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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

11 setembro, 2007

Júlia Papas


Corre descalça no frio da pedra do caminho. Leva na cabeça o pão. A broa arrefece lá no cimo. Á que ser lesta. As gentes esperam. São cinco da matina. O sol não pespontou ainda, o gelo cobre a terra do caminho, o ar é cortante. Dói a respiração, corta as carnes e adormece os pés descalços. Mas á que andar, á que mexer. As gentes já se ergueram. Em breve a malga está servida e a broa é precisa.

E Júlia Papas percorre lestos os meandros batidos das terras socalcadas do Douro. Já perde na memória de quando começou. Era ganapa ainda e muito. A família tinha o forno, cozia a broa depois, ela, a mais velha, tinha que o entregar e assim começara.Não é moçoila de atavio. É redonda, baixinha qual novelo de ternuras. Os olhos, esses sim, são grandes e esguios. Sobressaem-lhe. Negros, aguados e bondosos. Depois os lábios, promessas de risos guardados. Não se queixa, não pensa, anda.

Júlia Papas prós amigos. Assim é, assim será, vida fora.

E distribuindo a broa de aldeia em aldeia, Júlia dá também gorjetas de sorrisos e rebuçados de afagos. Ela é assim viçosa no dar, meiga no sorriso, forte no abraço, crente nos outros, resignada na vida.Juntara-se ao Abel. Conhecera-o quando socalcava as terras cima a baixo na venda da broa. Não era dali. Era de Covas do Douro. Depois, emprenhou da sua Adelaide e nunca mais se deixaram. Mais tarde veio o Belmiro e aí casaram. O seu "home" era de poucas falas, pouco trabalho. Era mais dado aos copos. Amanhava umas terrinhas, fazia uns servicinhos a outros. Nada de muito Era mais pró calaceiro. Mas, isso sim, muito agarrado. Terrivelmente.
Naqueles tempos a fome era negra. Havia barrigas vazias, muitas. Ela, que por essa altura já abrira a sua taberna onde a par do copo de cinco servia também umas comidinhas, matou a fome a muitos. A tantos! Era vulgar uma sardinha ser para três, lavar-se as tripas do frango e guisarem-se. Ora, era assim. A fome grassava. A miséria estava lá. Não, os tempos eram duros como o frio que soprava. E Júlia Papas, redonda e doce, quente e meiga era o coração de pingo na broa das gentes .A sua Adelaide, flor da aldeia, era o espinho da sua bondade. Nunca satisfeita, caprichosa. Nunca entendera o seu coração. Resmungava e queria sempre aquele pouco que aos outros dava. Mas ela compadecia-se tanto…com a miséria.
-Senhora quero um vestido novo.
-Ó filha, tá apertado. Mas tens o azul, o encarnado e mais a saia e a blusia
-Ora. Vossemecê passa a vida a dar, a dar e depois não chega pra mim… ?
- É só um poucochinho, filha inté te fica mal dizeres isso…

Era assim. Na taberna cobrava dois copos e um prato mas dava a broa e o repetido. Muitas vezes, tanta, a fome forrara-lhe o estômago, mas dera o seu quinhão aos ganapos de olhos tristes. "Uma boa Alma"diziam dela Á noite, na pequenez da casita, Júlia aturava o seu home vergado no vinho do dia. Era a sua sina. Na aldeia, a vida das mulheres era como a dela. Os homes ou bebiam ou batiam. O seu fazia as duas coisas. Era a sua cruz

Lesta, de sorriso doce ergue o olhar aguado e ala que vai á vida. Tristezas? … Credo. Inté é pecado! Com tantas alminhas por aí a penarem. E de trouxa debaixo do braço, cantarolando os derriços já gastos, lá vai ela a caminho do tanque. Tem que lavar a roupa do sê Abel, da filha, do filho e do tio já velhote a quem dá guarida. O mulherio assim que a vê dá-lhe a salvação. -Bom-dia Júlia, atão, só tu é que lavas? A tua Adelaide saiu cá uma princesa…
-Ora, deixem-na lá… é moçoila. Não gosta de certas coisas e depois eu estou mais habituada.
Dobra-se no vai e vem da esfrega. As mãos grossas de sonhos vazios enchem de linhas a pedra em claves de sabão. Cantarolando, rindo, falando, Júlia despacha a roupa da semana. De volta á aldeia de trouxa lavada entra na taberna. É tempo de fazer a janta. Rápida pega no caçoilo, rega o fundo de azeite, junta-lhe a cebola birrenta e espera pelo estrugido loiro. No lar da lareira já crepita o pote com água quente. Será um bom caldo. As couves também já descansam cegadas e os feijões estão cozidos. É só juntar tudo, baptizar com o azeite e deixar cozer. O estrugido já cantarola, junta-lhe o toicinho. O cheiro sobe na alma das paredes da casa.

