Dormi contigo a noite inteira junto do mar, na ilha. Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono, entre o fogo e a água. Talvez bem tarde nossos sonos se uniram na altura e no fundo, em cima como ramos que um mesmo vento move, embaixo como raízes vermelhas que se tocam. Talvez teu sono se separou do meu e pelo mar escuro me procurava como antes, quando nem existias, quando sem te enxergar naveguei a teu lado e teus olhos buscavam o que agora - pão, vinho, amor e cólera - te dou, cheias as mãos, porque tu és a taça que só esperava os dons da minha vida. Dormi junto contigo a noite inteira, enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos, de repente desperto e no meio da sombra meu braço rodeava tua cintura. Nem a noite nem o sonho puderam separar-nos. Dormi contigo, amor, despertei, e tua boca saída de teu sono me deu o sabor da terra, de água-marinha, de algas, de tua íntima vida, e recebi teu beijo molhado pela aurora como se me chegasse do mar que nos rodeia.
Deixa descair os braços do amplexo que abrigava Joost. Olha-o, e sente o chão fugir-lhe, sente que o mundo parou, sente que chegou finalmente à sua porta. Afasta-se levemente, olhando para dentro de si, para as suas entranhas, para a sua alma. Tem que o fazer antes de entrar, o passo tem que ser dado firme e largo. Suspira e cruza-a. A entrada é nebulosa, esparsa, há calma dentro de si, uma espécie de força interior que nunca julgou possuir, e também sente doçura, o que é esquisito. Afonso João, trinta e oito anos, não é belo, não é forte, não é alto, não é personagem de romance. É apenas mais uma figura sentada, num banco de um bar demasiado barulhento, onde as pessoas se perdem no néon das cores vivas, e os esgares dão conta do mundo escondido da noite. É homem, em descoberta, junto da sua revelação que dá pelo nome de Joost. Ainda há bem pouco, era igual, sabendo que algures era diferente, agora, e neste momento, é diferente, sendo igual à sua verdade. O som do bar rebenta-lhe no peito revolto de ruídos de certeza. Olha a mesa, os copos de whiskey bebidos, embaciados de gelo e de mãos suadas. O ar viciado de cinzento de fumo, o cheiro adocicado da cannabis que invade as narinas e amacia devagar devagarinho a mente tornando os sentidos extáticos. Sente rodopiar em si a verdade. Precisa de sair, de apanhar ar, de tragar a verdade, de aquilatar a condição, de assumir a escolha. Simplesmente, ama Joost, o homem.
Cá fora o ar da noite de Amesterdão envolve-o na sua humidade cuspida de chuva. É a nortada trazida pelo Atlântico, ergue a gola do casaco e suspira. Toma alento, endireitando-se olhando-o, Joost devolve-lho, em azul, mudo de aguado, luzidio de promessa e calmo de feliz. Caminham lado a lado, ao longo do Amstel que marulha sob os cascos dos barcos cantando dolentes nos seus rangido presos. Descem Prisengracht, não falam, não precisam. O silêncio comunga-lhes o sentir, a aceitação deixa-os humedecidos, perdidos em pensamentos. São ambos colegas, amigos, casados e pais. O mundo gira-lhe nos pés, na alma, e na razão. Não, aí não gira, dói como corte de bisturi, separando-lhe o ser em carnes latentes de vida, de veias pulsantes e de músculos. O cérebro pulsa, lateja e cospe-lhe a verdade que sempre sentiu e que não assumiu. É diferente no quadro vigente do normal, todavia simplesmente ama, mas ama um homem. Lembra-se dos seus tempos de adolescente e como se sentia diferente, lembra-se do tempo de namoro, do casamento, dos filhos, do encontro com Joost, do querer e não querer, da voz, dos silêncios, das angústias, de tudo. Chega! Acabou! A revelação está aí!
