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31 julho, 2008

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O Ascensorista

Joe, negro, sessenta anos, vestidos de verde-garrafa e amarelos polidos perfila-se junto ao elevador. O número um, o da ala central. Inclina-se ligeiramente, puxa a porta, abrindo-a ao mesmo tempo que sorri calorosamente. Murmura num timbre quente e arrastado de sulista:

-Bom dia Mr. Owens. It is a good day, isn’t it?

-Bom dia Joe. It seems so, indeed.

É um espectáculo de elegância o velho Joe. Sempre erecto, engomado, irrepreensível. Na tez cor de chocolate as rugas pregueiam-se horizontalmente na simetria dos seus trejeitos. O vinco das calças acompanha a elegância das longas pernas, que terminam nuns pés calçados de preto brilhante. O boné, onde as dragonas em ouro velho sobressaem, dá-lhe aquele ar chic dos anos quarenta em filme da MGM. A sua destreza no abrir e fechar de porta, bem como a sua natural bonomia e sorriso tornaram-no uma referência, no foyer, deste edifício imenso de trinta andares, mesmo no coração de Manhattan. Os mármores negros que revestem dois terços do imenso átrio, os metais amarelos reluzentes, as plantas verdes, brilhantes e profusas, o vidro que enobrece de luz a parte frontal da entrada, a par de um suave meddley na voz de Frank Sinatra, acrescente-se a frescura, ou amenidade, de acordo com a estação do ano, fazem deste lugar, o eleito de Joe Bellow. Hoje é o seu último dia. O elevador número um, o principal, aquele que ele viu nascer e crescer passará para outras mãos. Tem pena, mas a idade não lhe perdoa. A artrite já lhe tolhe os gestos. O esforço por vezes é doloroso, não o demonstra, mas depois em casa é a sua Mabel que lhe alivia as dores com as pomadas, mais as massagens. Chegou o dia que ele temia. Não deixa transparecer a solidão que já pressente. Ninguém parece saber que é o seu adeus. Entra no ascensor. Mr. Owens e Mr. Sutton vão para o décimo, Mrs Trevor para o décimo segundo, Mr. Parker para o décimo sete, Miss Page para o vigésimo, os outros dois cavalheiros, asiáticos por sinal, não sabe, terá que lhes inquirir. O espaço está completo. Entra, prime os botões. Sorri afável. Depois de devidamente esclarecido aperta o botão no andar, que os desconhecidos lhe solicitaram. Joe suspira. Mais uma subida, mais uma viagem. O carrossel dos seus sonhos em vertical. O número um dera-lhe a possibilidade de viajar na imaginação das subidas e descidas. As suas viagens, embora breves, eram sempre ricas em indução nas figuras que o pululavam. Joe conhecia bem, o pulsar daquele edifício, e muito das vidas dos seus personagens. Havia trinta anos que fazia viagens na vertical. Recorda o ano em que Mrs Trevor teve os seus trigémeos. Ocupava-lhe dois terços do espaço dado a sua expansão física. Por essa altura tivera que fazer mais subidas e descidas. Depois finalmente os três Bês nasceram. Bruce, Brandon e Barbara. Hoje têm vinte e dois anos! Como o tempo passou. Recorda o ainda jovem Mr. Sutton, Steve de nome, quando entrou na firma. Hoje director e sócio. Trinta anos Uma vida, a sua. Ali, no “Rox Building” viu as estações sucederam-se ao ritmo das suas viagens. Ora mais movimentadas ora mais lentas. O décimo andar era sem dúvida, a zona por excelência de paragem. Muitas vezes subiu até lá apenas para aspirar o cheiro da elegância bem como dos passos deslizantes daquele pequeno mundo: Owens, Sutton & Partners Consultores. O número um sempre se portara á altura dos seus utentes. Elegante, discreto e oleado. Não fizera birras, deslizara ora cima ora baixo ao som das necessidades pontuais das suas personagens. O velho Joe tinha orgulho dele, da sua subtileza, da elegância, da fiabilidade, da generosidade e do mundo que lhe dera no seu abrir e fechar de portas. Ele, Joe, filho do Mississípi, de gentes pobres e numerosas, imigrara para a cidade, quando na década de vinte a fome apertara de tal forma, que a sarabanda fora total. Ele e os irmãos tinham vindo para a Grande Maçã. Os anos encontraram-no em trabalhos de ocasião. E fora de degrau em degrau que chegara até ao Rox Building. Porteiro. Uma posição. Aprendera muito. Não fora só escolaridade, fora mundo. E isso não se frequenta, adquire-se. Sabia avaliar as pessoas. Aprendera a ser humilde sem ser subserviente. A gente, deste meio, detesta o servilismo sistémico, desprezam-no, podem sorrir ao inclinar constante, ao assentir repetido, mas no virar de costas existe aquele sentimento de quase desprezo ou então de sentido superior. Joe sabia, que entre os poderosos não se pode ser fraco, porque motiva o desprezo, não se deve ser altivo, porque irrita a pele e os sentidos de quem está ao lado. Aprendeu, pressentiu e evitou o excesso de aquiescência, ficando-se sempre pelo seu incontornável sorriso, um sofisma por decifrar. Manteve a sua postura erecta como se fora, o fio-de-prumo, porém sobe sempre revesti-lo de uma afectuosidade envolvente. Todos apreciavam Joe Bellow. Havia uma familiaridade dos anos, uma espécie de corrente de entendimento. Os pequenos favores que lhes pediam eram satisfeitos com sabedoria e contenção. Nem mais nem menos. O ponto exacto de viragem entre o pedir, fazer e agradecer. Um tratado de bem viver, era assim que se podia ser definido Joe Bellow, o ascensorista. Uma época que cessa hoje. A idade encheu-se dos anos, as memórias saturaram o presente, os ritmos tornaram-se contínuos, os espaços estreitaram-se e os costumes tomaram aspecto de aguarelas. Um outro século que surge vibrante na dobra da mudança incógnita. O que era já não é, o que for, poderá, talvez vir a ser. Visualiza, em seu lugar, um porto-riquenho de cabelo oleado e de estatura mais baixa, menos contido, usando um tom familiar e nada circunspecto, pelo contrário, quase de igual para igual, que irá abrir a porta e carregar nos botões. Haverá um franzir de sobrolho, um pigarrear, um ah, hum e depois… depois… tudo subirá e descerá no rolar afinado dos cabos mais das alavancas. Tal como a vida.

