"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
19 setembro, 2007
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
é condensar o mundo num só grito!
E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!
Florbela Espanca
14 setembro, 2007
O Jogador
Treme-lhe a mão e o olhar. Pisca a pálpebra. Enruga a testa. Humedece os lábios. Enrola os ombros. Contém a respiração e sorri. Sorri friamente no olhar gelado. Os lábios são um traço. Os olhos semi-cerram-se. Avalia a situação. Tamborilam os dedos na dança das cartas.
Não é novo, nem velho. É indefinido. O fato escuro dança-lhe no corpo magro, seco, torcido de tanto sentado na mesa de jogo. O cabelo negro puxado para trás deixa liberta uma fronte magnânima. A tez é alva. Demasiado. Falta-lhe a cor do ar. É esguio sem ser alto. Tudo nele é fugidio e expectante. Caetano José mais uns tantos apelidos dão-lhe a identificação. Sabe quem é, e de onde vem. Para onde vai não tem a certeza, e muito menos, os meios.
São três da tarde. Deveria estar no gabinete. Batem à porta. Abrem. A sala está vazia. Como sempre Os papéis repetem a ordem do silêncio manual. Mais um dia. O colega amigo abana a cabeça, o rosto reflecte a tristeza. Caetano vai ser despedido. Não o vai poder evitar mais. Lentamente suspira e fecha a porta do gabinete. Percorre o corredor e perde-se nele. Lá em baixo está o Director. Que vai dizer?
Á mesma hora, Caetano José joga …desesperadamente na angústia febril do reaver. Nada, nada. A última mão. São só mais cinco minutos. A rapidez rodopia na acção e na pressão. A emoção esboça-se no instante e …foi-se. Uma vez mais. As mãos enclavinham-se no bordo da mesa. As veias sobressaem-lhe na fronte pálida. Latejam. Não no desespero ,mas na raiva. Caetano é um homem de raivas, fúrias e lampejos febris. Repele e golpeia com palavras e desdém. Pensa de si, ser o melhor. Sabe que erra mas não admite ser julgado ou admoestado. Nunca o suportara. Sempre se revoltara. Sempre. Não conhecera o pai. Fora-se no mar. Em navio de guerra. Era oficial da marinha. A mãe, grávida e ainda de núpcias nunca mais o vira. Nascera. Crescera. Fora educado em colégio. Fugia. A viola e a sua Lisboa …”boémia, fadista “povoavam-lhe os sentidos e as horas. E de viola, serenata e encantos colhera a sua Margarida.
Filha de família, sim senhor, porque ele, também o era. Menina prendada, extremosa, cuidadosa e amorosa. Tantos rendilhados para uma vida de burel. Margarida roliça, de olhar azul em dia triste e cabelos fulvos será sempre o seu carteio. Triste sina. Linhas cruzadas na mão de um lance desafiador que a derrotara, o jogo, as cartas. A amante era por demais muda e viciante .A miséria já batia à porta e ela, a amante, não se largava. As paredes da casa, em tempos recheadas, estavam esquálidas. O dinheiro não havia. As crianças, quatro, a caminho da quinta, tinham os pés descalços. Não suplicava, não chorava, não gritava. Aceitava. Pensar que um dia fora menina de cabriolet. Hoje, os pés nas botinas puídas e esticadas onde os buracos da sola eram tapados com cartão, percorriam as calçadas num vai e vem de trabalho de agulha. Caetano, seu marido, sedutor da sua alma, lascívia da sua alcova, tirano de compreensão, cruel de palavra e irado de olhar. O pai dos seus filhos. Pai temido e não amado.
Caetano José, funcionário dos C.F. faltoso, ardiloso e calão. O trabalho detesta-o. Coisa menor. O jogo é a sua paixão. A família o seu pesadelo sonhado. Não suporta o trabalhinho de gabinete, pequenino, vazio e de ordenadinho fixo. Não tolera o chefe de falas mansas e conselhos melífluos, não atina com os colegas sabujos de pequenas promoções e menores vidas Na estação, Santa Apolónia onde raramente põe os pés e tem o gabinete, vê os comboios chegarem e partirem. Anseia por partir. Mas não pode. Não pode, porque o jogo o chama diariamente. Não a família, essa, que se lixe. Tem espírito superior às coisas comezinhas. Ele é um senhor. Ainda não perceberam?Um Senhor!