No relicário das memórias, Afonso João recorda a infância junto da mãe e dos irmãos. Do pai, vagamente, pois morrera de acidente, ainda era ele muito pequeno. Não tivera sobressaltos, apenas serenidade mas sempre acompanhada de um estremecer de alma, de uma sensibilidade vibrante e de um amor ao próximo extremoso. Sempre acudira aos tristes e doentes. Estava-lhe no sangue, daí a escolha, ser médico. Já na Faculdade conhecera Ana, também ela estudante de medicina .Fora uma atracção de expectativas, de sonhos e dádivas .Conheceram um pouco do mundo ,e das suas dores ao fazerem voluntariado em S. Tomé. A malária, a disenteria, o dengue, a sida, tinham-lhes mostrado a precariedade do ser humano, unindo-os num casamento de dádivas. Ana era a sua companheira, o outro lado do seu intelecto, a lutadora serena, o pilar da estrutura familiar. Descansava nela demitindo-se das escolhas, das labutas exteriores. Detestava os pequenos nadas da vidinha de todos os dias, quase cinzenta de repetida. Nunca sentira êxtase, nem acrisolamento. Tudo fluíra como se fosse um simples rio de águas ,ora pardacentas ora de um brilho breve. Sabia que era insatisfeito, sabia-o ,quando acordava de manhã ao lado da sua Ana. Sabia-o, quando a tomava para si e se amavam, sentia que era um acto, não havia fulgor, nem brilho. Simplesmente ternura, muita ternura. Carolina e Afonso tinha chegado. Hoje eram quase adolescentes. Uma guilhotinada invade-lhe o corpo, como lhes vai dizer? Como? Ele não pode adiar. Não pode, não vai. Chegou à foz do seu rio, a entrada no mar tem que ser livre, livre! Tem que chegar a casa, tem que cruzar rápido aquelas águas paradas, aquele suave entorpecimento que tem sido a sua existência. Soube hoje, o que era sentir o redemoinho, a vibração, o poder dilatado em espasmos de prazer. Soube a sua verdade, toda e não quer perdê-la. Já foram tantos os anos dormidos. Tantos enganos feitos verdades. É tempo de si. É tempo de amar a vida, de amar Joost, de se amar. Para trás fica o que não perdeu, mas também não achou, um cinzento erguido vida, amedrontado de vontade e dormido de si. Poucas vezes sentira o riso brotar-lhe nas veias vermelhas de sangue quente e pulsante, poucas ou nenhumas sentira o ímpeto do riso catapultado das suas entranhas. Vivera, porque respirara ,mas a anestesia do sentir não lhe tinha permitido, até então, dilatar as narinas, e aspirar o hálito do mundo em tempo de escolha, e de revelação, era altura de partir correntes ,moldando novos elos. Estivera preso, olhando sempre a liberdade do outro lado, porém ,o tempo chegara , a chave girara e a porta se abrira. O corredor era ulcerado de comentários, hemorrágico de desdéns e aleivado de escaras, porém era a sua artéria sistémica de saída.
Despede-se de Joost e caminha até Statenjachststraat. Ana esteve de banco esta noite, certamente que estará a sair, à sua frente surge-lhe o Academisch Medisch Centrum onde há quase dez anos ambos trabalham. As suas especialidades são diferentes mas as dúvidas, e angústias são semelhantes. Tinham chegado com bolsas e agora faziam parte do corpo clínico. Era gratificante e apelativo o trabalho desenvolvido. Sentia-se realizado como médico quer em termos científicos quer humanos. A escolha fora boa.
Assim ,divagando ,não se apercebeu da figura que calmamente se colocou a seu lado. E em bicos de pés se ergueu e o beijou na face.
-Viva, boa noite!
-Olá, Ana.
Deu-lhe o braço e dirigiram-se para o outro lado. Perto havia um barzito que tantas vezes os acolhera. Já sentados e casacos tirados, pernas cruzadas em cadeiras macias de encosto cómodo, segurando copos de Amstel Bier, olham-se. Ana poisa o copo perlado de gotículas e diz-lhe:
-Desabafa Afonso João. Vá lá…foi para isso que vieste, não foi?
