"O estilo nem por sombra corresponde a um simples culto da forma, mas, muito longe disso, a uma particular concepção da arte e, mais em geral, a uma particular concepção da vida."
Léon Tolstoi
"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
"O estilo nem por sombra corresponde a um simples culto da forma, mas, muito longe disso, a uma particular concepção da arte e, mais em geral, a uma particular concepção da vida."
Léon Tolstoi
Um pouco de Chaplin ... e...
"A vida é uma tragédia quando vista de perto, mas uma comédia quando vista de longe. "
(Charlie Chaplin)
Chegaram vindos não se sabe de onde. Carregados e coloridos como são as gentes que marcam presença.
As vozes altas ,acordaram os que na semi sonolência, descansavam das contas de um ano inteiro.
E eram a Zázá, o Beto, a tia Nônô, o Zé Luís, a Lecas e as crianças. Loiras, doiradas e faladoras…ao todo sete. Entre elas a Princesa.
Dois casais e uma avó-tia . Todos muito in. Chegaram tarde porque ninguém de bem põe os pés na praia cedo .Isso é muito classe média. Credo. E depois, o Beto tinha ido comprar sardinhas. Um feito. Em redor tudo soube.
E a avó-tia na sua voz aflautada contou. Contou as notícias fresquinhas da morte do barão de não sei quantos, os devaneios da miss X , mais os arroubos do Y mais, mais, … enfim um corolário de acontecimentos muito cheios de adjectivos mas terrivelmente pobres de substantivo.
As crianças, seis rapazes e uma princesa. Não que fosse aristocrática, mas parece moda agora ser-se princesa ou princeso, digo príncipe. Uma voga muito novo-riquismo. Mas dizia eu, que as crianças baloiçavam ente os oito anos e os catorze. Cinco de um casal e duas de outro. Rapidamente despiram-se e correram para o mar, os seis rapazes. A Princesa ficou sentada no areal sendo profusamente barrada de hidratante francês um…"CD pour jeunes filles" A mãe, a Zázá, na casa dos quarenta mas com uma plástica de trinta e picos conservadíssimos luzia-se num bikini giríssimo que lhe fazia sobressair a lisura do ventre, os seios pequenos e uma cintura de respeito mínimo. A avó-tia, sentada olhava a prole junto da água. Os seus sessenta e muitos anos cingidos num maillot castanho e branco faziam-na muito respeitosa. Os cabelos louros davam-lhe um ar juvenil acrescido da luminosidade da pele dourada. Lecas assim a chamavam.
A tia Nônô uns trinta anos muito jovens e esculturais, sem filhos, viria mais tarde a perceber, casara com o Zé Luís figura maciça de quarentão bem entradote a quem a barriga é indicativo de muito jantar bem regado e melhor comido.
O Beto, figura simpática. Calado, bem-parecido. Dá directrizes á assistente relativamente a ulteriores consultas e exames de pacientes O homem precisa de descanso pois que se irá dedicar a uma nova e pertinente tarefa. Oiçamos não esquecendo o tom nasalado das vogais, um certo flautear nas palavras que emprestam aquele sotaque tão "bem"da linha.
- Diga lá, Zázá conseguiu fazer o jantar?
-Ora Lecas, sabe…tinha uma massa que cozi e depois havia gambas no frigorífico. Foi só juntar. Sabe, os pequenos adoraram, adoraram mesmo e o Zé Luís comeu, um espanto.
-Então a querida fez uma massada… ah que bom…
-Deve ser isso… sabe.
O Beto que se entretivera a folhear as páginas de um matutino, entra na culinária.
-A mamã sabe, ontem fomos para a Comporta, e fiquei com o cheiro de sardinhas. Hum que apetite! Hoje levantei-me e fui às compras. Vou assar sardinhas.
-Oh querido, o menino sabe fazer isso?
-Mamã, eu não, mas vou tentar.
-Oh querido, eu não consigo acender o lume mas tirando isso é facílimo… digo-lhe.
O casal Zé Luís-Nonô que fora deambular pelo areal, ele, para mostrar o seu mais recente troféu anatómico, ela, para tonificar os seus glúteos, junta-se ao grupo de grelhadores-de-sardinhas.
-Beto, sempre vai assar sardinhas? Pergunta o Ze Luís
-Você sabe, não sabe?
-Não custa nada, é simples. Vou a sua casa e ensino-o a assar. Depois o seu barbecue fará o resto.
A Zázá que se entretivera a cuidar do bronze entra na liça.
