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"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
Silêncio
Correr na esteira do passado ao longo do corredor da vida, beijar o vento na aragem da memória, eis o presente de quem ainda respira mas já revive a neblina. São os cinquenta. Janela semi-aberta para a meia-idade e ainda semi-fechada sobre um tempo maduro que se côa. É assim que se equilibra o tempo. Embala-se nos acordes que brotam do leitor de sonhos, o corpo desfalece na languidez do sofá verde e o olhar perpetua-se no adejar do cortinado que sincopado rodopia em passos de danças leves e aéreos. O olhar magoa-se mas memórias e os lábios entreabrem-se em húmidos rios de palavras por dizer embora por demasiado pensadas. Houve duelos interiores que pereceram na arena do coração. Houve vontades desfeitas por imposição do soprar do vento da quietude, houve desejos amordaçados por imperioso bem viver, houve sonhos abortados por necessidades ditas do quotidiano. E o tempo escoou-se por entre os dedos, como se fora a areia em peneira de criança. No rosto, chão de linhas escavadas, talismã dos anos, existe um pouco de doçura e brilho fugaz de porvir. Esse chão que pretende ser o palco de uma vida, esse mesmo chão que envelheceu antes do espírito ou até mesmo do sentir. Será possível a máscara não casar com o costume? Perscruta o ontem na busca da resposta que se dissolve na maré do presente e quem sabe, na onda do amanhã. O que vê? Tanto e simultaneamente tão pouco. Dicotomia? Não, apenas perspectiva de tanto vivido, puxado, repuxado, apaziguado e quase esquecido. Dores, gritos, tumores coarctados onde, porém a cicatriz permanece. As preces erguidas em arroubos de esperança, o acreditar no amanhã, o esperar pelo que não chegará. Tudo, tudo, curvas de um percurso de vida. Hoje pára-se e olha-se. Não se respira porque o tempo não o permite. Apenas se inspira. Pertence-se a esta nova urbe como se fora inquilino não desejado. Tem que se habitar o prédio, todavia os lances são penosos e as varandas ventosas. Opaco desceu sobre a gente já amarelecida. E a voz? A voz é mandada silenciar como se fora som monocórdico por demais dissidente em ensaio de orquestra. Torna-se óbvio, que se perdeu o estrado, mas é latente que ainda se é necessário na subsistência da precariedade do presente. Uma espécie de salvo-conduto para se continuar. Ter cinquenta ou sessenta é ter muito vivido, e ainda ter muito por viver. Não é credível a frase por julgada excedente. Ter cinquenta é ser excedente no mundo precário de hoje. Saber julgado quase obsoleto, imperfeito ou até mesmo destituído.
Na sala de sofás verdes a porta fecha o tempo. A música parou o seu débito. O cortinado deixou a dança do vai e vem. A noite sobreveio ao dia no interlúdio do pensamento deslizante. É assim que o tempo a recolheu, sentada e pensativa. Tanto ficou por fazer, tanto por dizer, e mais ainda por amar. Houve pressa e correria. Um descartar de gente, na vã e inútil procura, da alcova ou do sofá perfeito, da primazia algures no mundo. Tudo isso não está, não existe, não se atropela, não se compra, não se tem ou se burla, apenas se sente. Sentir é uma arte, um dom. Sentir não é só rir, lacrimejar, chorar, ansiar, doer, é também e sempre partilhar e dar, dar-se. É essa a chave da vida. Abrir o olhar da alma no girar da vida.