Cá em baixo, entrechocam-se as vozes pastosas dos homes. O tinto corre. A sueca bate-se. As conversas giram em torno da vindima. Um ano bom. As uvas estão gradas e maduras mesmo no tempo. Em breve os cachos doces e pesados, promessas loiras e escarlate de néctares frutados, adamados ou encorpados irão encher dornas num vai e vem de bailinho corrido. Depois, o pisar compassado, o cheiro forte que atordoa os sentidos, sincopado pelos cantares em trejeito de melopeia escorrida. É o tempo dourado das terras. É o tempo das barrigas forradas de broa e do conduto. É o tempo dos risos soltos, do cair das folhas purpurinas na terra quente, dos passos vincados sobre o xisto aberto de dádiva, é o tempo sublime de um momento vivo e fértil onde a terra mãe gera o filho futuro das suas gentes: o pão de cada dia.

Júlia desce. Lenço enrolado, avental de riscas, chinela no pé redondo dos caminhos.Serve os copos e corta o toicinho que junta á sua broa. Depois, enche umas malguitas vidradas de caldo. Chama dois "homes"e empurra suavemente as tigelas. Volta-se, suspira e abana a cabeça murmurando:"Tanta fome, tanta…e tanta riqueza…não entendo!"

Passa a porta e entra na casa do forno. Cantarolando, enfia as mãos na bacia do pão. Amassa, bate, estica, enrola e corta. As gotas de suor escorrem pela testa. Num gesto rápido seca-as. Tapa com toalha alva a massa que será broa de amanhã.

Amanhã será mais dia na sua terra de promessas negadas.

-Padeiiiiiiiiiiiiiiiiiiira!



06 setembro, 2007

Luciano Pavarotti - Ave Maria - Schubert

O que é belo não morre: transforma-se em outra beleza.
(Balley Ardrich)



(Módena, 12 de outubro de 1935 a 6 de Setembro de 2007)

04 setembro, 2007

Despedida


Na ausência da palavra

O verbo cai no espaço

Hiato de polifonia gasta.

Assobia o vento sul

Em compasso livre

Sopra o do norte

Em espiral entrecortada

Sibila o ar já frio

Em tom de chegada.

E a lágrima…

Espiral do soluço,

Solta-se, lenta., redonda.

Folha húmida de sal

Na face exangue, dormente

Da terra negra que a sorve

A mão…

Gesto breve, diáfano

Semi-arco perpétuo

Em movimento.

Fecha a harmonia dissonante

De arco já frouxo na alma

Do violino da estação

Que parte…

Posted by Picasa

02 setembro, 2007

Morning (Grieg)

Amizade

Existe na mente do ser
Nem sempre no coração do ter.
É falaciosa de sentires,
Enrosca-se na dúvida da razão
E no âmago do coração.

A amizade,
Ribeiro de curvas simples
Ou tortuosas,
Levada na corrente forte
Ou pura gota desaparecida
Em leito seco de dádiva.
Húmus de partilha
Em canteiro de violetas singelas.

A amizade,
Cresce sempre que regada,
Nos fios líquidos do amor
Aí floresce…
Quebra, morre e chora,
Quando traída e esquecida
Na estrada ondulante da vida.

A amizade,
É rosto de olhar vivo,
No corpo cansado do Mundo
Que acorda e adormece
Ao nascer e pôr-do-sol,
Em laços apertados
Sem nós
Sem pontas
Apenas
………
AMIGOS

31 agosto, 2007

St. Exupéry...


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.

Não confundas o amor com o delírio da posse, que acarreta os piores sofrimentos. Porque, contrariamente à opinião comum, o amor não faz sofrer. O instinto de propriedade, que é o contrário do amor, esse é que faz sofrer. (...) Eu sei assim reconhecer aquele que ama verdadeiramente: é que ele não pode ser prejudicado. O amor verdadeiro começa lá onde não se espera mais nada em troca.

(Antoine de Saint-Exupéry, in 'Cidadela')

30 agosto, 2007

Dona Santinha.



Anda nos seus setenta e muitos. Figura doce. Os cabelos são alvos, o rosto ainda é rosado, as faces são pêssegos maduros de covinhas risonhas. Dona Santinha é uma cesta de fruta a cobiçar o desejo de ternura.