-Queridos vai ser giríssimo. Tou a ver… uma sardinhada…com cheiro e tudo. Ó querido tão verdadeiro! Amanhã quando tiver com a Tequinhas e o Luca vou-lhes contar…vão morrer de inveja, vai ver.
Entretanto a avó-tia que permanecia sentada resolveu mudar de posição e veio ter com o Beto ,seguiu-se-lhe a Princesa que se pendurou nas costas do pai.
-Princesa, deixe o Beto não vê que está doentinho!
-Meu querido descanse, veja lá esse ombro, o menino trabalha muito. Já o seu pai era assim…
-Mas papá, tá memo doentinho? Dê um jinho à Princesa…
-Tá bem, querida, agora deixe o papá. Chame os rapazes. Que daqui a pouco vamos embora.
-Já? Mas poquê? Ainda não é tarde…
-Oh, princesa, não sabe que hoje é um dia especial. Pergunte ao tio Zé Luís o que o seu pai vai fazer… Uma sardinhada, com carvão e lume, tudo. Vai ver ,e vamos comer sardinhas…
-Mas eu detesto peixe e sardinhas, credo.
-Ó Pincesa, sardinha é muito portuguesa, muito saudável, não engorda, faz bem à saúde.
A Nônô que até então conservara um mutismo razoável inversamente proporcional á sua exposição física, sim, porque não se pode fazer bem, duas coisas em simultâneo, entrou finalmente na sardinhada.
-Sabe, Zé Luís, a minha nutricionista manda comer sardinha. Tem não sei que lípido, um tal mega 3 que é formidável para o coração.
-Ómega 3, querida -corrigiu o Zé Luís.
-Pois isso, credo. Mas tá a ver na tá ? Agora tudo come sardinha, e eu até acho que bem cozinhada tem um sabor tão portuguesinho, assim de típico. O máximo!
Os queridos e queridas arrumaram as coisitas e quase em fila indiana, porque nestas coisas á que marcar a diferença lá se foram em direcção talvez a alguma rica " casita" onde as sardinhas esperavam. Nestas coisas de comida e seguindo uma máxima tão ao gosto destes estereótipos "comer é o contrário de ter fome".
Bom Apetite.
I know a place where the sun is like gold,
And the cherry blooms burst with snow,
And down underneath is the loveliest nook,
Where the four-leaf clovers grow.
One leaf is for HOPE, and one is for FAITH,
And one is for LOVE, you know,
And GOD put another in for LUCK --
If you search, you will find where they grow.
But you must have HOPE, and you must have FAITH,
You must LOVE and be strong -- and so --
If you work, if you wait, you will find the place
Where the four-leaf clovers grow.
Os anos ensinam muitas coisas que os dias desconhecem
Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes. (William Shakespeare)
# Acreditar é monótono, duvidar é apaixonante, manter-se alerta: eis a vida! (Oscar Wilde)
Chamam-lhe Madame Bonlavout de seu nome Aimée.
A velha senhora, de oitenta anos que sozinha cruza o Mediterrâneo. Poderá ser a sua última viagem. Tem consciência, mas goza-a, trincando, bebendo e rindo interiormente. Como sempre, aliás o fez.
Semi-deitada numa cadeira no convés, aspirando a brisa marítima, semi-cerra o olhar ainda fulgurante, enrola-se na manta e recorda:
Leopoldville…1928. Son papa e sa mére. Como eram jovens. Ela garotinha. Lembra-se do branco do seu vestido de musselina, do chapéu, dos sapatos de botão. E maman, quelle beauté!… O cheiro adocicado mistura-se no ar de braço dado com o calor. O colorido envolve-a. O céu é azul, muito azul.
Outro lugar, outra memória. A casa... Son pápá brincando com ela nos braços, rodando. Rodando. Como era alto e forte.
-Viens , ma petite, viens… e ela corre enterra o rosto naquele peito largo… E maman? Diz:
-Leopold, estragas esta pequena com mimos…
Cresceu assim, entre mimos e desejos completos. Uma infância de promessas. A terra que a viu nascer era forte, quente e doce. Era África. Cheirava a tubérculos, terra húmida, baunilha e canela. A vida palpitante. Viveu descuidada, era tudo simples. Pensava…
Foi naquele ano, recorda 1940.Tinha vinte anos. Era bela, diziam e sabia-o. Tornara-se impertinente. Tinha o mundo a seus pés. Foi, então que o conheceu.