E o silêncio casa-se outra vez…
. Urze e Giesta
(…) VIII
Sente um aperto, como se fora um trago de saliva atravessada. Respira fundo. Daqui a pouco porá os pais minimamente ao corrente. Fá-lo sobretudo por si. Tem que se confrontar a si mesmo. Não é fácil. Não é fácil despir o casaco de uma vida, e ficar-se em mangas de camisa ignorando se a chuva cairá. Nada é fácil neste momento de opção, a ferida que abriu na sua carne tem que ser cauterizada ainda que lhe arda muito. Não sabe bem, a razão, deste golpe que de certo modo, se auto-inflige, porém a sua consciência ordena-lhe que mude, que avance. Nas páginas do seu livro de vida, chegou aquele momento, em que o enredo se deslaçou, perdeu o ritmo, e tornou-se enfadonho. No palco, o acto esvaiu-se, o actor recitou-o em ladainha sincopada e átona de paixão. Porém, o frémito renasceu algures no seu interior, arrebata-o para um outro acto, numa outra ribalta, perante um outro público. Para trás ficou o delinear de situações, o colocar hipóteses, o amassar equívocos, o moldar desejos. Cansou-se. Não, não foi bem isso. Tem a secreta noção da sua falha de objectividade, do seu deixa-que-deixa cómodo e encantador deslizar por entre a vida. Fora assim que sempre se sentira. Fora assim que o conheciam. Encantador. Um tipo que não obstaculizava nem pessoas nem coisas. Fora o seu encanto lasso, algo indolente que o conduzira àquela página rasurada de letras iguais quer no tamanho quer na forma, onde os pontos tinham-se evaporado, as vírgulas descansado e outras exclamações viajado. Monocórdica e insalubre. Letras de uma caligrafia assaz recortada e elegante, arrumada e quase sensaborona de perfeita. A sua caligrafia de vida era insonsa. Era isso. A sua vida era insonsa, monótona, podia chamar-lhe átona também. Até há bem pouco parecera-lhe prosaica hoje, no entanto, causava-lhe um bocejo, daqueles saídos da alma entediada. No dobrar da escolha, queria contar o porquê da sua partida. Não almejava compreensão mas apenas paz de dever observado. Era um daqueles capítulos que a educação o obrigava a cumprir. Como fazer compreender a alguém que a vida deixou de ter encanto, aquela mesma vida que eles sempre tinham sonhado e que ele conseguira, e agora chegar e dizer, estou farto do que tenho, quero outra coisa que nem sei bem o que é. Era incompreensível para a geração dos pais. A existência não morava na essência antes no seu acidente. Era quase como fazer entender a uma criança que o amanhã renasce do ontem. A sua luta, mais do que as palavras que lhe vestem os pensamentos, é um duelo nas suas entranhas. Não consegue verbalizar os sentimentos que o avassalam, que o magoam, que o deixam vergado. Pedro sabe que o caminho é tão obscuro como as manhãs acamadas de neblina. Pensa nos pais. Deslizam pela idade na rapidez do fim. Parecem bem mas vão decaindo. Sabe que a felicidade que almeja, ou talvez sonhe nem sempre morou por ali. Relembra os dias magoados de silêncios e avaros de alegria. Houve, outros, também é verdade, que entornaram de sentir, todavia não quer que os seus passos pisem a mesma calçada de vida, aquele desassossego que o traz inquieto e lhe serve de sonho aos sentimentos cansados.
-Olá, pai. Como vai? E inclina-se para o beijar.
-Pedro, até que enfim. Estávamos à tua espera já vai para uma hora. Ora a minha saúde? Vai indo uns dias melhores outros pior. Cá se vai andando.
-A mãe? Onde está?
-Estávamos no jardim. Lá ficou. Vai lá ter. Já sabes como é a tua mãe, já estava preocupada.
-Apanhei muito trânsito. Já se esqueceu, como é? Isto de andar de carro cada vez está pior. Esta cidade está caótica, digo-lhe isto vai de mal a pior.
- Pois, pois, mas vai dizer isso à tua mãe.
E lentamente ao sabor do claudicar do pai, Pedro desliza também pelo corredor. As paredes trazem-lhe sempre as memórias do outro eu, aquele que se perdeu algures no tempo quando as velas deixaram de ser cantadas com vozes infantis. A outra voz que brota das paredes e se une ao trotar da infância, a de Afonso, o seu irmão do meio. Depois o choramingar de Margarida, seguido do esganiçar peremptório da sua resmunguice. Os sons desvanecem-se mas as imagens dançam-lhe mesmo na frente dos olhos. Correrias, choros, risos, gritos, brisas de um passado revivido nos degraus da memória. Tempos idos que lhe chegam em ondas de nostalgia. A casa dos pais sempre o tornara ora melancólico ora convulsivo. Uma dicotomia inexplicável que o fizera fugir muitas vezes mas agora. Hoje, não o ía fazer. Enfrentaria. Sabia que ía causar mágoa, espanto e estupefacção. Respira fundo e sorri, maquinalmente. Sorri para aligeirar a pressão dentro de si.
Chegado ao pequeno jardim onde pululam os verdes matizados sob os fios de sol que visitam o recanto, Pedro beija a mãe. No olhar de Maria Luísa existe aquela doçura que embala a tristeza e acorda o sorriso sempre que o olhar poisa num dos seus filhos.
-Olá Mãezinha. Como vai?
-Pedro, finalmente. Estás com um ar cansado. A Isabel e os meninos e estão bem?
-Tudo bem. Manda-lhe, aliás mandam-vos beijinhos.
-Há já tanto tempo que não os vejo. Devem estar crescidos e a Isabel, sempre ocupada na ciranda de sempre, não é?
-Sim Mãezinha. O tempo é sempre de correria. Já sabe.
