Urze e Giesta I
“Estou em casa, é aqui que tudo começa…
Isabel caminha na terra vestida de carqueja florida, rosmaninho, urze e giestas. As cores matizam-se entre si abraçadas de verde, sente a brisa morna da tarde roçar-lhe o rosto e as pernas. Os braços baloiçam-se ao movimento dos pés. Sente-se quase plena. Pode respirar e sobretudo pensar. Veio ontem da cidade, tem uns dias para descansar. Num momento, empurrou a vida para trás da porta que fechou de supetão, enfiou-se no seu carrito, e rumou em direcção a casa dos pais. Não que as saudades apertassem. Nada disso. Sempre vivera longe. Habituara-se, aliás até preferia. Precisava de estar longe, de se medir, pesar e encontrar. Já não era gaiata. Andava nos seus quarenta. Naquela altura da vida em que se está maduro por fora e nem sempre se cresceu por dentro. Era casada, mãe, tinha profissão, casa e outras coisas. Isabel caminha pela terra adentro, enterra os sapatos, na almofada matizada, abre as narinas aos cheiros enchendo o cérebro de perfumes numa lavagem premeditada daqueles outros que lhe povoavam os dias e os sentires. Isabel, busca a seiva de outros tempos, quando ainda era catraia e corria por estes campos fora, de nariz ao vento e cabelos espalhados. Era outra vida. Uma outra, que ela deliberada fizera, quase desvanecer na busca, quase idiota, do ser citadino que julgara afivelado de preceitos, bordado de finuras, alargado de conceitos e engomado de prazeres. Pura cretinice. O seu quotidiano, quase asséptico de vida, ziguezagueado de percursos e escolhas pouco se assemelhava ao sonho que um dia tivera.
Os montes rasgam a paisagem ao longe. Estão azuis de nuvens. A brisa percorre-lhe o corpo agitando-lhe os sentidos em arrepio de recordações. Sorri ao vento que dança no ar.
“- Isabel vem cá. Dá uma mãozinha aqui ao lume.
-Vou indo, minha mãe, vou indo.
-Isabel olha pelo menino, que eu tenho que ir dar uma jeira pró Ti Lelo.
-Tá bem, mãe, tá bem, vá em paz. “
Fora assim a sua infância. Uma corrida entre o tempo da escola e o da casa. O da escola fora de meninice, o de casa de obrigações. Brincara no sem fim da imaginação. Depois havia a casa. Era a única rapariga. Tinha responsabilidades. Cumpria-as. Era a vida. Os anos da infância tinham voado. Já nem se lembrava direito do seu dia-a-dia. Apenas pontilhado na memória surgiam breves apontamentos que a tinham marcado. O nascimento do irmão mais novo, a primeira comunhão e o vestido de bordado mais os sapatos, o exame da quarta classe. A ida para o liceu o deixar a casa paterna, e ficar no colégio das irmãzinhas. O cheiro das velas e da cera que a tinham perseguido sempre. O pão com manteiga, o leite cujo cheiro era bem diferente do de sua casa. O banho semanal de água quase fria. O frio que a percorria nos invernos agrestes daqueles outros tempos. As camaratas frias e hermeticamente arrumadas. As tábuas do chão sempre imaculadas de pó. Não havia poesia no ar. Apenas ordem e regra. Fora tudo isto que a tornara uma sonhadora incorrigível. Fora buscar onde não havia. Depois o crescer em solavancos, entre a imaginação e a realidade dera-lhe um certo ar ausente qual aureola que afastava mais as pessoas do que as atraía. Consequentemente foi quase uma solitária. Achavam-na estranha, depois era da” aldeia”. Não possuía a ligeireza vazia do discurso da cidade, por essa altura. As palavras eram pesadas. Habituara-se aos silêncios da casa e da sua gente. As palavras usadas eram as essenciais, não as supérfluas ou roladas. As falas eram sucintas porque os gorjeios eram dos pássaros. Nas aulas era das melhores. Criara o seu respeito através dos professores. Os livros eram os amigos desejados. Assim crescera a adolescência. Tornara-se alta e proporcionada. Era atraente quase bonita. Sobressaía das demais pelos olhos, pela estatura e proporção, pelo enfrentar e suster do olhar sempre capeado de brilho e altivez. Era uma figura. Em breve a escola ficou para trás, como era ambiciosa meteu-se a trabalhar nas férias, arranjou uns tostões e juntos com a bolsa foi para a cidade, para a Faculdade. Sempre fora o seu sonho. Sentia-se dona do mundo quando a pisou pela primeira vez. Sentia que o futuro era seu, apenas seu. Não sonhava acordada, vivia, sim desperta para o que a rodeava. Diziam dela, ser arrogante, presumida, ter manias. Talvez tivesse um pouco de tudo isso. Talvez. Mas tinham sido esses, os outros que a tinham forjado e temperado na pele que vestia agora. Cinco anos de faculdade voaram. Cinco anos de rápidos, cheios, vivos e diferentes. Tempo de transplante do canteiro do campo para o vaso da cidade. As raízes acostumaram-se embrulharam-se em redondo sobre si mesmas e a planta cresceu mais estilizada O húmus era o alcatrão que pisava quotidianamente. As chuvadas regavam-na sempre que se sentia exaurida de seca. E assim se conheceu mulher e amou. Também sentiu a raiva, oódio e a acalmia que sobrevém ao outro amanhã. Viveu o que a vida contém na sombra de cada escolha. Teve que recomeçar mas sempre sentiu que cada recomeço é sempre uma estação. Depois, depois…
Olha em redor e sente as vozes que a envolveram. As vozes ancestrais do seu mundo. Aquele é o seu mundo. Senta-se na berma do campo entre a urze e as giestas. O cheiro inebria-a quase a entontece.