Joe sai. Não olha para trás. Já recorda. O ontem e o hoje já foram. Amanhã recomeça a subida do outro tempo que lhe resta.


I did it my way - Frank Sinatra


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29 julho, 2008

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Faire Pendant

No calor sufocante do Inferno, a alma entreabre o casulo que a reveste e tenta respirar. Lá fora, na abóbada que cobre o lugar, o calor dilui-se por entre espirros de vapor, que infernizam as outras almas em passeio nocturno. Tímida, incauta despe-se da sua pele e voa pelo espaço. Vagueia em ziguezague, está meio zonza, a esfera é pesada, enxofrada e arrepanha-lhe o espírito. Imprime mais movimento ao seu vaguear, como se a rapidez lhe desse o alento que sente desfalecer. O lugar para onde a enviaram é casa de expiação, sente-o. A morte apanhara-a desprevenida. Estivera dançando com o luar, e num pestanejar azul fora-se, lado a lado, com um suspiro de adeus. Depois fora a viagem. O casulo onde a tinham depositado, após pesada, medida e avaliada, tinha-a forçado a uma postura vertical que lhe comprimira os neurónios, de tal forma que ainda não apreendera o todo da sua novel situação. Para já e após um breve vistoria apurara que o lugar era variável em temperatura de acordo com o número de casulos que chegavam. Regressada ao seu alvéolo, prepara-se para descansar um pouco quando entreouve uma conversa de outras duas almas, por sinal um pouco afogueadas que lhes confere um tom rosado de quase felicidade. Conversavam, assim, as energias:

-O ostracismo grassa lá por cima.

-Nem me diga. Os meus últimos dias foram péssimos…Não me ligavam nada. Posta assim de lado como se a lepra me tivesse tomado.

-Mas então porquê, o que é que a querida fez, ou não fez?

-Olhe a querida sabe que no meu país, pois a menina vem de um outro mais a norte, e desconhece as regras, mas como lhe contava, lá por bandas do Oeste”quem não é por mim é contra mim”. Uma frase já muito antiga, pisada, descartada mas que serve sempre para vestir quem calça os corredores do Paço.

-…?

-Eu explico, querida. Tal como na moda, as ideias devem faire pendant, faz parte das alíneas do Tratado Europeu. Não somos nós Europeus, todinhos, pelo menos nesta secção? Veja as benesses que temos em relação aos pobres chinesitos…

-Lá isso é verdade, temos mais direitos…muitos mais…mas também eles não estão habituados, não lhes deve fazer impressão.