Tropeça na biqueira dos botins, ao subir a calçada, pragueja contra o vento que sopra do Tejo, chispa num olhar de raiva ao seu redor. Não tolera os vizinhos labregos, rudes e operários. Chega ao degrau da porta. Empurra-a. Entra e grita:
-Margarida!
-Sim, Caetano. Responde a voz contida. Enxota suavemente os pequenos. Põe os dedos nos lábios em onomatopeia: Chiu! Psss! Ajeita o chignon, alisa a saia e sorri.
-Aqui estou, meu querido!
-Estou febril. Vou-me deitar. Leve-me uma canja à cama!
Assim. Sem mais. Duro, frio, egoísta. Cai na alcova. Sente-se exangue. Violado, roubado. A sua amante bebe-lhe o ser. A vida cobra-lhe a alma. A família tolhe-o .Somente a raiva surda do ontem perdido, e do amanhã hipotecado na lâmina cortante da jogada, o faz respirar. Abandona-se à tepidez dos lençóis ainda bordados. O silêncio da casa penetra na sua mente. Um quase vazio. Sente o ser rodopiar em espiral. Depois o outro eu, reflecte o anseio procurado: a tranquilidade, a compreensão, a aceitação. A paz de si. A luta, a raiva, o desdém, o desamor descansam por ora. Por breves momentos Caetano deixa a agitação que o persegue, desventrando-lhe a mente e aviltando-o nos degraus de vida que teima em tropeçar.
-Caetano, meu querido… tem aqui a canjinha…
-Obrigado, Margarida. Desculpe-me. …Os pequenos?
-Estão no quarto…quer vê-los?
-Sim… Não, mais tarde talvez…Agora deixe-me
O quadro repete-se dia após dia, como se o artista apenas soubesse usar aquele traço pesado e triste. A paleta de cores morre no esbater da noite com laivos vermelhos de raiva. As figuras abrem-se mudas ao embuste da vida. Uma tela terrivelmente espatulada.
A noite é já bem escura quando Margarida se deita a seu lado, dorida de um dia de miséria escondida, ele agita-se no leito. Acorda da sua letargia e sem palavras serve-se. Penetra-a sem delongas, sem gestos, apenas o acto. À saciedade. Um homem não pede, um homem usa. Ela é sua para ele. Só e apenas. Deixa-se cair e adormece
São onze horas. Levanta-se. O sol já vai alto e a casa já ganhou a vida de um novo dia. Ouvem-se as vozes das crianças…ao longe. Levanta-se. Tem que ir para o gabinete para a vida pequenina e arrumadinha.
Sai com um até logo enxuto. A cidade já revolteia. O cheiro do rio penetra-lhe nas narinas, amassa-lhe os pulmões e irrita-lhe o cérebro. Desce a calçada. Santa Apolónia é já ali em baixo. Eis a estação. Franqueia a porta. Alguém o cumprimenta. Sem olhar, retribui. Sobe ao seu gabinete. Entra e senta-se, suspirando de tédio. O relógio compassa as horas indolentes no silêncio fechado. Batem-lhe à porta. É o paquete que lhe diz para ir ao Director. Mais tarde quando abandona a sala do superior, tem a cólera estampada. O rosto é vermelho, os olhos quase saltam nas órbitas de furibundos. O esgar da boca é de ódio tudo condiz na expressão .Até o colarinho engomado da camisa está solto. A fúria está alojada. Fora despedido!
-Imbecis, quejandos!
Não pelo despedimento, mas afrontarem-no, a ele! E logo hoje que até quase cumprira o horário. Incumprimento?! Mas o que pensavam eles? Já na rua cospe a raiva em frases murmuradas de ódio contra todos e tudo .Os dedos esguios descrevem hiatos de força, as pernas baloiçam numa dança de pontapés perdidos… Louco de tudo, atravessa a rua, volta à esquerda, sobe. Não respira, range os dentes. Lá está. Entra. Suspira. Sorri. Sente a teia envolvente e macia. O afago de calmaria que o penetra. A sua amante espera-o sensual e faminta na dança do leilão e ele sabe que será o seu eterno carteio.