Olha-a, Figura gentil de rosto suave, olhos cinzentos grandes, perscrutadores plenos de centelhas de inteligência, boca túrgida, cabelos loiros, fartos, penteados simplesmente para trás, escapam-se ao movimento do pescoço, acompanham o bater dos cílios. Veste uma saia de lã justa e uma camisola do mesmo tom . As pernas, cartão-de-visita, cruzam-se elegantemente, revelando perfeição de linhas vestidas em meias de tom beringela transparente de acordo com o conjunto. Como sempre irrepreensível. É uma figurinha ,a mãe de seus filhos. Uma mulher muito interessante, bonita ,loquaz, inteligente e muito sensível. Uma criatura para ser amada e amar devotamente. Conhece-a bem. Engole em seco, olha-a ,e instintivamente põe a mãos na mesa como se precisasse de amparo. Ana aprisiona-lhe os dedos e mergulha o olhar de cílios longos naquele outro dorido de palavras. Pigarreia.
- Ana, tenho… algo muito sério para te dizer.
- Sim, Afonso, estou à espera… diz.
- Ana. Amo outra pessoa… eu…
Ela entreabre os lábios num sorriso, o olhar é cansado muito, dorido, como se finalmente a verdade, há tanto tempo esperada… as lágrimas humedecem-lhe o brilho do olhar, o rosto está amarrotado de dor.
- Afonso…creio saber. Espera… um soluço escapa-se-lhe da garanta, mas sorri…acrescenta olhando-o profundamente - É o Joost, não é?
Afonso responde sem voz em murmúrio: - Sim…
Olha-o uma e outra vez, abana a cabeça, recolhe as mãos, ergue-se lenta, lentamente como se aquele acto tivesse terminado e a plateia ansiasse pelo clamor. Já de pé recua, olha-o e atabalhoadamente pega no casaco e sai porta fora. Afonso fica sentado. Mudo, quedo, partido. Depois, depois sai. Cá fora, a noite prende-o de novo mas não de forma leve, a raiva propala-se da mente para o corpo, engalfinha os dedos, e desfere dois valentíssimos murros na parede do bar, bate com a testa, e urra, sim urra guturalmente. Todo o seu ser é agonia e raiva. A sua condição revela-se-lhe pústula aberta no pulsar do seu ser. Desesperado no sentir magoado de Ana. Não, ela não!
Caem-lhe abundantes lágrimas que se aquecem na gola de lã. As mãos cobrem tensas a cabeça como se suplicassem a resposta. A noite gira no amarelo da lua. Amanhece. O negro é cinzento e depois azul desmaiado. É dia. Um outro dia de muitos que chegarão.
Joost entra na sala. Olham-se e dão as mãos.
15 outubro, 2007
Bêlaflô
- A va safy va lomo…
Melopeiando e dengando ,Bêlaflô dobra o corpo ,no ritmo compassado dos braços, que esfregam o meio coco seco,no soalho de madeira ,fazendo os círculos de brilho espreitarem. Naquele sobe e desce de canela, toda ela estremece. São os pequenos figos de S. João que saltam no decote meio aberto do vestido de florinhas vermelhas, as coxas esguias dobradas que estremecem, o traseiro duro e bem espetado que dança ritmado. Uma linha divide-lhe as nádegas revelando a nudez de interiores, uma cintura breve, umas as ancas redondas mas esguias, umas pernas compridas e torneadas que terminam nuns pés largos de dedos curtos onde as solas são rosadas e grossas. Está descalça O rosto é oval, risonho, de olhos negros, as narinas são palpitantes como se fora potro em trote, a boca é cheia, sensual em riso de pequenas pérolas brancas., o cabelo em pequenas trancinhas que pespontam no lenço vermelho com dobra e atado em três pontas que lhe tapa a cabeça, mas revela a esbelteza de um pescoço longo. Caem-lhe das orelhas duas argolas quase cobertas de missangas. Faltam os sapatos, coisa que não gosta. Nem sapatos nem cueca. Aperta.
