Quem sou eu

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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

24 setembro, 2007

BALLET FLAMENCO DE MADRID

As seis cordas

Federico Garcia Lorca


A guitarra
faz soluçar os sonhos.
O soluço das almas
perdidas
foge por sua boca
redonda.
E, assim como a tarântula,
tece uma grande estrela
para caçar suspiros
que bóiam no seu negro
abismo de madeira.

19 setembro, 2007

Sonho



Fiz um conto para me embalar


Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.




Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.




Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.


Natália Correia


Flor que não dura



Mais do que a sombra dum momento



Tua frescura



Persiste no meu pensamento.




Não te perdi




No que sou eu,




Só nunca mais, ó flor, te vi




Onde não sou senão a terra e o céu.




Fernando Pessoa in Poemas Inéditos


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Ser poeta


Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!


É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!


É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
é condensar o mundo num só grito!


E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca

14 setembro, 2007

O Jogador

Treme-lhe a mão e o olhar. Pisca a pálpebra. Enruga a testa. Humedece os lábios. Enrola os ombros. Contém a respiração e sorri. Sorri friamente no olhar gelado. Os lábios são um traço. Os olhos semi-cerram-se. Avalia a situação. Tamborilam os dedos na dança das cartas.

Não é novo, nem velho. É indefinido. O fato escuro dança-lhe no corpo magro, seco, torcido de tanto sentado na mesa de jogo. O cabelo negro puxado para trás deixa liberta uma fronte magnânima. A tez é alva. Demasiado. Falta-lhe a cor do ar. É esguio sem ser alto. Tudo nele é fugidio e expectante. Caetano José mais uns tantos apelidos dão-lhe a identificação. Sabe quem é, e de onde vem. Para onde vai não tem a certeza, e muito menos, os meios.

São três da tarde. Deveria estar no gabinete. Batem à porta. Abrem. A sala está vazia. Como sempre Os papéis repetem a ordem do silêncio manual. Mais um dia. O colega amigo abana a cabeça, o rosto reflecte a tristeza. Caetano vai ser despedido. Não o vai poder evitar mais. Lentamente suspira e fecha a porta do gabinete. Percorre o corredor e perde-se nele. Lá em baixo está o Director. Que vai dizer?

Á mesma hora, Caetano José joga …desesperadamente na angústia febril do reaver. Nada, nada. A última mão. São só mais cinco minutos. A rapidez rodopia na acção e na pressão. A emoção esboça-se no instante e …foi-se. Uma vez mais. As mãos enclavinham-se no bordo da mesa. As veias sobressaem-lhe na fronte pálida. Latejam. Não no desespero ,mas na raiva. Caetano é um homem de raivas, fúrias e lampejos febris. Repele e golpeia com palavras e desdém. Pensa de si, ser o melhor. Sabe que erra mas não admite ser julgado ou admoestado. Nunca o suportara. Sempre se revoltara. Sempre. Não conhecera o pai. Fora-se no mar. Em navio de guerra. Era oficial da marinha. A mãe, grávida e ainda de núpcias nunca mais o vira. Nascera. Crescera. Fora educado em colégio. Fugia. A viola e a sua Lisboa …”boémia, fadista “povoavam-lhe os sentidos e as horas. E de viola, serenata e encantos colhera a sua Margarida.

Filha de família, sim senhor, porque ele, também o era. Menina prendada, extremosa, cuidadosa e amorosa. Tantos rendilhados para uma vida de burel. Margarida roliça, de olhar azul em dia triste e cabelos fulvos será sempre o seu carteio. Triste sina. Linhas cruzadas na mão de um lance desafiador que a derrotara, o jogo, as cartas. A amante era por demais muda e viciante .A miséria já batia à porta e ela, a amante, não se largava. As paredes da casa, em tempos recheadas, estavam esquálidas. O dinheiro não havia. As crianças, quatro, a caminho da quinta, tinham os pés descalços. Não suplicava, não chorava, não gritava. Aceitava. Pensar que um dia fora menina de cabriolet. Hoje, os pés nas botinas puídas e esticadas onde os buracos da sola eram tapados com cartão, percorriam as calçadas num vai e vem de trabalho de agulha. Caetano, seu marido, sedutor da sua alma, lascívia da sua alcova, tirano de compreensão, cruel de palavra e irado de olhar. O pai dos seus filhos. Pai temido e não amado.

