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Viúva rica, solteira não fica…
Dobrada, recolhida, arreada em meada de negro vestida, Sãozinha carpe a sua dor de viúva recente. O seu finado ainda há uma semana recolheu ao rectângulo de terra certa, ainda estão quentes as lembranças do homem, mais os trejeitos mastigados do marido, e as saudades já apertam no lembrar do cavalheiro obsequioso, gratificante e galante. O seu Orlando, entradote nos anos, mas de figura enxuta, palavreia fluente, presença marcante e carteira falante. Uma preciosidade!
Sãozinha Bastos, seu nome de menina, trabalhara muitos anos no seu aperfeiçoamento visual, físico e temperamental. A sua mente tão ocupada no seu aplainar de curvas, olhares, pestanejar e muitos mais ares, entrara em curto-circuito ainda em tenros anos, embotando-lhe os neurónios restantes. Porém nada visível, pois que o exterior por demais apelativo fazia esquecer quaisquer outros percalços.
Figura de encher o olho, a idade não vai para além dos trinta e picos, muito cuidados alinhados. Bem, talvez quase quarenta, mas tal pertence ao segredo dos deuses mais do cartão amarelo. A nossa viuvinha, enfiada numas calças justinhas que lhe delineiam todos os possíveis, mais um camisolão que faz sonhar pelo que está escondido, afunda-se no seu enorme leito redondo, lugar ainda à bem pouco, de brincadeiras loucas e excitantes. Agora sente-se murcha. Murcha mas não morta, o que sempre é bem diferente. Depois, o viço pode recuperar-se neste caso. Um pouco de chuva e tudo remoça, é a natureza, assim pensa Sãozinha Carpida. Afundada naquele desgosto, não dorido mas antes posto, a viuvinha começa a entediar-se da sua vidinha. Uma semana fechada na gaiola sem esvoaçar por outros beirais que não os seus, fazem-na piar qual cotovia abandonada. Levanta-se, vai até ao enorme espelho que preside ao quarto. Gosta do que vê. Não está mal, não, pensa com os seus botões, e depois sabe que o seu Orlando como zeloso que fora, deixara-a bem fadada de tostões e outros dobrões, pensa a nossa Sãozinha Forrada.
Senta-se de novo na borda da cama e mentalmente faz as contas. Ora o seu Orlando finou-se, vai para doze dias, abrindo a mão conta dedo a dedo, num esforço que a leva a enrugar a testa e a morder o lábio inferior. Bem já está. É isso, doze, será? É, é, responde-lhe a consciência. Mais uma semanita e, pensa ela, vai-se do buraco para fora. Está na altura de mudar de ares. Aqui não pode fazer grande coisa, pois que toda a gente a conhece. Meios pequenos são uma pasmaceira. A sua utilidade advém de se conhecer as pessoas e haver mesuras quando se pressente os bolsos forrados ou então se a gente vem daquelas famílias de nome comprido mas tesas que nem um carapau seco. O seu dinheirinho, bem morninho, espera-a, não que ela tenha falta de imaginação, não, nada disso, é apenas uma questão de ocasião.
Ao vigésimo dia Sãozinha Viajante, tira Mercedes preto da garagem, pensa mentalmente em trocá-lo por um descapotável, carrega-o de malas, maletas, necéssaires e toda ataviada que não de preto, lança-se à estrada. Como desculpa, uma mudança de ares e visitar o santuário de Lourdes como prometera ao seu Orlando. E palavra dada a moribundo é para se cumprir. Estão dadas as explicações, Clara a fiel e devota empregada, fará o favor de espalhar a notícia. Ela conhece o meio, se conhece.
Já longe da terrinha que lhe serviu de tecto, Sãozinha para o carro, suspira, solta uma gargalhada, esfrega as mãos, pega no estojo de maquilhagem, retoca-se e, entre dentes cantarola. Está livre, rica, apetecível, sensível e sobretudo disponível. Também ela é um achado! Mas, alto lá, vai escolher mas bem escolhido, porque dinheirinho tem ela, precisa agora de um rapazão bem folgazão e bonacheirão com muita submissão e nenhuma capitulação. Encontrá-lo vai ser obra, no entanto, tem tempo. É assim a Sãozinha Caçadora.