Bêlaflô, moleca flor-fruto de quinze anos, vive e trabalha na casa de patrão Alberto. Quase nascera lá. Lembra dos tempos em que ía à escola e brincava no jardim e no quintal com os mininos mais velhos. Quando a mangueira do quarto da menina Zinha ainda era bem pequenina. Hoje já cobre a varanda e dá fruto. Agorinha, não ligam não, a Bêlaflô. A mãe Rosa bem lhe diz:”- Bêlaflô te enxerga tu és nêguinha os mininos são brancos”
Inda agora viu o minino Carlos entrar em casa, olhou-a de soslaio e foi para o quarto. Nem uma boa tarde…gente assim faz, doer. Morde o lábio inferior, dilata as narinas, ergue-se e suspira. Já acabou, pode ir descansar até à hora do jantar. Foi às compras com a senhora de manhã, arrumou a casa, e agora até ao jantar, descansa. Arruma o coco e o pano no armário, dá uma espreitadela enviesada a mãe Rosa que labuta na roupa.Branco gosta de comer e de tomar banho. Todo o dia é assim. Mãe Rosa bem diz que a casa tresanda de roupa e de sabão. Sai pela porta da cozinha e vai até fundo do quintal, para debaixo da acácia florida de rosa. Linda. Tem perfume doce. Como o ar quente que não mexe, tá calor, mesmo, Janeiro, o mês da quentura e da moleza. Deita-se no chão, abre as pernas, ergue o vestidito ligeiramente, coloca as mãos sob a nuca e vê o céu por entre os ramos da acácia florida. O sol está lá cima mandando a luz forte, pisca e fecha as pálpebras ao brilho, e matreira tenta abri-los lentamente, como que a enganar, mas não consegue, então solta um gorjeio forte e rebola-se na terra. Aquieta-se para aspirar o vento que traz a maresia, e o marulhar das ondas, mesmo do outro lado, da estrada. Nem cinquenta metros a separam da praia. Sabe bem, lá ir, ao fim da tarde, no finzinho da luz forte, quando tudo é rosa e laranja. É quando o dia é mais bonito, e se sente calma, sem aquela coceira que a traz, meia sem jeito. Não sabe bem o que é, vem mesmo de dentro, fica arrepiada e meia tonta. Será maleita, mau-olhado? Mãe Rosa anda de olho nela e está mais áspera. Que coisa! O velho Tião abana a cabeça e diz: -“ Ah Bêlaflô vucê tá flô”. Domingo, o cozinheiro olha-a dengoso, mas não gosta dele, não, é velho. Domingo, negro como ela, inté é bem-parecido, gosta de rir e de tocar a viola feita de lata de azeite vazio. Ao domingo veste a roupa nova e vai gingar com os amigos. É a tarde de folga. Todo o dia está agarrado às panelas e inté usa farda, avental e chapéu, tudo branco. Coisa da senhora, mas se soubesse, que ele, quando tem calor e coceira, mete a colher de pau da panela, na cabeça, coça - coça, e logo mexe o cozinhado. Xi! Põe a mão na boca e sorri faceira nas comissuras dos lábios. Os patrões não sabem tanta coisa! Uma leve aragem murmura entre a folhagem, e fá-la soerguer-se, para espiar a dança dos ramos. Espreguiça-se, senta-se e olha a casa, silenciosa no seu descanso. Parece não ter gente, mas tem. Estão escutando as ideias. É, branco gosta de escutar os pensamentos. Fica calado, sem luz na cara, de olho mortiço e amarelo. Aí fica sempre amarelo, porque a cor foge para as ideias. É quando a casa e o quintal se calam. Os meninos pequenos estão no colégio, a senhora está de livro aberto ou ao telefone, o patrão no escritório, a minina Zinha com os amigos, e o minino Carlos, no quarto. Tá sempre no quarto, inté tem cheiro. As persianas estão corridas, tudo a meia-luz para refrescar. Mas não refresca, não. Calor é calor e só vai com a noite.
Dirige-se para o quartinho dos fundos que partilha com mãe Rosa. Pega no fato de banho, que não veste e na toalha. Vai até à praia refrescar. Cruza o quintal, e sai pelo portão do quintal. O jardim é à frente, e para os patrões, eles usam os fundos. Sai para a rua, atravessa a estrada e ei-la no areal branco ponteado de palmeiras. O Índico, azul, morno e espesso marulha no areal. As sombras da noite já tingem o branco da praia. As palmeiras crescem no entardecer e bolem ligeiramente no verde-escuro das folhas. Está tudo vazio, um barco repousa ainda molhado. Ninguém. Estende a toalha, aninhada à proa, do outro lado, escondida. Despe o vestido e corre para o mar, mergulha-o e inunda-se da sua tepidez fresca. O sal morde-lhe a pele mas sente-se flutuar de leve, de livre de feliz, o corpo vibra no interlúdio de água Á laia de despedida, faz das mãos cutelos e corta as águas em lâminas translúcidas que lhe salpicam os olhos em lágrimas de riso. Corre para o areal junto à proa vazia e deita-se. O ventre tem ritmo de sobe e desce da corrida. Fecha os olhos e abandona-se ao prazer do momento.