-Rica, mas como lhe dizia, tive assim um ataque de rebeldia e decidi vestir a minhas ideias. Foi o fim, querida. O fim! Fui logo posta de lado, riscada e enxotada, assim à laia de mosca varejeira. Senti-me a coisa mais abjecta apenas porque pensei, veja lá, mas fiquei tão desgostosa, ferida, magoada que tudo isto acabou por inundar o meu ser, e assim finei-me.

-Pobrezinha da rica. Olhe, myself também…, estou ainda a acomodar-me, pois que como sabe, só cheguei após o resultado do referendo na minha Ilha. Naturalmente que votei Não. Logo, fui considerada persona não grata e expedida directamente para este lugar. Lá fora vive-se numa banheira de espuma sem água. Só marketing. Fazem-me lembrar os nossos duendes mais os potes de ouro, só lendas….Como vê é tudo igual, por isso é que estamos na ala da Europa que por sinal é enorme.

-Pois a menina tem toda a razão. Andei eu, uma vida inteira a pensar, e a penar pela Europa, e afinal vejo que este lugar está repleto. De boas intenções vaiadas. Um dia destes, o continente passa a ser aqui. Pelo jeito parece que a população aqui cresce a olhos vistos. Se excluirmos o ar, até se está bem melhor do lá em cima ou em baixo, olhe que perdi o tino, e depois, querida, podemos ter as nossas ideias, não podemos?

-Ah, claro que sim, e até fazemos manifestações, e somos ouvidos… veja uma coisa quase inaudita para mim… desde que a Ilha passou a estar em Paz, como dizem, tudo deixou de ser ouvido. Era lá para os lados de Bruxelas que cozinhavam as nossas vidas, sem sequer se dignarem a saber o nosso prato preferido. Tudo igual. Uma vergonha.

-Um horror, rica. Sabe que ao olhar para trás vejo que não passei de uma nefelibata. Nem me apercebi que estava rodeada de tartufos e mentecaptos. Fico estarrecida. Agora!

-Ai rica, que a menina fala caro. Também só pode né? Lá nas suas bandas são todos bem-falantes e pouco mais…Um país de linguajar pomposo para esconder a pobreza de…

Ouve-se um estrondo, seguida de uma algazarra, logo sobreposta por uma voz imperiosa. As duas almas calam-se. Escutam. Então a alma lusa, aflita contrapõe:

-Ó rica, ó rica, cale-se que vem aí o meu chefe, deve ser engano, mas se me apanha a falar estas coisas ainda me despromove e …

Lá vou parar ao quinto dos infernos! Sabe como é, não sabe, rica? Sempre à faire pendant!


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28 julho, 2008

O que é atraente nem sempre é bom, mas o que é bom é sempre belo.

(Ninon de L'enclos)


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27 julho, 2008

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Urze e Giesta

(…) X


É no vento que sopra por entre os montes, é no ar fresco bebido de neblina, que Isabel repousa a cabeça. Pedro já partiu. Está sozinha. Vinte anos depois está sozinha. Tem os filhos, é verdade, mas são eles que repousam a cabeça no seu ombro e não ela. Não tem onde descansar a cabeça. Pedro sempre esteve lá, foi o companheiro, o amante, o amigo, o marido, o pai. E agora? A raiva invade-a. Não sabe contra quem lutar. Sim, porque uma luta tem sempre dois rostos. Onde está o outro? A ausência do nada é pior que o excesso do todo. Como retomar uma vida onde o princípio se desfez? Ah! Que raiva, que dor, que esgar. Tinha que fugir, fugir. Fugiu da lógica e veio refugiar-se no seio da vida, onde os vagidos ainda ecoam e as vontades são dobradas. As suas raízes são estas, o seu mundo é este. Lento, rude, talhado por entre gumes de rocha cinzenta, dura, árida, erguida em pique contra o céu. Neste mundo, sem redondos nem subtilezas, está a sua alma. Mas onde pára? Onde dorme? Algures, na planura do vale pespontado de amarelo e verde, ou mais além, no sorriso cerrado dos montes, naquele declive rosado, não, talvez mais além ainda, naquele punho fechado de pedra agreste desafiando o céu mesmo por cima. Estará mesmo por ali? Se no seu vaguear perdido de anos, se no seu adejar contínuo, se na sua busca de sentido humano tivesse crescido para além das grades da forma, se tivesse distanciado, e liberta lhe gargalhasse rouca e profundamente, ofendendo-lhe os tímpanos, profanando-lhe os sentidos. Era o que sentia. A revolta. A alma reencontrara-a ou ela reencontrara-se. Tudo jorrava, agora, numa vaga surda, que se formava no estômago e lhe rebentava em explosão no cérebro. A lógica perdia-se. A infelicidade tomava-a num jacto amarelo de enjoo que a entumecia causando-lhe arrepios. Agoniada, cambaleava, mas logo em seguida, endireitava-se em ímpeto de garra, e num frenesim de segundos, disparava mentalmente contra tudo e todos. As pernas acompanhavam os disparos mentais. Os passos estugavam-se como se fugisse de uma horda em tumulto. Caminhava. Mentalmente látegos de vitupério formavam-se na língua prontos a serem expulsos. Mas não os vomitava. Com raiva e dor, engolia-os. Lentamente o cansaço invadia-a num ofegar de calor e suor. Empapada, vermelha e cansada, acalmava, então.