A fazenda precisava de um novo capataz. Ele veio e Aimée…amou…
Recorda as acácias em flor, o cheiro adocicado, os beijos quentes, as carícias, a sua entrega total. Um feitiço…como a terra que os sustentava. E noite após noite o frémito apossava-se das suas entranhas … e Gérard satisfazia-o. Acabavam adormecendo enroscados. O odor era de musgos e terra. Forte, envolvente e floral. Uma brisa de paixão. Mas… Mademoiselle, sua preceptora, professora, chaperonne e sabe Deus que mais, ameaçou-a de contar aos pais, que a história tinha ido demasiado longe. Que tinha que parar. Ela, era Aimée Bonlavout.
Um mês depois estava casada com Alberto. Recorda o dia do casamento e as palavras do pai.
-Est-ce-que tu es heureuse, ma petite? Oui, papá…e depois as palavras que lhe ficaram gravadas até agora.
-Esperei que lutasses. Esperei mais de ti…
Não sabe explicar o odor que sentiu, então. Ácido, e bolorento. Quase desagradável.
Alberto, foi possivelmente o seu maior erro e fardo. Mas carregou-o dignamente. Era fraco, manipulável, dependente, apenas um bom político… Ela, soube sempre dar graça e charme à sua carreira. A sua beleza e elegância eram por demais conhecidas. O seu carácter foi moldado na força do vazio. Tornou-se forte, lutadora, enérgica, une femme de pantalons e aux pantalons, espalhando um perfume frutado de pomelo e bergamota com pequenos laivos de mandarina e limão. Trés chic.
Já nos anos 60, quando embarcou naquele outro paquete, o Índia, e foi buscar o seu petit-fils a Goa, tinham-na chamado de louca. Ainda lhe ecoavam as palavras:
- Madame, não vá, é uma longa viagem e não sabe o que a espera .Há escaramuças graves Respondera sempre:
- Claro que irei, é o meu neto. Não vou perdê-lo. Jamais!
E fora ,e voltara.
Sempre com força ânimo e muita elegância. Alberto morrera, o neto crescera, depois uma neta. O ciclo de vida fechara-se.
Não concordava com estas ideias liberais, nem com a vida de família si petite bourgeoise de sa fille e son beau-fils. Pensavam ser personagens de uma tela mas, afinal, eram apenas esquiços breves de vidas.
Vivia sozinha, mas viva nas suas recordações.
Soergue-se na cadeira, ao longe o mar, imutável pedaço de verde-azulado embala-lhe assim as recordações. Alguém se aproxima… o Imediato… Soergue-se ligeiramente e lânguida estende a mão esguia. A cabeça está livre do encosto, e move-a com a graça altiva da sua idade, levemente, o suficiente para ter o rosto livre.
-Ah, Madame je vous cherchais… fala um francês correcto apesar de ser Russo. É galante.
Sorrindo, responde:
-Sim?
-Esta noite, o comandante convida-a para a sua mesa…
-Ah, mercie. Com todo o prazer.
Coquette estende a mão que rapidamente é aprisionada pelo cavalheiro de cãs já brancas que desprende um cheiro amadeirado a cedro, tão masculino. Aimée, esconde a idade. São aqueles rostos intemporais que o tempo poupa. Ligeira, caminha lado a lado de Sergei. Junto à porta despede-se, com um au revoir….
Deliciosamente inconsciente, Aimée deixou-se conduzir ao longo do jantar pelo seu anfitrião.
Havia tantos anos que não era assim mimada! Esqueceu a sua vida, os seus cheiros e beijou a alegria. Que dança ,que baile ,que sonho…!
Eis que as luzes se apagam… e rebentam as vozes em som de parabéns… são os seus oitenta anos!
Aimée deixa rolar uma gota pelo rosto mas, helás, agradece sorrindo. É a sua apoteose. As palmas são-lhe devidas.
Já tarde ,bem tarde. Acompanhada regressa ao seu camarote. Páram na amurada. Olham o mar, está negro, denso. Não se separa do céu senão pelos seus pontos cintilantes.
- A lua, onde está? - pergunta
- Ici, sur nos têtes, ma chérie diz-lhe, Kóstia, o comandante.
Inclina-se sobre ela e aflora-lhe um suave beijo nos lábios. Algo de furtivo e doce. Algo… e
lenta, engrossando, vem um odor baunilhado mas tem musgo e bergamota. Mandarina e canela. Lavanda e tubérculos. Tem limão e um pouco de bolor. Pomelo e vetiver. Tem os cheiros da sua Infância, da sua Terra, do seu Amor, da sua Vida…Que a salpica de emoção e suavemente, qual criança retribui o beijo… o seu último beijo de Amor.
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E agora meus amigos.. entro em período de descanso... umas fériazinhas... a banhos...
Até qualquer dia... Um doce beijo.