Um arrepio de toque percorre-lhe os sentidos, sustem a respiração. Tem coisa aí. Mas os olhos mantêm-se fechados. Está expectante. Os dedos continuam na sua viagem lenta, gulosos, tocam a lisura de veludo e chegam aos seios que se encarrapitam. Tá gostando. Abre um olho e espreita devagarinho, é minino Carlos. Sorri e enrosca-se nele atraindo-o para si com toda a fragrância da sua canela de fêmea em desejo.Ele monta-a sem delongas, rápido em impulsos secos de compasso simples. Bêlaflô ri, ri, seguindo o ritmo esplendorosamente. Carlos levanta-se e olha-a, já em pé murmura: -’és linda, negrinha!”
Respiram e olham-se. Ele serenado de desejo, ela saciada de tremuras, uma onda quente que os varreu desaguada no ventre de vida. Agarra no vestido de florinhas vermelhas que dançam a marrabenta do amor e deixa-o descer pelo corpo quente de florido. Flor sobre flor em pau de canela. De novo os personagens da vida têm que ser preenchidos, ela, Bêlaflô nas tarefas de moleca neguinha, ele, Carlos no “minino” de sua mãe e varão de seu pai. Juntos e separados regressam à casa, um pelo portão do jardim, a outra pela porta do quintal. Bêlaflô rápida enfia-se no quartinho e dali na casa de banho. Lava-se sob o duche frio, sente-se zonza e inundada. Veste-se, cueca, bata amarela e sapato. É hora de jantar. Apanha as trancinhas num novelo e coloca o lenço na cabeça. Senhora não deixa que sirva à mesa de cabeça ao léu. Esquisitice…
Já na casa de jantar, observa os patrões e a prole. De soslaio, vai olhando para o “minino Carlos. É bonito. É alto, forte, tem olho claro como o pai ,deve andar pelos vinte. Ela era assim de pequenina ,e ele já era grande. Depois está a estudar no “Puto” há dois anos, só vem a casa no Natal e nas férias de Junho.
-Carlos, eu já comprei a passagem de avião. Na próxima sexta -feira, tu, e a Zinha, embarcais de regresso. O voo é bem cedo. Ouve o patrão dizer.
-Ó pai ,podia ter dito antes, tenho os meus amigos… Zinha que sempre fora bem palavrosa, e explicada, recalcitra logo, revirando os olhos bem à moda da época.
-Pois tem uma semana para se despedir. E depois, sempre quero ver, o que vai fazer este ano, o outro foi para esquecer…Tem o exemplo do seu irmão, veja lá se o segue., senão regressa a casa e acabou-se a Universidade, percebeu?
-Sim, pai. Também…
Pondo ponto final na conversa, o pai dirige a sua atenção, para os mais novos, que sob a toalha se beliscavam.
-Quietos Leninha e Miguel! Ou vão já de castigo para o quarto que depois vou lá!
A calma volta à mesa e Bêlaflô serve o peixe assado, que cheira divinamente. “Domingo tá ficando um bom cozinheiro!” pensa a neguinha.
-Bêlaflô! Acorda! Ouve a voz da senhora…
-Sim, senhô.
-Não sei o que lhe deu hoje. Está meia parva. Faz o favor de me servir, e como deve ser, percebeste?
Rápida, coloca o peixe-dourado com tirinhas de cenoura, as batatinhas redondinhas e o molho no prato da senhora, do patrão e dos meninos. Treme-lhe a mão quando serve o minino Carlos. Ele, calmamente vai roçando -lhe a coxa com o cotovelo... xi que calor! O patrão Alberto olha-a fixamente e ao minino também. Poisa a travessa e vai para a cozinha, onde mãe Rosa e Domingo já lavaram as panelas todas
- Tu tem Flô? – Pergunta mãe Rosa, perscrutando-lhe o semblante e o corpo.
