Quem sou eu

Minha foto
Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

12 junho, 2008

Porque estamos no Santo António, e porque amanhã faz cento e vinte anos que nasceu Fernando Pessoa,
e porque para além do seu reconhecimento como o mais representativo poeta do século XX, segundo o crítico literário Harold Bloom, também a simplicidade que a liberdade poética lhe dava bem como a amor à sua cidade natal , merecerem-lhe algumas quadras populares que aqui deixo em jeito de cheirinho à alegria que desce dos bairros até á Avenida.

Mangerico, mangerico

Mangerico, mangerico
mangerico que te dei
A tristeza com que fico
Inda amanhã a terei.

O mangerico comprado

O mangerico comprado
Não é melhor queo que dão
Põe o mangerico de lado
E dá-me o teu coração.
LA VAI LISBOA - AMALIA
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A Terra

Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.

Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã.

Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!

Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem.

Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!

E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois.

Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!

A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos.

Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!

Miguel Torga






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.01 Once Upon a Time in the West {from Once Upon a Time in the West} - ennio morricone

06 junho, 2008



Nocturne - Alexander Borodin

Urze e Giesta VI

(…)

O Tejo espreguiça-se morno lá em baixo. As águas semi-onduladas lavam o resto da manhã. O sol borda o céu de luz, e há aquele espelho luminoso que reflecte o mar, mais o outro azul, na parede do dia. Mais lá no alto, os telhados captam a quentura da cidade. Descem pelas ruas passos miúdos de gentes apressadas e chia no empedrado o rolar dos velhos eléctricos. Floreiras aqui e além por entre velhas casas de varandas torneadas que o tempo tornou cinzentas dão o toque único à sua cidade. Pedro respira aquele ar marítimo pontilhado de luz com vómitos cinzentos de fumo. É Lisboa, a sua terra. Captar a sua essência é quase como agarrar o significado da vida. Sabe que existe, que se espalha em cada momento tal como a cidade se desdobra em cada esquina. Linhas paralelas de ser e estar. Olha, uma vez mais, o rio, buscando na sua languidez a calma interior que tanto necessita. Abarca com o olhar a paisagem, depois deixa o estirador, veste o casaco, pega nas chaves e sai. Cá fora suspira e inspira. Entra no carro e toma a direcção do Príncipe Real. É ali quer os pais vivem na velha Rua do Jasmim na velha casa de varandas estreitas e janelas longas, onde o sol depois de ter rebolado pelos telhados vermelhos se vem anichar na janela defronte. Os gerânios sempre vermelhos, memória indissolúvel da sua infância, adornavam o reflexo que o acordava todas as manhãs, ora vestidos de brisa ora despidos e molhados. Os tectos altos, as tábuas estreitas e corridas lembravam-lhe o cheiro da cera mais dos bibes. Nas traseiras fica o quintal, hoje prosaicamente chamado de jardim. Na altura, ele e o irmão tinham-no transformado na mais fantástica selva. A imaginação vestia-os de personagens de Salgari, de piratas, de exploradores, de tarzans e tantos outros. Era, apenas e somente, o rio líquido do faz-de-conta. Uma infância feliz, não fora o pai sempre austero e quase amargo. Nunca fora pródigo em afectos nem sorrisos. Exigente todavia indiferente, colérico mas glacial. Um a figura de contradições igual a si mesmo. Do sorriso à sanha era obra de um trejeito. Ainda recorda o medo que se apossava dele quando o pai o chamava. Hoje, pese o tempo estiolado consegue compreendê-lo e amá-lo melhor, mas o corredor que ambos percorrem tem tempos muito diferentes. Seu pai precipita-se inexoravelmente para o fim e ele está no meio de um percurso num sentido diverso.

…………………….