……………….
Na masseira o pão gira num voltear de zás, trás, zás. Júlia Papas bate, enrola, rebola. Rebola, bate e enrola. Afogueiam-se-lhe as faces, o rosto mais o buço estão perlados de pequenas gotas de suor. O lenço que lhe cobre os cabelos vai descaindo lento e suave. Leva a mão à cabeça e puxa-o. Fica enfarinhado. Bem como a testa. Caem-lhe breves fios de cabelo que ela sopra e empurra com o antebraço. Nova batida, nova partida. Esparge uma névoa de farinha sobre a massa, enrola-a no redondo de si. Suspira, benze-a e tapa-a. Há que levedar. Murmura:“Deus te ponha a virtude. Que da minha parte fiz tudo o que pude.” O toque final para o bom pão. Puxa pelo avental que pendura na parede oposta ao forno. Tira o lenço, passa as mãos pela blusa que estica, mete os pés nas chinelas e deitando um último olhar, fecha a porta atrás de si.
Cá fora respira fundo. Sorve aquele ar cálido do entardecer quando o sol se despe da cambraia do dia e começa a vestir o veludo da noite. São quase horas da janta, tem que se apressar. Mas sabe-lhe tão bem estes momentos de paz. Gosta de estender as mãos ao ar como se pudesse agarrar um pouco de mundo. Cruzes. Está a ficar “tomada”. Abana a cabeça, benze-se, dá meia volta e entra na porta ao lado da que saiu.
-Ó Minha mãe, a senhora nunca mais vinha. Já pus o caldo ao lume.
-Filha fizeste bem. Cegaste as couves? O tê pai já chegou?
-Na, inda na pareceu, deve ‘tar lá baixo nos copos e nas cartas. Na sabe como ele é?!
- Cada um ca sua cruz! Ó Laide foste ao Zé do Rego comprar o pêxe de bacalhau que te mandei?
-Pois então na fui, minha mãe. A senhora já mo dissera. Tive que deixar mais uns trocados.
-Ó minha mãe amanhã vou à vila com a Alzira. Dava-me jeito comprar aquela fazenda, a mãe sabe…
-Pois filha, eu sei mas… tá apertado este mês.
Brusca, dá meia volta, e com aquele ar tão conhecido dos vizinhos, ergue o queixo, aperta os lábios, bate com os chinelos nos calcanhares afastando-se para o seu recanto. Entre dentes vai rezando “Bem, bem, logo vi”. Adelaide é caule silvestre, folhas macias e flor afagada. Gosta de levar a sua avante. Gosta de vénia. Gosta de si, mais do que, dos outros. Não é pérola fácil esta moça. Júlia Papas sabe-o. A sua Laide é flor bravia quase urtiga. Mas é o que tem. E mãe que é mãe gosta sempre as suas flores sejam elas cardos ou rosas. A sua Laide tão morena de si e tão jeitosa. Naquele corpo, tudo brilha, faz inveja às outras. Tem garbo. O que lhe falta em bondade e doçura excede em porte. Rodam-lhe as saias mais os olhares, alguns rapazes da aldeia. Nada lhe serve, a magana. Os anos vão passando. Já vai nos vinte e quatro. O Agostinho da Zeza que está pra Lisboa anda a catrapiscar-lhe a rapariga. Ela parece não ficar tão arredia. Mas vá lá saber-se. O rapaz é trabalhador. Começou nas minas, lá pelos treze, depois, um dia partiu para a capital. Dizem que comeu do pão que o diabo amassou mas que hoje já tem um trabalho certo. É mecânico. Dizem que é “vermelho”, que já andou pela França. Tem medo pela sua Laide. Mas não lhe vai dizer nada, senão tem um acesso de mau génio, já a conhece. É sua filha mas é um osso duro de roer. Pobre de quem a levar. Muito senhora do seu nariz, muito. Júlia sai pela porta e desce umas escaditas que a levam à taberna. Tem que fazer mais uns cobres para a fazenda da sua Laide. Ai, mãe é isso mesmo, um suspiro de dádiva
-Ó Ti Júlia bote prá í, … mais um copito pra aquecer.