-Ora, nada, mãe Rosa.
A velha nega, não se convence, e olha-a, remira-a e funga. Já viu muita coisa e pressentiu muito mais. Sabe da vida, do que é ser neguinha em casa de patrão. A sua Flô, também não escapou.
Olha a noite, com os olhos vidrados de sonho partido. Foi há tanto tempo, também fora flô, depois o patrão novo enrabichara-se e servira-se dela. Por algum tempo enquanto a pétala não murchou. Logo, fora recambiada para a “terra”. Silvestre fora o homem da sua palhota, até que tinham vindo para a cidade e fora trabalhar para o porto, junto dos barcos, ela, viera para a casa de patrões Lacerda. Um dia, Silvestre fora ter com os antepassados, só ela e Flô ,tinham restado.
A vida era sempre igual. Tinha que arranjar a trouxa e ir embora de volta para a palhota. Era tempo…Flô que não era flô, tinha que arranjar homem e depressa, antes de as chuvas chegarem, antes das águas do mar trazerem as algas de volta, antes do sol dormir mais na terra, antes de a palmeira dobrar no vento. Antes de Flô apanhar o jeito… de branco.
Debruçado sobre a secretária de madeira já bichada de velha, assente sobre um chão de tábuas desbotadas e cinzentas de pó varrido, Lacerda escreve aplicadamente o Deve e Haver da Companhia de Algodão. Os óculos descansam-lhe na ponta do nariz afilado, o rosto está vazio como se a monotonia do serviço lhe roubasse qualquer expressão A cor é pardacenta, amarela e desviada, igual à sala onde se senta. Tudo é mofado, velho e decrépito. A fronte generosa encolhe-se perante o ritmo rabiscado do aparo arranhando o papel grosso em tinta violeta. É um homem ainda jovem. Cabeça farta de cabelos claros puxados atrás no óleo da brilhantina. A camisa branca descansa sob uns suspensórios perdidos no excesso de pano. Entre os cotovelos e os pulsos, vestem-no os manguitos já rasos do coçar da mesa. O olhar, quando erguido é opaco de monótono como se algures o tempo tivesse parado, surge entre círculos azulados de sono e de sonhos desfeitos. Os ombros estão descaídos num abater de comiseração. Nota-se a magreza do corpo longo. Flagela-se no dever da escrita dos números, na dança a dois tempos do comprou e vendeu. Filas alinhadas de desatino.
Lacerda herói de noitadas perdidas e de mulheres já gastas. Intelectual provinciano em roda de amigos dedicados ao brilho da palavra e às artes de palco. Católico convicto mais de dogmas do que de actos, recatado nos gestos, solitário de ternuras, misantropo de sorrisos, orador solto entre amigos, senhor de nariz altivo perante os ignorantes, sorridente entre os ilustrados, cáustico no retorquir, sibilino no argumentar mas jovial no derriço são as características do óleo que lhe fazem o retrato
É terça-feira, de um mês qualquer, num ano já ido. O nosso herói olha para o relógio redondo e amarelado e reflecte nas horas marcadas. Já falta pouco para acabar. Lentamente poisa a caneta de aparo estridente, confere a escrita, passa-lhe o mata-borrão cor-de-rosa já vomitado de azul, fecha o livro comprido de capa negra, tira os manguitos que cuidadosamente coloca na gaveta meio aberta, bate os pés calçados em botina pretas já gastas mas muito bem polidas, a enganar os tempos, arrasta a cadeira no soalho despido, levanta-se, sacode poeiras perdidas nas calças vincadas. Vai ao bengaleiro e retira o casaco que veste, ajeita o nó da gravata, alisa o cabelo num gesto perdido e murmura um até amanhã. Cá fora, o dia já vestiu o capote, e pôs o chapéu preparando-se para a noite que lhe dá o braço. Alberto Lacerda respira fundo. O ar húmido do mês das castanhas dá-lhe as boas noites, pingado de gotículas escondidas sopradas na onda de vento cantado. Curva-se, enfrenta-o, e dirige-se para o café da praça. Lá estão os amigos. Uma conversa, saber das últimas da cidade e da política, um desentorpecer mental, de ideias libertas em palavras, é isto que lhe faz suportar o cinzento dos dias, do amarelado do escritório e da pobreza envergonhada da vida.