- Senta-te Pedro. Vamos almoçar. O bacalhau já foi aquecido mas ainda deve estar bom, é o que tu gostas.
-Obrigado Mãezinha. Mas ainda não me disse como vai?
-Vou indo, Pedro. Na minha idade dou graças a Deus. Há quem esteja bem pior. Só tenho a tensão um pouco alta mas quanto ao resto está tudo bem. Mas deixemos a minha saúde, conta-me coisas sobretudo dos pequenos. Tenho tantas saudades deles. E pensar que não vivemos assim tão longe uns dos outros.
-Pois é verdade. Mas enfim. Lourenço está na faculdade, como a mãe sabe, e dá conta do recado. Continua responsável como sempre. É tão sério o meu filho mais velho. Muito metido nele. O Caetano, ora simpático ora rabugento e infeliz. Lá vai palmilhando a calçada. Parece que o mundo lhe pesa no olhar. Desde que frequenta a Academia de Santa Cecília tem mais interesse pela escola. Claro está, que a música é o seu mundo. É um rapaz tão altivo mas tão meigo também. A sensibilidade transpira-lhe em todos os poros. É difícil de lidar este meu filho. Perpassa-nos com o olhar como se buscasse sempre a verdade de tudo. Por vezes torna-se mudo de rude. A piolha…essa, está na fase do telemóvel. São mensagens atrás de mensagens. Fecha-se no quarto e passa horas naquilo. Mais não faz porque a mesada já foi cortada bem como os carregamentos. No colégio lá vai indo, podia ser melhor mas também não se maça muito. …Mas a Teresinha vai ser difícil. Lembra-me um pouco a minha irmã…muito senhora do seu nariz.
-Fico contente por estarem todos bem. Tenho que ir a vossa casa. Qualquer dia damos lá um salto. Mas não disseste nada da Isabel. A tua mulher como está?
-Bem, Mãezinha. A Isabel está sempre bem. Muito trabalho lá no Instituto, sempre ocupada com as suas pesquisas, sempre atrasada para tudo, mas está bem
- Oh, ainda bem.
Maria Luísa sem saber porquê muda o tema da conversa. Pressente com aquele sexto sentido de mãe que algo se passa, mas não tem nem quer saber mais do que lhe é dito. Na voz do seu menino ecoaram laivos de aspereza que ela lhe desconhecia. Um certo cansaço que a fez ficar quase em alerta. Porém rapidamente se descansou dizendo-se que o trabalho devia ser excessivo e que o seu Pedro precisava de férias. Esta altura do ano era sempre terrível. Rápida e solta comenta:
-Não dizes nada sobre o bacalhau. Já não gostas?
-Oh mãezinha está sempre divinal, nem precisa de adjectivos. Mas vá lá…e colocando os dedos da mão direita em arco leva-os aos lábios e dá um sonoro chocho…
-Ah, ah, ah… há tanto tempo que não via nem ouvia este gesto, meu filho. Que saudades eu tinha…
Alberto que se mantivera em silêncio pigarreia e diz:
-A tua Mãe não perdoa…já sabes como é… Fico feliz por estarem todos bem. Tu pareces cansado. Muito trabalho? Novos projectos?
- Sim Pai, um pouco de tudo isso.
O silêncio desceu na mesa por entre o ruído seco dos talheres, e o som cavo dos maxilares. A trivialidade simples do lugar-comum também se senta entre o bacalhau e a sobremesa como que aligeirando o travo forte do café que se seguirá servido em tabuleiro de revelação.
-Que rico almoço Mãezinha. Que bem me soube. Estou mesmo cheio.
-Ainda bem, Pedro. Bem podias vir cá mais vezes e trazer a Isabel mais os pequenos. Dava-nos tanta alegria. Tu sabes como nós gostamos da tua mulher e dos pequenos.
-Eu sei, eu sei. Mas isso é impossível com a vida que temos A Mãe e o Pai já o sabem. Depois eu tenho algo para vos dizer.
- Sim?
O olhar de Maria Luísa e Alberto afere-se como se finalmente a cortina do palco se abrisse. Entreolham-se rápidos e expectantes aguardam pelas palavras do filho.
- Tive uma proposta de trabalho irrecusável e vou aceitá-la. Um projecto de construção de um aeroporto . Vou acompanhar a obra.
-Fazes bem. Ai que bom e isso onde é desta vez?
-No Chile.
-No Chile, Chile, mesmo, ao pé dos pinguins?
-É isso tudo. Mesmo na ponta, quase perto do Antárctico.
-Bem … e por quanto tempo?
-Seis messes a dois anos.