Debruçado sobre a secretária de madeira já bichada de velha, assente sobre um chão de tábuas desbotadas e cinzentas de pó varrido, Lacerda escreve aplicadamente o Deve e Haver da Companhia de Algodão. Os óculos descansam-lhe na ponta do nariz afilado, o rosto está vazio como se a monotonia do serviço lhe roubasse qualquer expressão A cor é pardacenta, amarela e desviada, igual à sala onde se senta. Tudo é mofado, velho e decrépito. A fronte generosa encolhe-se perante o ritmo rabiscado do aparo arranhando o papel grosso em tinta violeta. É um homem ainda jovem. Cabeça farta de cabelos claros puxados atrás no óleo da brilhantina. A camisa branca descansa sob uns suspensórios perdidos no excesso de pano. Entre os cotovelos e os pulsos, vestem-no os manguitos já rasos do coçar da mesa. O olhar, quando erguido é opaco de monótono como se algures o tempo tivesse parado, surge entre círculos azulados de sono e de sonhos desfeitos. Os ombros estão descaídos num abater de comiseração. Nota-se a magreza do corpo longo. Flagela-se no dever da escrita dos números, na dança a dois tempos do comprou e vendeu. Filas alinhadas de desatino. Lacerda herói de noitadas perdidas e de mulheres já gastas. Sente-se feliz no cesto das artes cénicas, na discussão prosódica da palavra e entre os amigos que como ele comungam das mesmas Graças. Católico convicto mais de dogmas do que de actos, recatado nos gestos, solitário de ternuras, misantropo de sorrisos, orador solto entre amigos, senhor de nariz altivo perante os ignorantes, sorridente entre os ilustrados, cáustico no retorquir, sibilino no argumentar mas jovial no derriço são as características do óleo que lhe fazem o retrato.

É terça-feira, de um mês qualquer, num ano já ido. O nosso herói olha para o relógio redondo e amarelado e reflecte nas horas marcadas. Já falta pouco para acabar. Lentamente poisa a caneta de aparo estridente, confere a escrita, passa-lhe o mata-borrão cor-de-rosa já vomitado de azul, fecha o livro comprido de capa negra, tira os manguitos que cuidadosamente coloca na gaveta meio aberta, bate os pés calçados em botina pretas já gastas mas muito bem polidas, a enganar os tempos, arrasta a cadeira no soalho despido, levanta-se, sacode poeiras perdidas nas calças vincadas. Vai ao bengaleiro e retira o casaco que veste, ajeita o nó da gravata, alisa o cabelo num gesto perdido e murmura um até amanhã. Cá fora, o dia já vestiu o capote, e pôs o chapéu preparando-se para a noite que lhe dá o braço. Alberto Lacerda respira fundo. O ar húmido do mês das castanhas dá-lhe as boas noites, pingado de gotículas escondidas sopradas na onda de vento cantado. Curva-se, enfrenta-o, e dirige-se para o café da praça. Lá estão os amigos. Uma conversa, saber das últimas da cidade e da política, um desentorpecer mental, de ideias libertas em palavras, é isto que lhe faz suportar o cinzento dos dias, do amarelado do escritório e da pobreza envergonhada da vida. Alberto filho de gentes educadas mas de bolsos vazios, desde pequeno que soubera sempre o que era tapar, esconder e sorrir ao pouco, poucochinho, ao quase nada. Na escola primária, a bata sempre tapara os calções puídos, a camisa já passajada, a camisola de cores diferentes, acrescentos que os ossos iam pedindo, e que as agulhas iam tecendo esquecidas da cor primeira. Depois fora crescendo, muito em altura e quase nada em largura. A mesa também não o permitiu. Tudo muito frugal tocando quase sempre a raia da fome. Não o era, porque havia pão e sopa. Mas pouco mais. Também não se falava nisso porque a vergonha estava sempre lá. Sabia-se que era pobreza mas não se ousava dizê-lo porque afinal tinham casa, alguma roupa, uns ordenadinhos e eram educados. A dita cuja, era só para quem pedia, era rude de espírito e roto de bolso. Os outros eram remediados, como se o saber enchesse as barrigas, cobrisse os corpos e alimentasse os seres. E foi neste credo perdido de sabores de substância que ele se foi tornando um quase “vermelho” como chamavam ao grupo de” rapazes “ a que pertencia. Tinha orgulho em sê-lo, a sua razão animal dizia-lhe que a vida que sempre tivera era medíocre, o seu intelecto segredava-lhe ideias de partilha e melhores dias para todos os homens. Cinco rostos ébrios de ideais tingem-se de cor, e de suor, á medida que se empolgam na discussão da “situação”. As vozes de início sussurradas elevam-se desprotegidas de si, e espalham-se por entre as paredes tal como os rolos de fumo que se alteiam, esbatendo-se finalmente no vazio do tecto. As mãos gesticulam breves, desenhando arabescos no espaço como se tentassem exprimir para além das palavras, os sons da luta em ímpetos de movimento. Sobre a mesa pouco mais de que duas chávenas vazias de café, copos de água e um cinzeiro atulhado de beatas. A cinza cujo cheiro se avilta nas narinas parece ser o pó das quimeras esmagadas entre a realidade do hoje e o hipotético do amanhã. Alberto, de soslaio, olha o relógio e maquinalmente ergue a gola, afasta a cadeira e levanta-se. Despede-se com um até logo e sai para o velho jardim. Cruza-o com os passos largos e elásticos. Sente pequenas gotas de água no rosto que lhe lavam os pensamentos ainda incandescentes, as brasas ainda crepitam enchendo-lhe os sentidos de seiva quente. Chega a casa dá um beijo solto na mulher que lhe diz:

- Vens tarde, a sopa já está fria.

- Entretive-me na conversa no café. Vá lá, anda, aquece-a outra vez.

-Sempre a mesma coisa. Os amigos, as conversas. Já deitei o garoto. Estava à tua espera.

-Lá estás tu outra vez, Luísa. Sempre a mesma conversa.

Sentam-se à mesa e em silêncio sorvem a sopa. Os monossílabos arrastam-se na proporção exacta da vontade de comer. Depois vem o peixe frito e o arrozinho de tomate. A fruta termina a refeição. Maria Luísa levanta-se, vai até à cozinha fazer o café. Depois de coado e servido nas chávenas, pega no tabuleiro. Espalha-se o aroma forte e saboroso. Este é momento do dia, quando os dois se sentam e conversam. Aquela beatitude que precede o deitar. A casa descansa e a noite veste-a. Depois há a música. Alberto escuta-a sempre embevecido como se as notas lhe embalassem o desassossego interior. Os pensamentos afluem-lhe em catadupa. A infância, os pais, os irmãos. A vida dura que tivera que enfrentar. A amargura de muitos dias. Tem raiva dentro, e alturas há, em que se torna incontrolável. Não se consegue comedir.Explode.Arrepende-se. Não suporta a mesquinhez, a tacanhez. Não gosta de se sentir preso. Mas também não quer ser livre. Ama a família a seu modo. Consente o conforto mas há algo que o arranha, que o faz crispar. Ninguém o conhece. Ama sem ter o gosto do amor. Deseja sem querer. Sente-se vazio estando cheio. No entanto quando poisa o olhar na sua mulher, sente uma onda de ternura, quando a ama pressente a vida, quando a mãozinha macia de Pedro lhe toca a sua, um frémito de ternura percorre-o. Ternura, mais orgulho, mais emoção. Quando olha em redor quase respira prazenteiro, porém logo a seguir vem um gesto, o barulho, uma palavra que o azeda, o faz rebentar como se fora onda picada. Rebenta estrondoso, duro, implacável. Nesses momentos quer estar só. Sabe que erra. Mas não pede desculpa. É visceral, espasmódico. Só assim soluça em arroubos de raiva. Quem o conhece fora do círculo íntimo dizem-no ser um homem encantador. Um conversador nato, um melómano apaixonado. Um quase sedutor. Também o é. É esse jogo que faz consigo e com os outros que o traz sempre quezilado.

Tal como o empedrado se amacia com o tempo também Alberto lenificou o carácter. A vida, as mudanças, o rol de alegrias e desgostos, tudo em suma o tornaram no homem mais complacente de hoje. Embora os picos de revolta pontilhem aqui e ali que mais não seja pela insatisfação do país, Alberto é um homem tranquilo.

Junto a Maria Luísa, ambos de avental preparam o almoço para os três. Pedro virá almoçar. Diz-lhes a experiência que sempre que o filho mais velho telefona para vir almoçar há novidade no ar. E desta vez não vai ser diferente. O bacalhau já está no forno. A mesa cá fora no jardim, está posta. Deve estar a rebentar. A campainha soa. Ei-lo.

Estugando o passo à medida da chiadeira dos ossos, lá vai ele de sorriso franco abrir a porta.

-Bom dia Pai.

-Bom dia filho.


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01 junho, 2008

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.Memory - Cats
Urze e Giesta V

(…)

Isabel senta-se na bancada de todos os dias. Está presente, contudo ausente de vontade, quebrou-se-lhe o encanto da porfia intelectual, do gozo íntimo da descoberta. Bloqueou, simplesmente. A mente sempre célere assemelha-se a um aspirador em agonia.

