Urze e Giesta VI
(…)
O Tejo espreguiça-se morno lá em baixo. As águas semi-onduladas lavam o resto da manhã. O sol borda o céu de luz, e há aquele espelho luminoso que reflecte o mar, mais o outro azul, na parede do dia. Mais lá no alto, os telhados captam a quentura da cidade. Descem pelas ruas passos miúdos de gentes apressadas e chia no empedrado o rolar dos velhos eléctricos. Floreiras aqui e além por entre velhas casas de varandas torneadas que o tempo tornou cinzentas dão o toque único à sua cidade. Pedro respira aquele ar marítimo pontilhado de luz com vómitos cinzentos de fumo. É Lisboa, a sua terra. Captar a sua essência é quase como agarrar o significado da vida. Sabe que existe, que se espalha em cada momento tal como a cidade se desdobra em cada esquina. Linhas paralelas de ser e estar. Olha, uma vez mais, o rio, buscando na sua languidez a calma interior que tanto necessita. Abarca com o olhar a paisagem, depois deixa o estirador, veste o casaco, pega nas chaves e sai. Cá fora suspira e inspira. Entra no carro e toma a direcção do Príncipe Real. É ali quer os pais vivem na velha Rua do Jasmim na velha casa de varandas estreitas e janelas longas, onde o sol depois de ter rebolado pelos telhados vermelhos se vem anichar na janela defronte. Os gerânios sempre vermelhos, memória indissolúvel da sua infância, adornavam o reflexo que o acordava todas as manhãs, ora vestidos de brisa ora despidos e molhados. Os tectos altos, as tábuas estreitas e corridas lembravam-lhe o cheiro da cera mais dos bibes. Nas traseiras fica o quintal, hoje prosaicamente chamado de jardim. Na altura, ele e o irmão tinham-no transformado na mais fantástica selva. A imaginação vestia-os de personagens de Salgari, de piratas, de exploradores, de tarzans e tantos outros. Era, apenas e somente, o rio líquido do faz-de-conta. Uma infância feliz, não fora o pai sempre austero e quase amargo. Nunca fora pródigo em afectos nem sorrisos. Exigente todavia indiferente, colérico mas glacial. Um a figura de contradições igual a si mesmo. Do sorriso à sanha era obra de um trejeito. Ainda recorda o medo que se apossava dele quando o pai o chamava. Hoje, pese o tempo estiolado consegue compreendê-lo e amá-lo melhor, mas o corredor que ambos percorrem tem tempos muito diferentes. Seu pai precipita-se inexoravelmente para o fim e ele está no meio de um percurso num sentido diverso.
…………………….
Debruçado sobre a secretária de madeira já bichada de velha, assente sobre um chão de tábuas desbotadas e cinzentas de pó varrido, Lacerda escreve aplicadamente o Deve e Haver da Companhia de Algodão. Os óculos descansam-lhe na ponta do nariz afilado, o rosto está vazio como se a monotonia do serviço lhe roubasse qualquer expressão A cor é pardacenta, amarela e desviada, igual à sala onde se senta. Tudo é mofado, velho e decrépito. A fronte generosa encolhe-se perante o ritmo rabiscado do aparo arranhando o papel grosso em tinta violeta. É um homem ainda jovem. Cabeça farta de cabelos claros puxados atrás no óleo da brilhantina. A camisa branca descansa sob uns suspensórios perdidos no excesso de pano. Entre os cotovelos e os pulsos, vestem-no os manguitos já rasos do coçar da mesa. O olhar, quando erguido é opaco de monótono como se algures o tempo tivesse parado, surge entre círculos azulados de sono e de sonhos desfeitos. Os ombros estão descaídos num abater de comiseração. Nota-se a magreza do corpo longo. Flagela-se no dever da escrita dos números, na dança a dois tempos do comprou e vendeu. Filas alinhadas de desatino. Lacerda herói de noitadas perdidas e de mulheres já gastas. Sente-se feliz no cesto das artes cénicas, na discussão prosódica da palavra e entre os amigos que como ele comungam das mesmas Graças. Católico convicto mais de dogmas do que de actos, recatado nos gestos, solitário de ternuras, misantropo de sorrisos, orador solto entre amigos, senhor de nariz altivo perante os ignorantes, sorridente entre os ilustrados, cáustico no retorquir, sibilino no argumentar mas jovial no derriço são as características do óleo que lhe fazem o retrato.