Isabel engalfinha as mãos. São esguias e tratadas. São mãos de cidade. Não possuem o sabor áspero da terra, apenas o dedilhar do saber mental. Baixa o braço, e de mão aberta apanha uma espiga madura. Sem ver, tacteando abre-a, esfarelando as flores sésseis já cheias, depois deixa-as cair, e de novo outra flor, e mais outra, ao longo dos seus passos. Caem abertas ao vento, as mãos. Estão vazias. Ergue os braços e em concha aberta, dirige-as para o zéfiro e grita. Porquê? Porquê? Deixa-se cair, lentamente, O ar assobia-lhe. Enfrenta-o ajoelhada. Não grita nem gesticula, apenas se deixa desabar perdida no tapete de erva macia e húmida. Ali fica imóvel de olhos perdidos no azul mosqueado de pedaços pastosos de branco. O mundo gravita à sua volta. Fecha os olhos. Entreabre os lábios que humedece com a ponta da língua. Instintivamente ajeita os cabelos que se emaranham com o vento. Deixa-se ficar queda e leve aspirando a brisa que abraça o fim do dia.

O dia começa a esconder-se por entre os cabeços dos montes. O azul tinge-se de amarelo e violeta, depois paulatinamente lança a rede das estrelas. Isabel levanta-se, sacode-se, articula-se e caminha.

Na velha casa vestida de granito e madeira, a luz já aquece a noite. Isabel empurra a porta pesada que chia nos gonzos meio ferrugentos e entra na cozinha onde Adelaide, a mãe, faz o caldo pra janta. Olha-a como se a visse pela primeira vez. E compreende então. Compreende o que sempre a magoou. Compreende o desamor, a amargura e aquela rudeza magoada. Então, como se fora ainda menina , sorri à Mãe com a alma nos lábios.

Silk Road - Kitaro


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22 julho, 2008

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Descendo o Tempo.