Zune, mas não aspira a multiplicidade de mutações que surgem mesmo ali, sob a lente, em segundos de exposição. Hoje o pensamento voa para além do tecto científico. Hoje o coração dita-lhe as hipóteses num teorema ainda não demonstrado. A racionalidade do seu ser treme perante a incógnita. Não estava preparada para este desafio. O seu rosto onde a serenidade sempre foi uma mais-valia, está inquieto. A mobilidade contraída dos maxilares estende-se ao rictus dos lábios que se pressente crispado, pese o sorriso afivelado à laia de cartão-de-visita. A situação apanhara-a desprevenida. Bem quase. Afasta ligeiramente o microscópio num movimento mecânico, gira na cadeira e olha para o exterior. Olha mas não vê, olha apenas dentro dos seus pensamentos. E analisa. É bem verdade, que ultimamente havia um quase foge que foge de palavras. É bem verdade, que o dia-a-dia feito de correrias, lugares comuns, e pequenos muitos nadas a tinham mergulhado numa rotina doméstica. É verdade, que os filhos mais as suas necessidades e interesses a tinham feito esquecer as de Pedro, e as dela. É verdade que os silêncios se tinham adensado um pouco, mas sempre prática, pensara que era o cansaço, não um do outro, mas da labuta do dia-a-dia. Não lhe passara pela cabeça, que o seu Pedro sempre tão alegre, e cordato, tivesse tomado o barco numa rota enviesada da sua. As certezas da sua vida tinham-se desmoronado num efeito de dominó. Não era justo. Não era a sua luta. Ela, Isabel Meireles lutadora nata, mulher racional, amante terna, mãe solícita, ser humano vivo e palpitante, não queria, não aceitava, este acto na peça da sua vida. O palco continuava lá, imutável na demanda permanente dos seus actores e das suas elocuções, na representação necessária dos seus papéis de vida. Porque alterar uma peça, quando ainda se vai a meio? Não será roubar o sentido e o ritmo da efabulação? Não, ela não vai permitir, pelo menos nos termos que Pedro quer. Não vai, não pode, é algo superior a si, é algo que lhe revolve as entranhas, amachuca o coração e lhe lança vento na alma. Não! Os filhos? Não pensara ainda neles. Agora também não, depois. Tem que analisar o que falha entre ela e o marido. Não se sente culpada, porque não se sente em falta. Não vislumbra uma razão poderosa. Sabe que o trabalho, a carreira a têm absorvido muito, sabe que o quotidiano necessita de tantas premissas, que lhe é imposta uma fasquia à qual tem que chegar, a fim de obter ulteriores benesses, traduzidas em ascensão profissional, e consequentemente qualidade material de vida. O mundo, hoje, amanhece em cada segundo de exigência exterior. É verdade que muitas vezes esqueceu, melhor, colocou para trás prioridades como horas de simples conversa a dois, um descer de rua de ombros colados, um olhar quedo de sentir perpassando as palavras. Errou. Estiolou os segundos. Mas não vai gritar, nem muito menos cravar a sua dor em palavras cuspidas de ressentimento. A garra, o ânimo, a dor são apenas adjectivos que se plasmam nos lábios, vomitados ou cuspidos ou ainda simplesmente rolados de acordo com a personalidade das pessoas. Fazer do pouco muito, como atavio de personalidade, não lhe está na massa do sangue. Estar na crista da onda, apenas porque o seu ego a faz espreitar por entre os outros, também não é seu feitio. Deverá estar errada, pois que, hoje em dia, muitos gritam o vazio de si, pensando que são melhor escutados, no entanto o clamor dilui-se no próprio estertor do sibilar. Está a desviar-se, está a divagar. Não pode, tem que objectivar colocar em fio de raciocínio os últimos anos de casada. Achar o fio e puxá-lo, ou simplesmente dar-lhe um nó para estancar, o desfiar. Alguém lhe toca no ombro. Volta-se lentamente, tenta focar as pupilas nesse outro vulto que lhe está em frente, vê um rosto em branco seguido de uma bata branca. É o branco que lhe dá a sequência ocular. Devagar, inicia a descodificação visual, ao mesmo tempo que, arruma, algures os seus pensamentos. Perfeita dicotomia racio-emotiva. Aqui e agora, o mundo na lamela da ciência. Ali e depois, a vida na concha da emoção, são os andamentos da sua composição.

