"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
11 setembro, 2015
24 agosto, 2015
A Forma Justa
Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas".
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08 agosto, 2015
O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor pôe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.
O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor.
O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.
Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.
Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.
O actor em estado geral de graça..
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Herberto Helder
28 julho, 2015
Solidariedade
Hoje ao ouvir o Secretário de
Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, Sérgio Monteiro sobre a
privatização da REFER tive, mais do que nunca, a noção exata de que o estado
social desapareceu, caducou, pereceu e jaz enterrado, algures no cemitério, não
dos Prazeres, mas sim da Solidariedade.
O cavalheiro, gestor de formação
académica, tornou claro que o lucro é a parte necessária e primordial na
existência de qualquer empresa, seja ela mesmo de interesse da coisa comum,
isto é do Estado. Presentemente vivemos no primado do lucro. Sejam hospitais,
escolas, transportes públicos e a fins. Tudo tem que ser lucrativo sob a pena
de ter que ser privatizado rapidamente, para que o Estado não seja onerado, e
assim o coletivo nacional usufrua de uma estabilidade económica que lhe
permitira viver qual Pais das Maravilhas sem Alice.
Ora e segundo a minha perspectiva
pessoal, existem vários bens perecíveis neste Estado, os quais continuam, sine
die, a delapidar o erário público sem quaisquer benefícios para o coletivo
português. Como exemplo aponto os preclaríssimos deputados da nação, que não só
estiolam tempo como muito do nosso dinheiro, em nome da democracia, ou então,
quando esta não é suficiente, em oratórias egocêntricas cujo conteúdo bajula as
mentes políticas dos seus pretores, que diga-se em abono da verdade, há já
muito estão desligados da justiça e seus critérios. Para estes não existe o
alerta vermelho do lucro ou da contenção, a razão ou não razão desta ausência
espanta-me.
Outras pequenas grandes picardias
económicas que os sucessivos governos têm feito, gasto, delapidado, vendilhado
mais do que vendido e doado é quase uma outra estória infantil. Dar-lhe-ia os títulos
de “Ali Babá e os quarenta Ladrões” , “O Lobo e o Cordeiro” e “Pinóquio”.
Abstenho-me do final moral das mesmas. Por demais óbvio.
Pois estes senhores que se sentam
em estofadas cadeiras na casa da democracia usurpam muito dos nossos míseros
euros, passeiam-se nos degraus do poder, saltam as escadas da importância e
sorriem descaradamente quando interpelados sobre as suas pluriatividades. Na
verdade escolhidos a dedo, os lugares de magistrados da nação não têm que dar
lucro e assim sendo, estes são não clientes da casada democracia em oposição ao
comum do cidadão que quando vai tratar a sua saúde é um cliente contributivo
obrigatório da casa da saúde.
Contrassensos de uma sociedade
per si antinómica, onde o pensamento e as palavras esvaziadas são passiveis de benesses
conquanto o bem-estar social se tornou-se um ação económica.
Mas todo este estado não é apenas
causativo de mal-estar lusitano. Espalha-se também por outros países e,
sobretudo, por alguns cidadãos da velha Europa cuja faixa etária é dita como
sénior. Nascidos nos idos de 50 e 60 têm ainda incrustado na pele a noção de
ser solidário, de bem comum. O Estado Social foi intuito que levou uns tantos
“visionários”, à luz do presente, a sonhar por uma Europa comum. Robert
Schumann certamente que deve revolver-se lá no sitio onde está, ao ver os
caminhos tortuosos da velha Europa. Naturalmente que ser solidário, não é, nem
será, dar subsídios a rodos sem sequer, na maioria das vezes, os mesmos serem fiscalizados
na sua consecução, nem muito menos viver em estado de parasitismo coletivo.
Porque os mais ricos têm que dar aos mais pobres. Isso não é ser solidário isso
é ser quase “Zé do Telhado” e a conjuntura socioeconómica, pese todos os quid
pro quota melhorou abissalmente, logo a solidariedade passa por um bem social
que seja extensível a todos dependendo naturalmente do grau das suas carências,
sejam económicas, sociais ou afetivas. Fala-se, hoje em dia, muito em
solidariedade mediática. O mediatismo parece ser a panaceia que limpa as
consciências. Tudo o que se viu, lavou-se. Sorri-se e fica-se feliz. O todo que
subsiste por detrás não é visível, logo não mediático, consequentemente
desconhecido é de relativa importância. Assim se faz, assim se vive.
Que a economia gere o mundo até o
mais incauto o sabe, mas daí a fazer do ser humano clientes da sua própria
sociedade, do seu bem-estar, dos seus afetos quiçá dos seus sonhos, isso
cavalheiros ainda não foi escrito e, penso que jamais o será, Robert Schumann
disse no dia nove de Maio de 1950 o seguinte: «A Europa não se fará de uma só
vez, nem de acordo com um plano único. Far-se-á através de realizações
concretas que criarão, antes de mais, uma solidariedade de facto.»
Meditemos, pois.
Maria Teresa Soares.
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09 julho, 2015
02 julho, 2015
Não Comerei da Alface a Verde Pétala
Vinicius de Moraes
Não comerei da alface a verde pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem maior aprouver fazer dieta.
Cajus hei de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.
Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro: dêem-me feijão com arroz
E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.
Kyrie (O
Senhor)
Em nome dos
que choram,
Dos que
sofrem,
Dos que
acendem na noite o facho da revolta
E que de
noite morrem,
Com a
esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos
que sonham com palavras
De amor e
paz que nunca foram ditas,
Em nome dos
que rezam em silêncio
E falam em
silêncio
E estendem
em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos
que pedem em segredo
A esmola
que os humilha e os destrói
E devoram
as lágrimas e o medo
Quando a
fome lhes dói
Em nome dos
que dormem ao relento
Numa cama
de chuva com lençóis de vento
O sono da
miséria, terrível e profundo.
Em nome dos
teus filhos que esqueceste,
Filho de
Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra
vez ao mundo!
Ary dos
Santos
Vinte
anos de poesia
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