As vidas do outro lado
Vem enrolado em espiral
de frio, o vento, que empurra estrada abaixo. Vem depressa como se fora apanhar
o autocarro das oito. Sopra embalando-se no seu silvar.
Na calçada gasta de
passos, mais de vento, chuva, terra e anos, Júlia estuga o passo. Tem que se
apressar. Já devia ter pegado às oito. Vai entrar com a casa já despida de
gente. A patroa não gosta quando ela se atrasa. Depois fica tudo de pernas para
o ar. As meninas deixam tudo numa desordem provocada de mimo, a senhora, não; o
senhor, muito menos. Só as meninas, sempre as meninas. Dois pivetes de
adolescentes estragados. Despem-se e vestem-se, vestem-se e despem-se. Lavam-se
e sujam-se, sujam-se e lavam-se. A Júlia apanha, a Júlia lava, a Júlia passa,
pendura, ajeita e suspira.
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As suas meninas e o seu
homem não correm, antes, circulam com a lentidão do pulsar escasso das suas
vidas. Não há fome em casa. Há apenas pouquidão Não há corre-corre há vagar.
Tudo é feito à medida dos bolsos de cada um. Uns são cheios, outros menos
cheios, outros ainda pouco cheios e há-os vazios. Os seus são de acordo com os
dias do mês, se bem que nunca encheram. Coisas deste lado.
Ela é uma simples empregada
de todos os dias. Cabe-lhe arrumar e endireitar parte das vidas corridas dos
patrões. O seu papel não é principal, porém secundário também não é. Fica
naquela dependência que os patrões têm para que possam avançar. Precisam que
lhes poupem o tempo para as tarefas ditas superiores. Mas o que seria da vida,
se não houvesse as Júlias e os Manéis para desempenhar o que os outros não
sabem ou não querem fazer?- Júlia orgulha-se do seu papel. Ela é o lado, que
não se vê mas que é preciso.
Bate a porta e fecha-a.
desce os degraus do jardim. Na rua, o vento enrola-a de novo, embala-a. Puxa o
casaquito contra o peito e num breve esgar de sorriso murmura: “Vida, mesmo sem
porteira. Maldito vento!”
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