-Isabel…Isabel estás bem?

-Oh…sim. Claro que sim. Estava apenas a pensar.

- Olha, não te esqueças da reunião logo. Já sabes às seis.

-Não sei se poderei, Jorge. Não sei mesmo. Problemas em casa.

-Vê lá, Isabel. É importante. Tu tens que fazer o relatório da tua investigação laboratorial. Estamos à espera, queremos saber os procedimentos, resultados e conclusões se acaso já lá chegaste ou ainda estás por chegar. Sabes que há muita coisa em jogo, Isabel…

-Eu sei, Jorge, eu sei. Mas tenho também que resolver algo muito importante. Também há mais algo em jogo, que não uma simples investigação…

-Tem cuidado, Isabel. Já sabes como é… não há margem para opção…a razão deve sempre sobrepor a emoção, minha querida. Tu sabes isso… não o esqueças. Lá fora o mundo é outro. Tu escolheste, já lá vão alguns anos.

-Eu sei, eu sei… eu preciso… eu… está bem irei à reunião. Mas serei breve. Peço-te que arranjes de modo a que seja a primeira a apresentar.

-O.K. minha querida. Fá-lo-ei por ti. Fizeste bem em decidir assim. Agradecemos-te.

-Pois será… talvez, quem sabe? Mas não me resolve os meus problemas. Darei um jeito.

Dar um jeito. Não tem sido sempre aquilo que tem feito? Segurar pontas, desdobrar-se, correr daqui para ali, e de lá para cá. Um tempo divido entre a presença e a ausência. Pensar que conjugava o estar mais o ficar, mas afinal, o tempo fora-lhe ingrato. Perdera no meio tempo ,a direcção correcta do seu sentir. A sua bússola interior desviara-se sub-repticiamente e não se apercebera.

Por isso, o que mais fazia um dia, que importância tinha no que já estava inquinado? Nada. Iria à reunião, voltaria para casa, para a vidinha familiar de todos os dias. Deitar-se-ía na cama com o marido, falariam entre monossílabos, adormeceriam lado a lado no calor dos lençóis mais dos corpos e no dia seguinte retomariam o dia anterior apenas acrescido no calendário. Era, e fora a sua vida. Porém agora. Tudo tremia perante um vazio que Pedro dizia sentir e que o afogava. E ela? Por acaso alguém lhe perguntou como se sentia? O correr dos anos desfizera-lhe as quimeras, roera-lhe os sonhos, mas agarrara sempre o que a vida lhe dera, por pouco que fosse. Era a sua índole. Não se estoqueava em questões existenciais, porque sabia que a vida era breve passagem de sentires. A mutabilidade, plasticidade e brevidade do viver tinham-lhe há muito ensinado a aceitar o que recebia. A inquietação dos dias gizava-a na consciência de quase cumprir, o possível.

Levanta-se maquinalmente, ajeita o cabelo e endireita os ombros. O olhar reflecte a gruta das suas emoções, contudo um sorriso afivelado, mesmo que lasso, dá sempre um toque. Vai até á secretária, abre uma gaveta, pega numa pasta ,e num gesto tão pessoal encosta-a ao peito ,como se fora filho seu em doçura de embalo.

São cinco horas da tarde. Mais uma hora e picos e estará de regresso a casa.

No tempo de acrisolar.