Já de arma em riste, isto é, de corpo dobrável, sorriso flexível e olhar maleável, Sãozinha Caçadora bate os lugares na busca da presa desejada e suspirada. Eis senão quando, ao cruzar da esquina depara com o espécime sonhado. Um macho alto, de músculos apurados, tisnado de sol, cabelos negros puxados para trás como se fora estrela de Hollywood. Não pensa mais, porque não está na sua natureza. E simplesmente vai de encontro à estátua em movimento. Zás, catrapus. A mala de mão cai obedientemente no chão e o seu recheio solta-se alegremente. Pobre alma! Que desolada fica a nossa Sãozinha. Um rubor, um ah, um ai, um ui, soltam-se ritmicamente da sua boca de lábios bem humedecidos. Submisso, estonteado, o jeitosão baixa-se murmurando um perdão e apanha as traquitanas espalhadas.
Daí ao jantar, a dois, foi coisa de estalar de dedos. Seguiu-se um passeio, rapidamente uma noitada, e ao fim de três dias, pasme-se, estavam noivos. Um tiro certeiro de caçadora experiente!
Ora, esta coisa de noivar em quartos separados, é assunto do passado, e a nossa noivinha é pessoa moderna e gulosa, logo a um invólucro daqueles há que rapidamente tirar o laço, mais a fita-cola e ver bem, experimentar a peça, para se ter a certeza que está conforme e fica bem. E assim foi, assim se provou e serviu, e oh Deus meu, como serviu!
Sãozinha Noivinha ficou de tal modo deslumbrada, que aparvalhada nem deu que estava a ser burlada pelo Gastão, o tal jeitosão. O magano, que de parvo nada tinha, pelo contrário o interior em tudo fazia jus ao exterior, pensou rapidamente: estava ali o seu futuro, sem muito trabalho. E se pensou, melhor o fez. Carinhoso, atencioso, falacioso cercou a pequena a jeito, e com a mesma rapidez enfiou-lhe o anel redondo no dedo direito. Tudo isto, um mês depois do pobre Orlando ter recolhido o espírito, e subido ou descido ao tal Sítio conforme o Suplício.
De fresco casada Sãozinha Esposa esforça-se por satisfazer os caprichos do seu torrãozinho. Um derriço de homem que a sabe fazer feliz, satisfeita e saciada. Não precisa de inventar artes nem de ter cama redonda. O seu Gastão machão é um portento. Ela que o diga. Até já anda a ficar um pouco cansada, mas será talvez devido ao desuso dos últimos tempos. E depois o seu Gastão é um homem culto, ele até tem um curso de gestão, a herança nas suas mãos vai governar. Está encantada, deleitada, sente-se apetecida e estremecida. Uma sonhadora é Sãozinha!
Gastão já não usa gel no cabelo, nem calças de ganga, nada de coisas sem manga. Tudo do bom e do melhor. Elegante, casual e factual. Um homem de fazer o olho estremecer e, o coração derreter. O dinheirinho rebola que rola, que foge nas mãos de Gastão bonitão. Um garanhão de luxo, forte, desenvolto e solto. Diz ser perito em gestão e logo de supetão a fortuna tem na mão. É esperto, o bonitão sabe levar a água ao seu moinho e que bem que ele mói e leveda os sonhos, tão bem que Sãozinha Estonteada nada vê, nada percebe, que o figurão do seu Gastão lhe está comendo as papas, não na cabeça, mas no dinheirão. Pobre Sãozinha-Viuvinha-Carpida-Forrada-Viajante-Caçadora-Noivinha, o que esta alminha passou até chegar a Sãozinha-Casada-Enganada! Que trabalho, congeminações, traições e perdões teve que suportar, elaborar, granjear. Uma vida de verbo, mais de substantivo, de frase rimada, e ideia rodada em estribilho sopesado. Rodam os tempos, rodam as vidas. Gastão, figurão, conduz o seu Mercedes. Sãozinha, coitadinha, meia tontinha arrasta o cesto das compras…viúva rica, solteira não fica, mas a vida sacrifica…
E ainda dizem que há pessoas com sorte!