Sente-se em casa, em paz, a entrada está feita!
11 setembro, 2007
Júlia Papas
Corre descalça no frio da pedra do caminho. Leva na cabeça o pão. A broa arrefece lá no cimo. Á que ser lesta. As gentes esperam. São cinco da matina. O sol não pespontou ainda, o gelo cobre a terra do caminho, o ar é cortante. Dói a respiração, corta as carnes e adormece os pés descalços. Mas á que andar, á que mexer. As gentes já se ergueram. Em breve a malga está servida e a broa é precisa.
E Júlia Papas percorre lestos os meandros batidos das terras socalcadas do Douro. Já perde na memória de quando começou. Era ganapa ainda e muito. A família tinha o forno, cozia a broa depois, ela, a mais velha, tinha que o entregar e assim começara.Não é moçoila de atavio. É redonda, baixinha qual novelo de ternuras. Os olhos, esses sim, são grandes e esguios. Sobressaem-lhe. Negros, aguados e bondosos. Depois os lábios, promessas de risos guardados. Não se queixa, não pensa, anda.Júlia Papas prós amigos. Assim é, assim será, vida fora.
E distribuindo a broa de aldeia em aldeia, Júlia dá também gorjetas de sorrisos e rebuçados de afagos. Ela é assim viçosa no dar, meiga no sorriso, forte no abraço, crente nos outros, resignada na vida.Juntara-se ao Abel. Conhecera-o quando socalcava as terras cima a baixo na venda da broa. Não era dali. Era de Covas do Douro. Depois, emprenhou da sua Adelaide e nunca mais se deixaram. Mais tarde veio o Belmiro e aí casaram. O seu "home" era de poucas falas, pouco trabalho. Era mais dado aos copos. Amanhava umas terrinhas, fazia uns servicinhos a outros. Nada de muito Era mais pró calaceiro. Mas, isso sim, muito agarrado. Terrivelmente.Naqueles tempos a fome era negra. Havia barrigas vazias, muitas. Ela, que por essa altura já abrira a sua taberna onde a par do copo de cinco servia também umas comidinhas, matou a fome a muitos. A tantos! Era vulgar uma sardinha ser para três, lavar-se as tripas do frango e guisarem-se. Ora, era assim. A fome grassava. A miséria estava lá. Não, os tempos eram duros como o frio que soprava. E Júlia Papas, redonda e doce, quente e meiga era o coração de pingo na broa das gentes .A sua Adelaide, flor da aldeia, era o espinho da sua bondade. Nunca satisfeita, caprichosa. Nunca entendera o seu coração. Resmungava e queria sempre aquele pouco que aos outros dava. Mas ela compadecia-se tanto…com a miséria.
-Senhora quero um vestido novo.
-Ó filha, tá apertado. Mas tens o azul, o encarnado e mais a saia e a blusia…
-Ora. Vossemecê passa a vida a dar, a dar e depois não chega pra mim… né?
- É só um poucochinho, filha inté te fica mal dizeres isso…
Era assim. Na taberna cobrava dois copos e um prato mas dava a broa e o repetido. Muitas vezes, tanta, a fome forrara-lhe o estômago, mas dera o seu quinhão aos ganapos de olhos tristes. "Uma boa Alma"diziam dela Á noite, na pequenez da casita, Júlia aturava o seu home vergado no vinho do dia. Era a sua sina. Na aldeia, a vida das mulheres era como a dela. Os homes ou bebiam ou batiam. O seu fazia as duas coisas. Era a sua cruz
Lesta, de sorriso doce ergue o olhar aguado e ala que vai á vida. Tristezas? … Credo. Inté é pecado! Com tantas alminhas por aí a penarem. E de trouxa debaixo do braço, cantarolando os derriços já gastos, lá vai ela a caminho do tanque. Tem que lavar a roupa do sê Abel, da filha, do filho e do tio já velhote a quem dá guarida. O mulherio assim que a vê dá-lhe a salvação. -Bom-dia Júlia, atão, só tu é que lavas? A tua Adelaide saiu cá uma princesa…-Ora, deixem-na lá… é moçoila. Não gosta de certas coisas e depois eu estou mais habituada.