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27 maio, 2008


OBOE DAMORE - RONDO VENEZIANO

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A Tapeçaria

Estava gasta e debotada. Pendurava-se no vão das escadas. Entre o primeiro e o segundo lance, quando os degraus espreitavam a entrada da casa, e também os quartos de cima. Era uma grande tapeçaria. Contava uma história tecida nas suas entranhas de seda. As cores tinham-se desmaiado com orvalho do tempo. Mas continuava bela e enigmática. Duas figuras, apenas, no centro. Um velho e uma criança. O pequeno rubicundo, loiro e lácteo, pese a cor acinzentada do tecido. O velho, esguio, de barbicha, olhar penetrante que girava consoante se subiam ou desciam as escadas, como que a ousar penetrar nos segredos da casa. Em redor móveis de madeira velha quase exalando o cheiro a cera, compunham o que parecia um quarto. Na alcova junto à janela de vidros manchados deitava-se uma figura. O artista fora feliz na composição das cores. O rosto esquálido tinha precisamente aquele tom de morte, que arrepia, e torna mais pálidos os primeiros raios de sol que visitavam a manhã. Perpassavam pela janela num adejo de calor para suavizar a pena que se evolava no ar. Pressentia-se o frio e a tristeza, quase a despedida. Na parede em frente repousava o espelho pendurado sobre o baú de madeira maciça, alforge de linhos, e loiças e demais enxoval, exponente da sua condição social. O espelho trazia de volta o movimento que parecia ter parado. Breve silhueta em rotação, o velho ergue o dedo admoestando o pequeno loiro. E o movimento repete-se, lenta e deliberadamente, os dedos tapam os lábios, em obstrução de som. Silenciado o chilreio da criança, afaga-lhe a cabeça de caracóis. Porém a mão continua semi-f.echada e o dedo meio dobrado. O rosto move-se em articulação. Parece conselheiro mais de si do que da criança. De repente, a tapeçaria adeja e as cores agitam-se, a criança, menino loiro, mexe-se, quase que cresce e olha dentro, bem dentro do rosto do velho. O sorriso espalha-se brilhante nas bochechas, parece-me. Oh é apenas o vento. O quadro mantém-se imutável na sua vulnerabilidade de tons e reflexos.

Subo de novo o lance das escadas e olho, aqueles rostos, a luz diáfana ,que bafeja a composição. Essa mesma, vem de fora, em jorro inunda a janela mais a cama ,e vai deitar-se no chão. Há poças de matiz que molham os botins do velho. Ora pretos ora tijolados. O afastar ligeiro de pernas abre novos matizes. Desta vez nas meias que vestem as pernas, e onde se sobrepõem os calçotes escuros. E o velho abana-se ligeiro. Deitando um olhar enviesado para a alcova. Um momento parado de vida. No remanso do quarto, a vida palpita, em interlúdio de matizes de luz.

E perene a tapeçaria descansa sob o olhar da casa.


Texto de participação no jogo das 12 palavras


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19 maio, 2008



Urze e Giesta IV

(...)

Baloiça-se no vai e vem das memórias. Tem o sorriso doce da alba mas o perfil do entardecer. Os cabelos são névoas cinzentas onde os fios prateados brilham na moldura da cabeça. É bela a sua cabeça. Uma fronte larga onde a renda finíssima dos bordados da pele se ajeitam docemente. De trás a nuca vislumbra-se perfeita, logo suportada pelo pescoço rilhado mas ainda altivo. Os olhos são asas abertas vestidas ora de o azul ora de verde triste. São gázeos e peculiares. Brilham ainda em pequenos hiatos de picardia, de sonho ou simples alegria. Maria Luísa. Setenta e tais anos. Muita vida. Um crepúsculo pleno. Recorda, recorda aqueles dias onde sentada no banquinho mais baixo alinhavava as peças, e mesmo antes, quando apenas enfiava as agulhas ou simplesmente tirava os alinhavos. Aquele entra que sai do tecido, aquele alisar, esticar, puxar e imaginar de peça a ser. Fora assim desde os seus dez anos até se casar. Aprendiza de costura, depois ajudante e finalmente costureira. Fora menina, moça e mulher de dedal, agulha e tesoura. No construir da obra também aprendera a saber vestir os moldes da vida, ora floridos, estivais ou apenas invernais. Das sedas às fazendas de lãs. Da leve subtileza à suave macieza. Fora aí que aprendera a ajoelhar de pescoço erguido. Quando as “madames” lhe exigiam quase impossíveis, quando bainhas certas eram ditas como tortas, quando perfeição não assentava na imperfeição, e havia que refazer tudo porque assim lho exigiam. A vida também era assim, um constante refazer. “Luísa, olha a madame Bastos. Luísa, a madame Carvalho Araújo queixou-se que o tailleur ficou apertado. Luísa…” Maria Luísa trincava os lábios, cerrava os dentes e respondia:”- Concerteza vou já arranjar.”

Já na sala de provas a lenga-lenga era semprea mesma, um disco de vinil riscado num gira-discos de rotações lentas.

-Olhe, menina deixou-me a saia apertadíssima que falta de jeito.

-Olhe esta cintura está demasiado larga. Devia apertar-ma. Que deselegante.

-Madame não acha que um pouco mais largo a favorece. E depois este ano as cinturas marcadas não estão de todo em moda.