Entra, puxa a porta de ferro forjado, de folhas hirtas, que ao dobrar se animam em laços de toucado. Encosta-se à parede. Estica o braço, e com o indicador em riste onde a unha vermelha sorri, prime o botão. Rés-do-chão. Um ligeiro solavanco faz deslizar os cabos já cansados de sobe e desce. Ela, figura solitária olha-se no espelho que engalana o cubículo forrado a vermelho de veludo já esgaçado. Devolve com trejeito, o olhar. A boca, carnuda e húmida de polpa carmim, deslaça um sorriso que restitui à imagem. Os caracóis sedosos escapulem-se do petit-chapeau que lhe cobre o lado direito. A minúscula rede enevoa-lhe as pupilas, que se percebem aquosas, cor de mar. Figura gentil, coquette.Gira sobre si num trejeito de momice. Depois recosta-se ao veludo da parede. Lento num estrebuchar de idade, o elevador desce no tempo. O chiar monótono alinha-se com as memórias. O tempo vivido aqui e ali. O zurzir dos gritos interiores, prontamente alinhavados em súplicas ou sorrisos de promessas. Foi hoje, lá quarto andar onde vive, mora, se melhor pensar. Lá, onde o seu quotidiano vazio se prende às paredes profusas de cores e penumbras. É no terceiro andar da sua vida, que abre o álbum dos retratos por definir. É por aí, que puxa a porta adereçada e toma a descida. O hoje, já ficou para cima, na caixa escura, onde circula. Agora, começa o ontem, quase fresco de imagens e parábolas de quotidiano. Gerardo, o seu amante, o seu homem de sempre. Viril, canalha e lascivo. A sua sorte, o seu vício e o seu prazer. Ora uma eira de sentidos, ora uma campa de camarço. Não fazia sentido viver sem ele. Mesmo no desventrar do seu corpo, no repúdio do sentir, mesmo quando as entranhas se contraíam em vómitos e o sangue borbulhava de rancor, Gerardo era a seiva do seu Ser. Todo ele. A sua figura morena esquiva, lúbrica, brilhante e autoritária. O seu olhar cruel, profundo, desdenhoso, devasso e amante. Tudo nele tresandava a vida. Amava-o humilhando-se. A sua memória sabia-o, mas a sua carne era um animal esfomeado, necessitava da saciedade tal como o espírito se alimentava da raiva subcutânea fermentada nos poros, e que eclodia naquela dualidade de amor-ódio, trave mestra do seu quotidiano. Os dias do seu terceiro andar. O elevador desce inexorável. Ouvem-se esbatidos, saídos de uma grafonola, a voz gasta de Piaff e”La vie en Rose”. Um calafrio perpassa-a. Sacode-se como que extirpasse algo impalpável todavia objectivo, algo pegajoso e indesejado, a memória da verdade. O elevador desce. Segundo andar. O Pai. O corpo fica convulso. As unhas vermelhas cravam-se na carne. A pele láctea tinge-se de violeta. O seu Estigma. Revê o olhar negro, encovado, roxo, bruto. Aquele hálito de surro que embebedava o próprio ar. Aquelas mãos grandes, suadas que lhe procuravam o corpo nas noites geladas. Era ele, o homem que lhe aquecia a cama, lhe violava o ventre e roubava a alma. Era aquele monte de desejo putrefacto que se servia dela. E a mandava calar quando gritava. Era o caniço que o dominava e nela se satisfazia. Na filha. E fugiu, fugiu da podridão, fugiu da servidão, do ódio, da convulsão. Veio para o mundo. Que mais poderia fazer, se outra coisa, não sabia. A sua sina fora aberta no dia em que o pai dela se servira. Menina ainda. Depois fora o hábito, depois a perícia e agora a arte. Sim, arte, em tudo há arte. As imagens esbatem-se lentas mas fortes. Abalam. O negro, o escuro e o vermelho. Tingem a alma. O elevador continua a sua descida. Está a uma nesga do primeiro. A Mãe? Não se lembra. Fugiu. Sabe que fugiu com outro. As feições? Dizem que ela, Lisete, é-lhe parecida. Talvez.

Primeiro andar. O elevador pára, sacudindo-se como se os cabos mais não aguentassem. No baloiçar, a memória sorri. Um bibe de riscado, uma côdea na mão, umas tranças meias-feitas. De mão estendida procura tocá-la suavemente. A garota volta-se, acena e sorri. Um olhar doce, umas covinhas malandras. Ágil desaparece. Vai numa corrida desengonçada. A escola é mais além. Vê-a sentada, chupando no polegar enquanto pensa. Depois lesta, dedo no ar. A visão desvanece-se. Outro dia, um grupo de ganapos correm pelo campo fora. Vão às papoilas. É Maio. A brisa percorre o ar, e os risos dançam com ele. São cinco, seis, não sete garotos, todos povoando o verde do campo. Mãos e risos ao vento. Um dia feliz. A memória desse dia torna-a rosada. Endireita o corpo, olha-se ao espelho, ajeita a toilette, belisca as faces, compõe a saia, endireita o corpete, mira a ponta da botina e espera pelo rés-do-chão. O pátio, de mármore escuro, está do outro lado. A tarde transmuta-se na noite. Há penumbra amarga. Abre a porta que chia sob o peso das lembranças. As folhas parecem ter murchado ligeiramente. Carecem de uma lufada de memórias frescas e leves. Coloca a malinha no antebraço direito e calça as luvas. Pisa, serena, o patamar. A grande porta da rua está mesmo à sua frente, é só descer os degraus no tempo e calcar as quelhas do desatino.

O elevador fecha as luzes e dá as boas-noites.



.Piano Concerto No. 21 In C.2 Moverment - Wolfgang Amadeusz Mozart
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20 julho, 2008

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"O que uma lagosta tece lá embaixo com seus pés dourados?
Respondo que o oceano sabe.
Por quem a medusa espera em sua veste transparente?
Está esperando pelo tempo, como tu.
Quem as algas apertam em teus braços?, perguntas mais firme que uma hora e um mar certos?
Eu sei perguntas sobre a presa branca do narval e eu respondo contando como o unicórnio do mar, arpado, morre.
Perguntas sobre as plumas do rei-pescador que vibram nas puras primaveras dos mares do sul.