Quem a conhece, sabe que a vida foi um cacto espinhoso de criar e moldar. Mas foi …

Enviuvou cedo, demasiado cedo. A prole era de cinco, todos seguidos. O seu, Albano, que tenha a alma em descanso, era homem de necessidades prementes e cuidados descuidados. Todos seguidinhos sem descanso. A Clara, o Francisco, o João, a Susana e o Afonso, o seu derriço e pecado. Hoje é avó de vinte e um netos e bisavó de cinco bisnetos. Mal sabia o seu Albano o que as pressas poderiam dar…

Sentada na sua velha cadeira, misto de chaise-longue e poltrona Dona Santinha vai desfiando o passado com aquele sorriso doce de sabor cheio. Já lá vão cinquenta e muitos anos. Ai, tanto Jesus!

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-Menina, o seu paizinho chama-a à sala.

-O que é que aconteceu, Maria?

-Menina, eu é que sei. … Vá mas é lá. Senão… já sabe.

-Tu sabes. Diz lá… Tá bem. Pronto…

Com o coração apertado, lá se dirigiu á sala. Bateu, entrou e pediu a bênção.

Sentados, os pais esperavam-na. A mãe quase sumida pela presença avultada e áspera do pai, Parecia mais pequena e ele, com aqueles olhos enormes que pareciam querer adivinhá-la., simplesmente pigarreou e afirmou.

-A menina vai casar-se. Arranjei-lhe um marido. A sua mãe dir-lhe-á.

E pronto. Deu meia e volta e saiu. Santinha, perplexa e meio zonza, ouviu a mãe dizer-lhe que o Albano, rapaz às direitas, filho de Artur Nóvoa, era o seu futuro. Estudara e era um rapaz de bem. Ponto final parágrafo.

Casara-se como mandavam os preceitos. De inicio custara. Dormia com um estranho, mas aos poucos fora-se habituando. E depois não havia nada de amores, como Rosarinho, a sua neta mais querida lhe dizia, era só amizade e depois muita ternura. Tanta que ainda hoje suspirava com a falta daquela onda que a costumava invadir.Aos poucos fora nascendo os pequenos. A primeira é que custara mais, depois fora mais fácil.

Foi naquele Verão. No ano seguinte à Clarinha ter entrado para o colégio. Tinham ido para Moledo, como sempre, desde que se lembrava de ser gente. Estava grávida de Afonso. O verão era esplendoroso. As crianças, um bando de andorinhas sempre de um lado para o outro. A sua Maria era o seu grande apoio. Tinha vinte e oito anos. Sentia-se plena, mulher

O dia fora igual a tantos outros na praia, a Maria levara o almoça às crianças na sua grande cesta. Comera-se na barraca como sempre. Ela conversara com as amigas, as crianças brincaram, no mar, na areia, e regressaram a casa. Depois do banho já deitadas, ela sentara-se na saleta para uma breve leitura. Não esqueceria jamais, a chegada convulsa do pai, dando-lhe a notícia … que o seu Albano tivera um acidente. Que tinha que partir rapidamente, as crianças ficariam.

E lá foi ela.

Foi só e ficou só. Só de alma e de ombro amigo na solidão dos dias que correriam.

A vida, doce até então deu uma reviravolta. Teve que fazer face a tudo. Aos filhos, á casa, aos negócios e á vida. Á vida, sobretudo. Mas não descansou os braços no parapeito das convenções. Pouco a pouco tornou-se dona de si, da sua vontade e do seu pequeno mundo, para além das crianças e da casa.

Santinha Nóvoa foi pioneira, no seu tempo de mulher. Não chegou a vestir calças, mas vestiu a determinação das decisões., num mundo feito de homens e para os homens. Era a província dos anos quarenta e cinquenta. Era o Estado Novo. Era o mundo fechado em si e sobre si.

Era vê-la, lado a lado, com os homens e as mulheres na fábrica de tijolo. Aprendeu o ofício, sujou as mãos e partiu as unhas. Ganhou o respeito. E a Telheira foi pão de muita gente da região. Foi também a côdea e o miolo dos seus filhos, da sua casa e de si. Recorda…

-Dona Santinha, a máquina partiu…

-Minha senhora é preciso, enviar esta encomenda…

-Dona Santinha os operários querem aumento…

Minha Senhora…Dona Santinha… Patroa…Mãe… Menina…

Ecoam os chamamentos no tempo ido. Sente alguma saudade. O tempo foi. Já não é. Hoje descansa, pensa e frui o que sobrou de então. Da vida agitada mas cheia. Da casa de riso fresco e cheio. Das portas que batiam e dos passos corridos na tábua já gasta. A casa, armário de pequenas vidas de tamanho já passado. Hoje é grande, solene, vazia quase ermida perdida no alto. Apenas uma vez ao ano, a casa acorda. Pelo Natal. Repete-se há cinquenta e tal anos, inexoravelmente. Revive em cada data. Depois hiberna no tempo.