-Oh se assim é… mas de qualquer dos modos, menina dê um toque aí. Ai falta as mãos da Maria Laurinda. É o que eu lhe digo. Terei que lhe dar uma palavrinha.

-Com certeza, Madame.

Depois eram as queixas a Maria Laurinda, sua mestra. Aquele ciciamento e olhares enviesados que conhecia de cor. A despedida melíflua e os sorrisos sempre iguais, máscaras venezianas de sorriso vazio. A raiva da injustiça, alindar corpos mal feitos, gordos, envelhecidos que se desejavam elegantes não lhe perdoando o conhecimento das suas fraquezas. A mestra conciliadora que lhe dizia: “Tens que ter paciência. São elas que nos pagam e nos dão nome.”

Fora bem cedo ainda bem menina, que Maria Luísa aprendera no corpo o desatino do não amor. Nunca sentira o afago de um colo ou o roçar de um beijo. Lá em casa eram muitos. A fome era madrinha dos dias e das noites. Muito cedo havia que fazer pela vida. E assim fora parar a casa de Dona Laurinda conceituada modista. Acolhera-a, dera-lhe uma cama, comida e ainda a iniciara nos meandros da costura. Dona Laurinda reconheceu-lhe o dom. Maria Luísa possuía aquela singular qualidade de fazer de um vestido de chita uma toilette. De tesoura na mão e tecido na mesa deixava-se levar pelos sentidos, criando vestidos, saias, casacos e um sei lá que mais. Gostava do que fazia, muito. Gostava sobretudo de cortar. E foi assim que lentamente Maria Luisa passou a fazer parte do cartão de apresentação. Maria Laurinda e Maria Luísa, modistas. Rua do Salitre, nº 65. Lisboa. Entre o Príncipe Real e a Av. da Liberdade. Lugar privilegiado numa Lisboa de outros tempos onde ir à modista era um encontro agendado na vaidade do ego feminino. Hoje olha-se, prova-se, veste-se. Compra-se e sai-se de saco na mão. Perdeu-se o encanto, ganhou-se o tempo.

Casou-se entre uma estação e outra, quando as freguesas ainda não tinham despido os casacos compridos e os tailleurs não vestiam o vento frio. Não teve lua-de-mel porque nessa altura essas coisas não se usavam e o dinheiro também não abundava. O seu enxoval mais os mobílias tinham-lhe levado as economias, a ela e ao seu marido. Contudo não se importava muito. Pela primeira vez tinha algo de seu. Respirava no torvelinho de um sonho ainda por abrir, não sabia bem como o desatar, era apenas sonho. Mas sabia-lhe tão bem. Contentava-se em pensar que era feliz. E naquela altura até o era. Mais não conhecia, mais não sabia. Uma noviça na peleja do casamento. No vaguear dos anos aprenderia a ser exímia estratega, deixando o vencido ou vencidos com um sentimento de menoridade e culpabilidade, quais réus dos males do mundo. Ás da tesoura, também o era das concepções morais, as quais alinhava como se fossem pregas simétricas de uma saia. Tudo era medido, pensado, ordenado, fatiado. De exterior imaculado escondia um interior bem esburacado de afectos e desenganos. Maria Luísa não fora feliz. Dera muito de si e recebera pouco dos outros. E sempre no tempo errado. Fossem gestos, fossem carinhos. O seu presente sempre fora passado. Havia qualquer coisa nela que era impeditiva, que afastava. Uma espécie de onda rolada, grande, que quando está prestes a espraiar-se no areal, recua desfeita na água numa espuma tão breve e ligeira que apenas uns salpicos respigam o ar. Esperara muita da vida e ela, a vida, rira-se das suas quimeras. Fora, talvez brutal. Tornara-se dorida, sofrida. Uma mulher em desamor. Tivera três filhos dois rapazes e uma rapariga. Pedro, Afonso e Margarida. Pedro, o mais velho, o seu grande orgulho. Os seus olhos sorriam só ao pensar nele. Filho muito querido. Afonso fora sempre difícil, um desconhecido, nunca o entendera muito bem. Havia algo nele que a afastava. Margarida a sua grande dor de cabeça. Nascera nos idos da revolução. Acredita que fora isso que a fizera tão rebelde. Muito bonita a sua filha, demasiado, pensa. Muita senhora do seu nariz. Aliás os três filhos sempre tinham sido muito ciosos das suas vidas. No entanto a grande mágoa fora Afonso. De início não entendera. Agora já aceitava, porém Alberto, o marido, continuava intolerante inclusive chegou a assacar-lhe as culpas. Que criara o rapaz entre sedas, que fora mimado demais, que sempre fora um nico-doces, porque isso não se admirava nada, daqueles gostos esquisitos. Que do seu lado não havia daqueles tresmalhos. Enfim, um ror de culpas como se isso modificasse a questão.