Quero te contar que o oceano sabe isto: que a vida, em seus estojos de jóias, é infinita como a areia incontável, pura; e o tempo, entre uvas cor de sangue tornou a pedra lisa encheu a água-viva de luz, desfez o seu nó, soltou seus fios musicais de uma cornicópia feita de infinita madrepérola.

Sou só uma rede vazia diante dos olhos humanos na escuridão e de dedos habituados à longitude do tímido globo de uma laranja. Caminho como tu, investigando as estrelas sem fim e em minha rede, durante a noite, acordo nu. A única coisa capturada é um peixe dentro do vento."

Pablo Neruda




"...Some say the lark and loathed toad change eyes,

O, now I would they had changed voices too!
Since arm from arm that voice doth us affray,
Hunting thee hence with hunt's-up to the day,
O, now be gone; more light and light it grows..."

William Shakespeare in Romeo and Juliet Act III Scene V.


15 julho, 2008

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Urze e Giesta

(…) IX

Maria Luísa sorri por entre a liquidez que teima em inundar-lhe as pupilas. Sente um nó, não sabe se no peito, se na garganta, crê mesmo que o maldito a comprime toda. Relança o olhar ao filho mais velho e os lábios despregam-se-lhe. Tem vontade de o castigar como se fora ainda o seu menino. Dois açoites apaziguariam a tremedeira que a percorre. Tem a ira a enrolar, a enrolar.

-Bom, o melhor é levantar-me e ir até à cozinha. Os tachos ouvir-me-ão certamente. Assim o pensa, melhor o faz.

Ouve-se um cair de tampas, sons estridentes, rolados, consequentes e subsequentes à manipulação desastrada ou irada da sua dona. A fanfarra desafinada largou-se pelas bandas da cozinha e os pratos batem convulsivos num estertor estrídulo de notas arranhadas em dissonância.

-Ai Pedro, Pedro… E pensar que passava a vida a enaltecer este filho. Afinal é igual aos outros, e ainda por cima diz que está simplesmente cansado. Ai, ai que idiota! Os irmãos pelo menos nunca se taparam com a capa de Santos. A Margarida é mesmo daquele jeito, sem jeito. Mas parece que é feliz. O outro, o Afonso, agora depois de casado e pai, achou que tinha que mudar de género. Enfim. Na verdade estes tempos são demais para mim. Já não atino com todas estas mudanças. E não vale a pena tentar acompanhar, as pernas já estão demasiado cambaias para tantos solavancos.

A cólera passiva que a domina espreita o exterior. É nas facas que lhe escorregam, nos garfos que se estatelam pelo chão, que sente a desforra de um penar, há muito latente nas entranhas. A loiça já está toda metida na máquina, e em vez de se dobrar, como seria normal, é com a ponta do pé que levanta a porta, de seguida o joelho empurra-a, fechando-a. Mais um movimento inusitado nesta mulher quase serena.

-Raios partam esta vida… mas que mal fiz eu para ter uns filhos assim…! Labutei que nem uma moira, sacrifiquei-me, logo agora quando pensava poder descansar, estes estropícios, sim estropícios vêm dar-me cabo dos dias com as suas “inadaptações”. Santo Deus… estou farta!

Num gesto inusitado, num arroubo incomum, Maria Luísa dá um pontapé no caixote do lixo que se entorna pelo chão.

-Só me faltava mais esta ter que apanhar o lixo, nem a propósito…

A inércia tomou conta dos seus resmungos. Sente um pouco de alívio, sente que o seu peito despejou umas quantas queixas mas que o desengano se mantém. Mãe, que é mãe, sempre ajeita as notícias, mas dentro de si, elas entrechocam-se até o tempo as acomodar nas prateleiras dos afectos. Por ora, Maria Luísa, ainda procura o espaço, em tempo, chegará o lugar exacto, e só muito depois, o sorriso e a famigerada auto-consolação: “Afinal não foi o primeiro nem será o único”. E ponto final, fecha-se a gaveta. Há que abrir outra. Porém por ora, as emoções estão ainda à flor da pele…

- Bem, e ainda não acabou por hoje, vem aí a Margarida mais a Inês. Com que cara de pau lhes vou dizer, sobretudo à Margarida… Sempre tenho cada engulho… e logo a ela!

-Mãezinha, o que se passa, agora fala sozinha?

-Pedro és tu que me pões assim. Filho, não estou ainda em mim… juro que não. Mas é só uma coisa passageira, não é? Um arrufo? Ai, os meus netos!