Dobra-se no vai e vem da esfrega. As mãos grossas de sonhos vazios enchem de linhas a pedra em claves de sabão. Cantarolando, rindo, falando, Júlia despacha a roupa da semana. De volta á aldeia de trouxa lavada entra na taberna. É tempo de fazer a janta. Rápida pega no caçoilo, rega o fundo de azeite, junta-lhe a cebola birrenta e espera pelo estrugido loiro. No lar da lareira já crepita o pote com água quente. Será um bom caldo. As couves também já descansam cegadas e os feijões estão cozidos. É só juntar tudo, baptizar com o azeite e deixar cozer. O estrugido já cantarola, junta-lhe o toicinho. O cheiro sobe na alma das paredes da casa.
Cá em baixo, entrechocam-se as vozes pastosas dos homes. O tinto corre. A sueca bate-se. As conversas giram em torno da vindima. Um ano bom. As uvas estão gradas e maduras mesmo no tempo. Em breve os cachos doces e pesados, promessas loiras e escarlate de néctares frutados, adamados ou encorpados irão encher dornas num vai e vem de bailinho corrido. Depois, o pisar compassado, o cheiro forte que atordoa os sentidos, sincopado pelos cantares em trejeito de melopeia escorrida. É o tempo dourado das terras. É o tempo das barrigas forradas de broa e do conduto. É o tempo dos risos soltos, do cair das folhas purpurinas na terra quente, dos passos vincados sobre o xisto aberto de dádiva, é o tempo sublime de um momento vivo e fértil onde a terra mãe gera o filho futuro das suas gentes: o pão de cada dia.
Júlia desce. Lenço enrolado, avental de riscas, chinela no pé redondo dos caminhos.Serve os copos e corta o toicinho que junta á sua broa. Depois, enche umas malguitas vidradas de caldo. Chama dois "homes"e empurra suavemente as tigelas. Volta-se, suspira e abana a cabeça murmurando:"Tanta fome, tanta…e tanta riqueza…não entendo!"Passa a porta e entra na casa do forno. Cantarolando, enfia as mãos na bacia do pão. Amassa, bate, estica, enrola e corta. As gotas de suor escorrem pela testa. Num gesto rápido seca-as. Tapa com toalha alva a massa que será broa de amanhã.
Amanhã será mais dia na sua terra de promessas negadas.
-Padeiiiiiiiiiiiiiiiiiiira!
06 setembro, 2007
Luciano Pavarotti - Ave Maria - Schubert
O que é belo não morre: transforma-se em outra beleza.
(Balley Ardrich)
(Módena, 12 de outubro de 1935 a 6 de Setembro de 2007)
04 setembro, 2007
Despedida
Na ausência da palavra
O verbo cai no espaço
Hiato de polifonia gasta.
Assobia o vento sul
Em compasso livre
Em espiral entrecortada
Sibila o ar já frio
Em tom de chegada.
E a lágrima…
Espiral do soluço,
Solta-se, lenta., redonda.
Folha húmida de sal
Na face exangue, dormente
Da terra negra que a sorve
A mão…
Gesto breve, diáfano
Semi-arco perpétuo
Em movimento.
Fecha a harmonia dissonante
De arco já frouxo na alma
Do violino da estação
Que parte…
02 setembro, 2007
Morning (Grieg)
Amizade
Existe na mente do ser
Nem sempre no coração do ter.
É falaciosa de sentires,
Enrosca-se na dúvida da razão
E no âmago do coração.
A amizade,
Ribeiro de curvas simples
Ou tortuosas,
Levada na corrente forte
Ou pura gota desaparecida
Em leito seco de dádiva.
Húmus de partilha
Em canteiro de violetas singelas.
A amizade,
Cresce sempre que regada,
Nos fios líquidos do amor
Aí floresce…
Quebra, morre e chora,
Quando traída e esquecida
Na estrada ondulante da vida.
A amizade,
É rosto de olhar vivo,
No corpo cansado do Mundo
Que acorda e adormece
Ao nascer e pôr-do-sol,
Em laços apertados
Sem nós
Sem pontas
Apenas
………
AMIGOS