Alberto, filho de gentes educadas mas de bolsos vazios, desde pequeno que soubera sempre o que era tapar, esconder ,e sorrir ao pouco, poucochinho, ao quase nada. Na escola primária, a bata sempre tapara os calções puídos, a camisa já passajada, a camisola de cores diferentes, acrescentos que os ossos iam pedindo, e que as agulhas iam tecendo esquecidas da cor primeira. Depois fora crescendo, muito em altura e quase nada em largura. A mesa também não o permitiu. Tudo muito frugal tocando quase sempre a raia da fome. Não o era, porque havia pão e sopa. Mas pouco mais. Também não se falava nisso porque afinal tinham casa, alguma roupa, uns ordenadinhos e eram educados. A dita cuja, era só para quem pedia, era rude de espírito e roto de bolso. Os outros eram remediados, como se o saber enchesse as barrigas, cobrisse os corpos e alimentasse os seres. E foi neste credo perdido de sabores de substância que ele se foi tornando um quase "vermelho" como chamavam ao grupo de" rapazes " a que pertencia. Tinha orgulho em sê-lo, a sua razão animal dizia-lhe que a vida que sempre tivera era medíocre, o seu intelecto segredava-lhe ideias de partilha ,e melhores dias para todos os homens. Cinco rostos ébrios de ideais tingem-se de cor, e de suor, á medida que se empolgam na discussão de "O Capital". As vozes de início sussurradas ,elevam-se desprotegidas , e espalham-se por entre as paredes tal como os rolos de fumo que se elevam no ar, esbatendo-se ,finalmente no vazio do tecto. As mãos gesticulam breves, desenhando arabescos no espaço como se tentassem exprimir para além das palavras, os sons da luta, em ímpetos de movimento. Sobre a mesa pouco mais de que duas chávenas vazias de café, copos de água, e um cinzeiro atulhado de beatas. A cinza cujo cheiro se avilta nas narinas parece ser o pó das quimeras esmagadas entre a realidade do hoje e o hipotético do amanhã. Alberto, de soslaio, olha o relógio e maquinalmente ergue a gola, afasta a cadeira e levanta-se. Despede-se, com um até logo ,e sai para a praça. Cruza-a com os passos largos e elásticos. Sente pequenas gotas de água no rosto que lhe lavam os pensamentos ainda incandescentes,qual brasas a crepitar, que lhe enchem os sentidos de seiva quente. Chega a casa ,dá um beijo solto na mulher, que lhe diz:
- Vens tarde, a sopa já está fria.
- Entretive-me na conversa no café. Vá lá, anda, aquece-a outra vez, que vou sair.
-Sempre o mesmo. E eu fico aqui, sozinha? Também sou gente, sabes?
-Era o que faltava ir para a reunião com a mulher atrás. Só tu tens destas manias!
-Mas…
Maria Luísa cala-se. Leva a colher de sopa á boca e sorve-a lentamente. Olha ao seu redor. A casa de jantar é simples mas aconchegada. Na mesa uma toalha alva bordada por ela, os pratos e os talheres dispostos a preceito, os copos brilhantes, os guardanapos à esquerda, o cesto do pão, a terrina da sopa que já fumega de novo, uma pequena fruteira com algumas maçãs reinetas que perfumam a mesa e o jarro do vinho. É mais o atavio do que o conduto, mas é assim a vida. Há que ter preceitos mesmo no pouco. Sorvida a sopa, Alberto descasca a sua maçã e é entre as cascas e os quartos que se dispõe a conversar um pouco. Relata-lhe sumariamente e sem grandes adjectivos as últimas novidades da política, os convites "a férias" de uns tantos, o desaparecimento de outros e tece uma série de impropérios sobre o governo e seus pares. O costume de sempre.