-Mãezinha, não sei se é passageiro ou não, não sei. Sei que preciso, que precisamos de tempo. É isso. Por favor não faça drama de uma coisa natural.

-Natural? Pois, pois… não me digas mais nada. Vai ter com o teu pai, vocês homens nestas alturas entendem-se melhor. São da mesma massa… Coitada da Isabel...tão boa rapariga, boa mãe, esplêndida profissional, mulher interessantíssima e… agora.

- O paizinho disse-me que a Margarida vem cá passar o fim-de-semana e que a Inês vem com ela. Há séculos que não vejo a minha sobrinha. Afinal via-a nascer.

- Só desgostos é o que vocês me têm dado. A tua irmã, depois o teu irmão, agora tu. Nem sei como tenho cara…

-Mãezinha, não percebo porquê tanto drama. Já se esqueceu de todas as outras e muitas alegrias que lhe demos os três. Esqueceu-se… ou faz que se esqueceu. Nós somos vossos filhos, mas não somos vossas cópias, somos diferentes, vivemos noutro tempo, sentimos sem rótulo de embalagem. Quando o embrulho é desatado apenas aproveitamos o que precisamos, não queremos o papel nem o laço para toda a vida, mesmo porque que o papel se vai rasgando e a fita desfiando. Percebe-me, mãezinha? O casamento é isso, um embrulho. Cada um desata conforme sabe e gosta.

-Ai é? Um embrulho? Muito me contas. O melhor é não dizeres mais nada. Peço-te.

- Como queira. Mas é a minha decisão.

Sai da cozinha encolhendo os ombros, meneando a cabeça e de rosto fechado. Aquele ar calmo e simpático, apanágio da sua pessoa, parece ter-se evaporado. Há uma nuvem espessa nas pupilas que as tornam cinzentas escuras como se uma trovoada se acercasse tocada pelo vento forte do norte. Aquele que trás o frio e a chuva. O tempo dito de borrasca.

Ouve-se o toque do badalo no portão do jardim. Sorri por entre o furacão que espreita às janelas do seu sentir. A sua irmã sempre previsível, igual e turbulenta. A única pessoa na família que sempre puxou o badalo do portão do jardim, que sempre se fez entrar por aí, desdenhando a porta principal. Margarida que desde pequena sempre foi avessa ao padrão. Nasceu quase assim. Ainda se lembra dela bem pequenina e sempre independente. Apesar de ser a menina, era bem mais rebelde do que os seus dois irmãos. A única que enfrentou o pai e lhe desobedeceu acintosamente. A sua força de carácter foi sempre um mistério para Pedro. Nunca percebeu lá muito bem, onde é que aqueles dez réis de gente fora buscar tanta força, raiva, altivez e independência. Porém, e se bem conhecia a sua irmã, o reverso de todo aquela personalidade era um bom pedaço de manteiga bem mole.. Quem lhe soubesse tocar as cordas do violino da sensibilidade tinha tudo o que queria. Era certo, que o pai tinha muito orgulho no seu carácter e vida profissional, não tanto na sua vida pessoal. Houvera sempre um constrangimento no relacionamento entre mãe e filha, ela não aceitava a maneira acintosa de Margarida, a sua frontalidade pessoal, o seu desdém pelas convenções, o encolher de ombros, a fuga aos paradigmas que Maria Luísa tinha como certos, a falta de sentimento de culpa, o que parecia ser, a seus olhos, lacuna grave no carácter da filha. Os preconceitos de laivos burgueses que geriam o mundo de Maria Luísa, e contra os quais Margarida sempre se rebelara, levando a dela a à avante. A relação mãe-filha mais do que conflituosa fora sempre táctica.

Pedro respira fundo e desde para o jardim. Margarida sempre lhe dará um pouco daquela alegria que ele bem precisa.

No alto das escadas que dão acesso ao jardim já Maria Luísa fala com a filha e neta.

Calmamente desce e coloca-se a meio caminho. Uma estratégia de batalha que aprendera e o precavia de golpes mais profundos.

-Olá Margarida, bons olhos te vejam. E a Inês, caramba sobrinha. O tempo passa!

-Olha pra ele, a fazer-se de importante. Por acaso não sabes onde vivo? Sabes, não sabes. Eu é que não tenho vida, e depois nunca fui dessas coisas, já sabem.

-Olá tio. A tia e os primos estão cá? Vou já ter com eles. Estão lá em cima?

-Não, minha querida. Vim sozinho. Estão bem, todos finos e rijos.