Caetano José, funcionário dos C.F. faltoso, ardiloso e calão. O trabalho detesta-o. Coisa menor. O jogo é a sua paixão. A família o seu pesadelo sonhado. Não suporta o trabalhinho de gabinete, pequenino, vazio e de ordenadinho fixo. Não tolera o chefe de falas mansas e conselhos melífluos, não atina com os colegas sabujos de pequenas promoções e menores vidas Na estação, Santa Apolónia onde raramente põe os pés e tem o gabinete, vê os comboios chegarem e partirem. Anseia por partir. Mas não pode. Não pode, porque o jogo o chama diariamente. Não a família, essa, que se lixe. Tem espírito superior às coisas comezinhas. Ele é um senhor. Ainda não perceberam?Um Senhor!

Tropeça na biqueira dos botins, ao subir a calçada, pragueja contra o vento que sopra do Tejo, chispa num olhar de raiva ao seu redor. Não tolera os vizinhos labregos, rudes e operários. Chega ao degrau da porta. Empurra-a. Entra e grita:

-Margarida!

-Sim, Caetano. Responde a voz contida. Enxota suavemente os pequenos. Põe os dedos nos lábios em onomatopeia: Chiu! Psss! Ajeita o chignon, alisa a saia e sorri.

-Aqui estou, meu querido!

-Estou febril. Vou-me deitar. Leve-me uma canja à cama!

Assim. Sem mais. Duro, frio, egoísta. Cai na alcova. Sente-se exangue. Violado, roubado. A sua amante bebe-lhe o ser. A vida cobra-lhe a alma. A família tolhe-o .Somente a raiva surda do ontem perdido, e do amanhã hipotecado na lâmina cortante da jogada, o faz respirar. Abandona-se à tepidez dos lençóis ainda bordados. O silêncio da casa penetra na sua mente. Um quase vazio. Sente o ser rodopiar em espiral. Depois o outro eu, reflecte o anseio procurado: a tranquilidade, a compreensão, a aceitação. A paz de si. A luta, a raiva, o desdém, o desamor descansam por ora. Por breves momentos Caetano deixa a agitação que o persegue, desventrando-lhe a mente e aviltando-o nos degraus de vida que teima em tropeçar.

-Caetano, meu querido… tem aqui a canjinha…

-Obrigado, Margarida. Desculpe-me. …Os pequenos?

-Estão no quarto…quer vê-los?

-Sim… Não, mais tarde talvez…Agora deixe-me

O quadro repete-se dia após dia, como se o artista apenas soubesse usar aquele traço pesado e triste. A paleta de cores morre no esbater da noite com laivos vermelhos de raiva. As figuras abrem-se mudas ao embuste da vida. Uma tela terrivelmente espatulada.
A noite é já bem escura quando Margarida se deita a seu lado, dorida de um dia de miséria escondida, ele agita-se no leito. Acorda da sua letargia e sem palavras serve-se. Penetra-a sem delongas, sem gestos, apenas o acto. À saciedade. Um homem não pede, um homem usa. Ela é sua para ele. Só e apenas. Deixa-se cair e adormece
São onze horas. Levanta-se. O sol já vai alto e a casa já ganhou a vida de um novo dia. Ouvem-se as vozes das crianças…ao longe. Levanta-se. Tem que ir para o gabinete para a vida pequenina e arrumadinha.
Sai com um até logo enxuto. A cidade já revolteia. O cheiro do rio penetra-lhe nas narinas, amassa-lhe os pulmões e irrita-lhe o cérebro. Desce a calçada. Santa Apolónia é já ali em baixo. Eis a estação. Franqueia a porta. Alguém o cumprimenta. Sem olhar, retribui. Sobe ao seu gabinete. Entra e senta-se, suspirando de tédio. O relógio compassa as horas indolentes no silêncio fechado. Batem-lhe à porta. É o paquete que lhe diz para ir ao Director. Mais tarde quando abandona a sala do superior, tem a cólera estampada. O rosto é vermelho, os olhos quase saltam nas órbitas de furibundos. O esgar da boca é de ódio tudo condiz na expressão .Até o colarinho engomado da camisa está solto. A fúria está alojada. Fora despedido!

-Imbecis, quejandos!

Não pelo despedimento, mas afrontarem-no, a ele! E logo hoje que até quase cumprira o horário. Incumprimento?! Mas o que pensavam eles? Já na rua cospe a raiva em frases murmuradas de ódio contra todos e tudo .Os dedos esguios descrevem hiatos de força, as pernas baloiçam numa dança de pontapés perdidos… Louco de tudo, atravessa a rua, volta à esquerda, sobe. Não respira, range os dentes. Lá está. Entra. Suspira. Sorri. Sente a teia envolvente e macia. O afago de calmaria que o penetra. A sua amante espera-o sensual e faminta na dança do leilão e ele sabe que será o seu eterno carteio.

Sente-se em casa, em paz, a entrada está feita!