro dia, um grupo de ganapos correm pelo campo fora. Vão às papoilas. É Maio. A brisa percorre o ar, e os risos dançam com ele. São cinco, seis, não sete garotos, todos povoando o verde do campo. Mãos e risos ao vento. Um dia feliz. A memória desse dia torna-a rosada. Endireita o corpo, olha-se ao espelho, ajeita a toilette, belisca as faces, compõe a saia, endireita o corpete, mira a ponta da botina e espera pelo rés-do-chão. O pátio, de mármore escuro, está do outro lado. A tarde transmuta-se na noite. Há penumbra amarga. Abre a porta que chia sob o peso das lembranças. As folhas parecem ter murchado ligeiramente. Carecem de uma lufada de memórias frescas e leves. Coloca a malinha no antebraço direito e calça as luvas. Pisa, serena, o patamar. A grande porta da rua está mesmo à sua frente, é só descer os degraus no tempo e calcar as quelhas do desatino.

O elevador fecha as luzes e dá as boas-noites.



.Piano Concerto No. 21 In C.2 Moverment - Wolfgang Amadeusz Mozart
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