É terça-feira, de um mês qualquer, num ano já ido. O nosso herói olha para o relógio redondo e amarelado e reflecte nas horas marcadas. Já falta pouco para acabar. Lentamente poisa a caneta de aparo estridente, confere a escrita, passa-lhe o mata-borrão cor-de-rosa já vomitado de azul, fecha o livro comprido de capa negra, tira os manguitos que cuidadosamente coloca na gaveta meio aberta, bate os pés calçados em botina pretas já gastas mas muito bem polidas, a enganar os tempos, arrasta a cadeira no soalho despido, levanta-se, sacode poeiras perdidas nas calças vincadas. Vai ao bengaleiro e retira o casaco que veste, ajeita o nó da gravata, alisa o cabelo num gesto perdido e murmura um até amanhã. Cá fora, o dia já vestiu o capote, e pôs o chapéu preparando-se para a noite que lhe dá o braço. Alberto Lacerda respira fundo. O ar húmido do mês das castanhas dá-lhe as boas noites, pingado de gotículas escondidas sopradas na onda de vento cantado. Curva-se, enfrenta-o, e dirige-se para o café da praça. Lá estão os amigos. Uma conversa, saber das últimas da cidade e da política, um desentorpecer mental, de ideias libertas em palavras, é isto que lhe faz suportar o cinzento dos dias, do amarelado do escritório e da pobreza envergonhada da vida. Alberto filho de gentes educadas mas de bolsos vazios, desde pequeno que soubera sempre o que era tapar, esconder e sorrir ao pouco, poucochinho, ao quase nada. Na escola primária, a bata sempre tapara os calções puídos, a camisa já passajada, a camisola de cores diferentes, acrescentos que os ossos iam pedindo, e que as agulhas iam tecendo esquecidas da cor primeira. Depois fora crescendo, muito em altura e quase nada em largura. A mesa também não o permitiu. Tudo muito frugal tocando quase sempre a raia da fome. Não o era, porque havia pão e sopa. Mas pouco mais. Também não se falava nisso porque a vergonha estava sempre lá. Sabia-se que era pobreza mas não se ousava dizê-lo porque afinal tinham casa, alguma roupa, uns ordenadinhos e eram educados. A dita cuja, era só para quem pedia, era rude de espírito e roto de bolso. Os outros eram remediados, como se o saber enchesse as barrigas, cobrisse os corpos e alimentasse os seres. E foi neste credo perdido de sabores de substância que ele se foi tornando um quase “vermelho” como chamavam ao grupo de” rapazes “ a que pertencia. Tinha orgulho em sê-lo, a sua razão animal dizia-lhe que a vida que sempre tivera era medíocre, o seu intelecto segredava-lhe ideias de partilha e melhores dias para todos os homens. Cinco rostos ébrios de ideais tingem-se de cor, e de suor, á medida que se empolgam na discussão da “situação”. As vozes de início sussurradas elevam-se desprotegidas de si, e espalham-se por entre as paredes tal como os rolos de fumo que se alteiam, esbatendo-se finalmente no vazio do tecto. As mãos gesticulam breves, desenhando arabescos no espaço como se tentassem exprimir para além das palavras, os sons da luta em ímpetos de movimento. Sobre a mesa pouco mais de que duas chávenas vazias de café, copos de água e um cinzeiro atulhado de beatas. A cinza cujo cheiro se avilta nas narinas parece ser o pó das quimeras esmagadas entre a realidade do hoje e o hipotético do amanhã. Alberto, de soslaio, olha o relógio e maquinalmente ergue a gola, afasta a cadeira e levanta-se. Despede-se com um até logo e sai para o velho jardim. Cruza-o com os passos largos e elásticos. Sente pequenas gotas de água no rosto que lhe lavam os pensamentos ainda incandescentes, as brasas ainda crepitam enchendo-lhe os sentidos de seiva quente. Chega a casa dá um beijo solto na mulher que lhe diz:
- Vens tarde, a sopa já está fria.
- Entretive-me na conversa no café. Vá lá, anda, aquece-a outra vez.
-Sempre a mesma coisa. Os amigos, as conversas. Já deitei o garoto. Estava à tua espera.
-Lá estás tu outra vez, Luísa. Sempre a mesma conversa.
Sentam-se à mesa e em silêncio sorvem a sopa. Os monossílabos arrastam-se na proporção exacta da vontade de comer. Depois vem o peixe frito e o arrozinho de tomate. A fruta termina a refeição. Maria Luísa levanta-se, vai até à cozinha fazer o café. Depois de coado e servido nas chávenas, pega no tabuleiro. Espalha-se o aroma forte e saboroso. Este é momento do dia, quando os dois se sentam e conversam. Aquela beatitude que precede o deitar. A casa descansa e a noite veste-a. Depois há a música. Alberto escuta-a sempre embevecido como se as notas lhe embalassem o desassossego interior. Os pensamentos afluem-lhe em catadupa. A infância,
Tal como o empedrado se amacia com o tempo também Alberto lenificou o carácter. A vida, as mudanças, o rol de alegrias e desgostos, tudo em suma o tornaram no homem mais complacente de hoje. Embora os picos de revolta pontilhem aqui e ali que mais não seja pela insatisfação do país, Alberto é um homem tranquilo.
Junto a Maria Luísa, ambos de avental preparam o almoço para os três. Pedro virá almoçar. Diz-lhes a experiência que sempre que o filho mais velho telefona para vir almoçar há novidade no ar. E desta vez não vai ser diferente. O bacalhau já está no forno. A mesa cá fora no jardim, está posta. Deve estar a rebentar. A campainha soa. Ei-lo.
Estugando o passo à medida da chiadeira dos ossos, lá vai ele de sorriso franco abrir a porta.
-Bom dia Pai.
-Bom dia filho.