O mais velho estava casado com Isabel. Gostava muito da sua nora. Era elegante, inteligente, trabalhadora, uma boa esposa e mãe. A sua carreira era invejável. Juntamente com Pedro faziam um casal modelo. A vida do seu filho enchia-a de orgulho. Depois Afonso… estava divorciado de Ana, também uma jóia de pessoa .Afonso … aquela dor ainda subsiste ao lembrar-se. Afonso era homossexual. Perguntava-se onde tinha errado na educação deste filho, mas como Isabel, a sua nora, lhe dizia:” Afonso teve uma vida de luta para se assumir. Respeitem-no, pelo menos. Se não conseguem, não aceitem o facto, mas respeitem-no, pelo menos”. Tinha razão, a Isabel. Depois vinha Margarida. Um pedaço de arte, a sua Margarida. Era bela a sua filha e criava beleza à sua volta. As suas mãos de artista tinham o dom da criatividade. Também ela sentira aquele mistério sempre que pegava na tesoura, era como se algo a guiasse, uma força inexplicável. Depois vinha o vazio. A concepção do espírito em matéria concretizada era um desventrar, tal como o fora aquando do nascimento dos seus filhos. Margarida casara, descasara, casara, descasara, e de momento não sabia se tinha o pé dentro, fora ou simplesmente no meio. Também não queria saber. No vai e vem do casa-descasa, a sua filha ainda tivera tempo para duas maternidades. Ao todo sete netos. Três de Pedro, dois de Afonso e duas de Margarida.

Ela e o seu Alberto peças já gastas da mobília da vida, vivem um dia a dia de reformados. Têm os seus interesses, os seus rituais. Rotinas arreigadas agora adaptadas aos tempos. A idade, a disponibilidade quer temporal quer material permite-lhes estarem talvez mais perto um do outro. Não a proximidade física, mas antes uma proximidade de entendimento que acontece porque os anos limaram os egos. A importância das coisas esbate-se à medida que o sino do tempo começa a badalar no campanário dos anos. Aí o ser humano conclui rapidamente que não vale a pena nem o desvario nem a contusão do ressentimento e muito menos o calor da raiva.

O soar do telefone acorda-a dos seus pensamentos. Levanta-se da sua velha cadeira e dirige-se até à mesinha onde o atende.

-Olá Mãe. A mãe e o pai estão bem?

-Sim Pedro estamos bem. E vocês? Aconteceu alguma coisa?

-Não Mãe, porque é que diz isso?

-Por nada, acho-te… ora diz lá.

-Queria falar com a Mãe. Amanhã posso ir aí almoçar?

-Claro filho. Vou-te fazer o bacalhau da”mãe” como tu gostas.

-Está bem mãe. Até amanhã. Um beijinho e ao Pai também.

Poisa o telefone e senta-se. Amanhã, um outro degrau terá que ser subido, pressente…

(…)



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18 maio, 2008





Ensor

There, garland dandelions round that idol
with a corn husk face &  beard
patched with rat stubble from a barber’s dust pan,

parade float driven by a carriage pulled by a pig.
Two sticks knotted together,
cake frost on that crude wood to make it gilt.

There, spider cranks &  iron gyres,
blueberry stain glass sprout
like wings from coal burn cars,

a trumpet toots the sorrow of another boy dead,
there he is, limp on a gurney wrapped in gingham scrap,
there, he’s blast.

There, roofless houses,
sarong utopias balloon, balloon toward the sky,
while women beat, beat their skulls.

I trail behind, mop in hand,
sloshing scum water over memorials.
There he stares at my tic-torn cankered face,

&  begs for alms, his face horse rudder red.
A son, he huffs, it is a son I want.


Cathy Park Hong is the author of two books of poetry, including Dance Dance Revolution (W.W. Norton, 2007), which received the Barnard New Women Poets Prize. .
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