Ei-lo que já está de pé. Desta vez recorre a uma velha gabardine bege ,já meio desbotada, diga-se da chuva, ou talvez dos tempos. Veste-a pensando para com os seus botões. "Bem preciso de uma nova, mas não dá, terá que esperar., como …. Sempre"
-Até logo, não esperas por mim, deita-te, hoje temos reunião.
Áspero e contido, porque não sabe exprimir ternura. O sentimento dedilha-o nas cordas da verborreia política. Não sabe, não quer, não deseja qualquer intimidade com o seu sentir. Era expor demais o seu eu, era derrubar a parede da sua força argamassada no vazio da ternura. Fora despida a sua infância de carinhos e bens. Criara-se no silêncio dos gestos. Hoje, explodia na palavra, nas ideias, nas injustiças, qual fogo contido, porém gelava no contacto humano. Era um solitário o nosso Alberto .Penetra na noite, desloca-se ao sabor dos passos na rapidez das pernas. Os pensamentos fogem-lhe de velozes. Já sabe o que lhe cabe esta noite. Terá que distribuir a "encomenda ". É a sua vez. Já é madrugada quando retorna a casa. Vem exausto de ansiedade. Espera não ter sido visto, é sempre uma interrogação. Amanhã terá que estar no escritório, calmo e sereno, como se o mundo lhe passasse ao lado e não dentro dele. Deita-se e adormece.
E o dia seguinte nasce na sua rotina. De novo à sua secretária, de caneta em punho preenche as colunas. O rosto está impassível, a cadência apossou-se, o espírito voou para fora da sala cinzenta onde o sol se despede cada manhã na esquina da janela. Alberto suspira, a pequenez, agonia-o, a hipocrisia sorridente do faz de conta também. Nada está bem, mas todos se vergam. Os que estão em cima deixam as barrigas engordar, os do meio dobram-se na imaginação de também engordarem, e muitas vezes conseguem-no, e os pequenos… bem esses ou se calam e ficam mais pequenos ou lutam conforme as armas que possuem. Lutam com as palavras.
E foi assim que Alberto foi parar ao Aljube. Depois dali partiu para as colónias, na busca de vida melhor. Por lá ficou muitos anos. Tornou-se uma referência e a família também. Soube criar respeito a par de riqueza. Nunca voltou à sua terra natal, por revolta e asco. Amou excessivamente esse pedaço tropical ao qual votou todas as suas forças e deu-lhe as raízes que criou. Mas um dia…Um dia de Primavera, o tal dia tanto anos antes sonhado, chegou. O seu eco foi forte, muito. Fez suspirar e antever mil promessas. Alberto festejou, muito mesmo, sobretudo dentro de si.
Os tempos de mudança nasceram da premência do momento ,mais do que na verdade da realidade. Alberto regressado, tem que fazer face á vida, não é fácil e a idade é outra. Os filhos cresceram. Tem que provir o pão-nosso de cada dia ,e mais ,o amanhã. Uma família de seis. Os mais velhos têm que deitar a mão ao trabalho e parar os estudos., uma revolta para quem não sabia nada de sacrifícios e de pouco ter. Uma lição de vida amarga em anos já de flor-fruto. São mais dez anos de e mais luta. Mas no fim, sente-se glorioso. Conseguira vencer, conseguira mudar o carimbo de remediado que o perseguira desde o primeiro vagido, e subir o degrau de "desafogado" a hierarquia social recebera-o na sua enorme barriga de preconceitos de Teres e Haveres
Hoje sentado no seu canto preferido lê o "pasquim"nacional. Como mudaram os tempos. As vidas são mais lisas, mais coloridas, perdeu-se o cinzento de outrora se bem que, ele ande por aí … qual pombo gordo e anafado à procura de outros mas brancos e incautos…
Pelo sonho é que vamos, comovidos e mudos. Chegamos? Não chegamos? Haja ou não haja frutos, pelo sonho é que vamos. Basta a fé no que temos. Basta a esperança naquilo que talvez não teremos. Basta que a alma demos, com a mesma alegria, ao que desconhecemos e ao que é do dia a dia. Chegamos? Não chegamos? - Partimos. Vamos. Somos.