-Pois. A verdade é que eu e a Isabel precisamos de um tempo. Há já algum tempo que a nossa relação está doente. Existe demasiado silêncio entre nós Estamos acomodados. Vamos dar um espaço para podermos respirar cada um a seu modo. Não me olhem assim. Nada acabou, mas também não começou. Estamos numa encruzilhada.
-Oh Pedro! Diz Maria Luísa lacrimejante. -Vocês são um casal tão lindo! Meu Deus o que se passa na nossa família? O que se passa tudo de desmorona. Meu Deus!!.
-Calma, Mãezinha. É só uma trégua… uma pausa para repensarmos. Eu preciso, ela precisa, e os pequenos precisam também.
- Mas afinal o que se passa convosco? Estão zangados, infelizes? Têm três filhos lindos, uma boa casa, as vossas carreiras estão bem. O que querem mais? Não, não vos entendo. E um soluço afoga-lhe as palavras que se desfazem na garganta.
-Mãezinha compreenda, precisamos de espaço, precisamos de nos sentir outra vez.
Alberto que se mantivera mudo e quedo. Fala então.
-Filho! Não sei o que te diga. Compreendo-te quando falas na necessidade de te repensares. Compreendo-te e percebo a tua inquietação, o desassossego que te torna taciturno, a necessidade de escape ,a luta interna de busca. Ancestral, imemorável o predador renasce sempre. Compreendo-te muito bem. Sou teu pai mas também sou homem, e já tive a tua idade. Mas, Pedro, num casamento, lembra-te sempre, que mais importante do que olharem um para o outro é olharem sempre na mesma direcção, e depois como diz a sabedoria popular”a coisa mais importante que um pai pode fazer pelos seus filhos é amar a mãe deles”, lembra-te destas palavras e faz-me o favor de ponderares a tua decisão, está bem filho?
-Já está ponderada, porém terei as suas palavras em conta. E não vamos fazer drama, Mãezinha, peço-lhe. Eu até podia ter ficado calado e deixar as coisas correram.
-Filho nem sabes como me sinto. Logo tu de quem eu tinha tanto orgulho…
-Quer dizer… nada, nada. Pronto. Aqui está o que vos queria dizer e também pedir. Dêem uma mãozinha à Isabel enquanto eu estiver fora pelo menos nestes primeiros seis meses. Vamos serenar e tentar achar o que está perdido, está bem? Posso contar convosco?
-Claro que sim filho - responde-lhe Alberto. -Afinal todos somos pais duas vezes, não será? Vai descansado que nós cá faremos o nosso melhor.
Pedro recolhe finalmente a ansiedade.
A Catedral
No silêncio da catedral ecoam passos soltos e breves de alguém. O interlúdio do dia adeja por entre a rosácea de miríades lampejos. Feixes rosados, azulados e oiro puro cruzam as paredes. Há paz. A figura genuflecte mesmo junto ao altar em prece ardente. Corpo arquejado ergue as mãos em triângulo de oração. O frémito percorre-a dando sobressalto à figura. Inclina-se mais e mais, esconde o rosto em profundo recolhimento. Assim fica por momentos. A prece termina, alheia ergue o rosto, onde vibrátil uma gota de água rola. Outra e mais outra. Assim leves, simples e puras, as lágrimas escorrem das mãos para o braço deslizando pelo cotovelo direito assente sobre o genuflexório. Sacode-o imperceptivelmente. Um murmúrio solta-se dos seus lábios fazendo emergir um suspiro de paz interior, seguido de um brilho de crença no olhar. Levanta-se, benze-se e lentamente desce o trifório central onde no alto as ogivas entrecruzadas sopram hinos altaneiros. Já no exterior, protege os olhos desse sol casado em céu azul. Avança uns passos, ergue o rosto. Olha a pedra rendilhada, que se ergue dos contrafortes e arcobotantes, ali mesmo ao lado. Pedra cantada de mãos ásperas. Afagos de arte esculpidos em preces de cal humana. No beiral nascente, povoando o algeroz, três gárgulas, hediondas mas majestosas, feias e retorcidas abrem as bocas despidas de raízes de ser. Nos rostos disformes, a quem a pedra tingiu ainda de mais negro, e o artista prodigalizou a loucura em pupilas vazias, perpassa o lodo fétido do sentir errado do mundo que se enxagua sempre que o céu se tinge e quebranta.
Mais acima, lá quase no alto, o pináculo nascente vasculha a imortalidade dos dias na quimérica fé da bem-aventurança. A figura suspira albergando no peito a esperança da sua fé. A catedral jaz imutável no bem e no mal, na sua fidúcia de porvir. O método da alma mora ali.
Um dia branco |
Dai-me um dia branco, um mar de beladona Um dia em que se possa não saber.
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