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Recordou sonhando ou estava acordada? O tempo já lhe prega destas partidas. Ajeita-se e pega no livro. Olha o telemóvel como se esperasse … por uma voz.

Ah, os filhos que se esquecem…os afazeres. Dá-lhes a desculpa. Vidas. Algumas partidas, outras meias feitas. Escolhas, agora dizem-se opções. Não são as escolhas dela, são deles. Mas gosta das suas duas noras e dos seus três genros. Pensa ser assim que deve chamar ao companheiro de Afonso. Bom rapaz. E ele, o seu filho é feliz. Custou-lhe mas acabou por aceitar. Um escândalo no inicio. Os irmãos foram os piores, aliás dividiram-se como sempre acontece nas famílias. Uma vez mais teve que apanhar os cacos e colar a família. Um acto de reconstrução. Hoje coabitam todos, no Natal, diga-se, e ali na casa velha, os pruridos sociais desarmam-se para se tornarem todos filhos e irmãos. Lá fora, no frio do tempo fica o preconceito estreito de quem não sabe amar e aceitar. Cá dentro, tal como o seu coração, crepita a labareda viva da lareira afagando as vontades.

Mas se fora só o seu Afonso. Também o João e a Susana já se tinham divorciado, casado e sabe o que mais. E as netas e netos. Tudo diferente. Já se habituara ao desfile de caras novas. Buscavam a felicidade, tal como o tempo. A instabilidade era apanágio destes dias. Na sua opinião amavam demasiado o amor. Depois ficavam exauridos para amar o concreto. Mas como ela lá dizia para os seus botões. "Que cresçam, que sejam felizes!" Ela também fora diferente e hoje era uma Senhora de coração aberto e alma doce. Pensa amiúde: "A vida é a arte sublime do Homem" porque desprezá-la, então?

Um som forte agita-a. É o telemóvel.

-Estou? Sim?

-Rosarinho, vó.

-Diz , minha querida. Tudo bem?

-Vózinha querida -a voz treme muito, num soluço perdido. -Preciso de si, muito!

-Então, o que se passa, diz que fico aflita.

Um silêncio e um soluço e depois a voz entrecortada.

-O Pedro Maria deixou-me… saiu de casa. Oh Vó…tou tão…

-Minha querida acalma-te. Estás em condições de vir até cá?

-Sim, Vózinha…sim…

-Então espero-te ainda esta noite. Tem calma. Tudo se resolve.

Desligou, suspirou, levantou-se e dirigiu-se para a cozinha. Há que fazer uma boa canja. Depois logo se verá. De novo os cacos. Mais uma colagem, mais uma página lida que terá que ser relida. Ergue as mãos e murmura:

-Que sou Santinha, sei, mas um vá lá, um pouco de Temperança, também não me caía mal.

-" Não resmungues. A auto-comiseração não te fica bem. É mais uma oportunidade de seres útil. E tu sabes fazer isso. É a tua vida."

Olha em redor. Será que ouve vozes? Será? É a sua consciência. Uma inoportuna ao longo da vida, mas uma amiga também. Já refeita, solta uma gargalhada sólida e franca. Inspira a plenos pulmões e diz a meia voz:

-Vamos lá, então ver onde o barro partiu, se foi forno ou defeito…


29 agosto, 2007

As minhas 7+1 Maravilhas do Mundo

G i de Flores de Inverno lançou-me este desafio. Demorei tempo a pensar. A escolha exacta é quase impossível.

Viver um acto puramente físico mas regado de muita humanidade.

Amar todos os dias como quem trinca uma maçã suculenta.

Pensar em cada momento porque existo.

Sorrir aos momentos cintilantes e deixar as "chuvadas " caírem às vezes.

Recordar em cada momento quem somos e para onde vamos.

Passear no e pelo mundo entre as gentes .

Chorar quando estou feliz ou infeliz. Provar as lágrimas e saber que sinto.

E finalmente


Ser pessoa

Como é hábito deveria nomear alguém. Assim abro o desafio, a todos os que livremente quiserem ou desejarem fazê-lo.

Agradeço, delicadamente, a quem mo passou.