Calada serve, o pano embebedado de roxo limpa as pingas do tinto. O ambiente é escuro, triste e tosco. Os rostos são máscaras de um dia a dia bronco de pobreza. A miséria percorre os corpos na fome humana, e na rudeza de espírito. São simples, dizem deles, porque mais não sabem, e não podem. As horas vão coando o entardecer. O escuro adensa-se na baiuca exígua de luz, as sombras vestem as pedras. Uma lâmpada desmaiada acende-se emprestando fantasmas rotos às mesas e bancos. Um a um, com o cair das sombras, os homens vão saindo. No balcão Júlia cruza os braços sobre o avental de riscado azul e vermelho e chama:
-Ó Luís, a tua Rosa já deve ter a janta a arrefecer. Ergue-te home, e vai-te. Já vão sendo mais que horas.
-Ó Ti Júlia mais um copito…
-Que nada, home. Vai pra casa…anda
Cambaleando ergue-se do banco. Deita os dedos roçados de sulcos negros à borda da mesa. Depois pé aqui, pé ali, pouco seguros, os passos numa dança cruzada de pernas frouxas. A língua molha os lábios ressequidos do tinto. A voz sai entaramelada e pastosa num tom saído mais do peito do que da cabeça. Deita a mão ao bolso das calças sujas e velhas onde os remendos se alargaram tomando toda a fazenda. Do bolso tira uma coroa. Fá-la rodar entre os dedos e lança-a sobre o balcão num rodopio de corrido dançado. Pega no boné e sai porta fora.
Júlia apanha a moeda, passa uma vez mais o pano embebedado, e lenta quase que arrastando as pernas fortes fecha a velha porta de madeira pintada de vermelho, já gasta. A Taberna está fechada. A noite vai descansar. Júlia abre a gaveta do balcão que fica mesmo no canto, por cima dos copos de cinco. Tira a caixa que está dentro. A caixa de folha-de-flandres riscada de rosas vermelhas e amarelas, já negra e ferrugenta, a caixa das moedas. Conta-as. São vinte escudos. Nada mau. Mentalmente pensa na fazenda da sua Laide.
---------------------------------------------------------------------------------------------------
São oito horas da noite. Isabel afasta o microscópio. Roda a cabeça num semi-circulo de pescoço dorido. Fecha os olhos enquanto faz os movimentos. Parece-lhe estar suspensa. A sua dimensão mental ainda paira. Está exausta. Fecha o caderno dos últimos apontamentos. Os óculos são puxados pelo polegar e médio e poisados sobre a banca. Endireita-se, afasta a cadeira e levanta-se devagar. Perdeu uma vez mais a noção do tempo. A esta hora já os filhos e o marido estão a caminho da casa. O corpo abate-se no peso do cansaço do dia. A profissão consome-a, a família sujeita-a a um mundo que nem sempre lhe apetece, o marido é ferro peia de um sonho incompleto. Precisa de respirar. Tira as luvas que deita no lixo. O som do látex fá-la suspirar. A sua pele de quase todos os dias. Despe a bata. Dirige-se para o armário, tira o casaco e o saco Dirige-se à casa de banho. Lava as mãos, passa o pente pelos cabelos cor de cobre velho, o batôn dá um ar de vida ao rosto pálido. O blush mata a palidez do cansaço. Está pronta. Abre o saco e pega nas chaves. Sai e, fecha a porta atrás de si. Dá as boas noites ao encarregado de serviço. Já no parque, entra no carro, liga o motor, acende as luzes e depois de um longo suspiro e meio sorriso de desassossego, arranca.
(…)
.
.