Margarida olha directamente nos olhos do irmão. Sustenta-lhe o olhar, lê tudo o que tinha para ler. Não precisa de mais. Pertence ao singular grupo daquelas pessoas que percebem tudo sem as palavras. Estende-lhe as mãos e estreita as dele nas suas. Um sorriso de lábios vermelhos aquece o constrangimento sub-reptício que pairou por momentos. Há luz e força nas suas pupilas. Margarida ágil, senhora de si, dá um braço a Pedro e juntos entram em casa. Há cumplicidade . O tempo da revelação virá...

Eines Tages (from Madame Butterfly) - James Last

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13 julho, 2008

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Prazeres.

Uma haste tenra que surge, mais outra, outra, e outra ainda. Um laço enrolado. Um braço solto no ar. O vento que vem e embala a haste, acaricia a folha e balança o cacho minúsculo, quais grânulos verdes e múltiplos em triângulo invertido. No bardo verdejante papoilam os cachos emoldurados de parras e laçados nas gavinhas. No chão, faúlhas de xisto amaciam a terra vermelha e seca. O pó solta-se sempre que o vento vem namorar os vinhedos. Dá-lhes a patina do calor aquecendo os pequenos grãos bagos que resfolegam tranquilamente. O verão dança na vinha, por entre as gavinhas que prendem os cachos ,e a terra calçada de alpergatas de xisto. Em cada passo calcado há a memória que se escoa na poalha do solo.

Além desce suave a colina, aqui sobe penoso o socalco. Mais além, brinca o olhar da moçoila e do rapagão, sob a oliveira serena que veste a sombra do recanto, gera-se o grito de vida. No outro além, lá em baixo junto ao rio, deitado na erva tenra e florida de vinagreiras amarelas, sonha-se com o mundo ao sabor da corrente. E os vinhedos maturam-se no rolar do tempo. As cores são inebriantes de luz. Os castanhos descem até ao rosa e pelo meio vestem-se de ouro, de negro, de púrpura. Hino de paleta por pintar, tela viva ainda não gizada na arte do traço. A terra, mater fecunda, abre-se ao estio da idade. Matura no seio ,o néctar, que outros virão colher. Grupos de cestos, cantigas ecoadas e risos perdidos, enchem o céu alinhavado de ténues sopapos de algodão.

E o calor rebola no vento, tisnando o bardo, aquecendo a doçura do líquido, que entre dedos espirra quente e perfumado como se fora aroma estilizado. As tesouras cortam as hastes entoando o seu eterno tic-tac. Soltos os cachos rebolam pelos cestos. Há no ar um cheiro doce, quase enjoativo que as ladainhas respigam mais ainda. A tarde esvai-se. Colossal a paisagem pára. Perde a animação. Descansa, imóvel do prazer tirado do seu ventre fecundo. A orgia do dia cessou, qual cortesã banha-se lânguida na brisa do entardecer que a despe. A terra veste a musselina estrelada da noite, devolve com um beijo sensual o pestanejar daquela estrela atrevida que teima em seduzi-la ,e recolhe-se nas suas entranhas ainda mornas de ardor vivido. O palpitar, de cada dia, no todo do seu ser, fá-la suspirar. Amanhã novas primícias ser-lhe-ão exortadas. Há que descansar.

Boa-noite!

Antonin Dvorak - Humoresque -

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12 julho, 2008

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A Terra

Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.

Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã.

Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!

Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem.

Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!

E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois.

Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!

A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos.

Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!

Miguel Torga



A Passage Of Life - Kitaro

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10 julho, 2008

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Main Theme From Out Of Africa - John Barry


Paki

Sentado no degrau da porta da entrada ,Paki escarafuncha as narinas já de si bem largas. Poisa os pés descalços no tijolo vermelho, ao lado descansam os chinelos já gastos e escuros de mil andanças. O tronco cor de chocolate aveludado respira nu o calor da tarde fazendo descer aquela moleza que só Paki sabe sentir. Rebola os olhos e o branco respinga no rostinho doce em jeito de nuvem de chantilly. Paki é menino órfão nas ruas da cidade grande. A vida é zagaia lançada no ar. É mesmo. Foi coisa amarga com que nasceu e cresceu, assim numa caixa vazia de amor. O pai, não conheceu, porque a mãe também se esquecera de quem fora. A pobreza é assim, o corpo paga a fome e depois sem licença gera gente em viagem famélica de amor, apenas abrigada no útero quente. Foi assim que Paki se tornou gente. Num acaso qualquer, numa troca de carne e moedas, lá viu ele a linha da vida. E fez-se menino. Depois a mãe sumiu mal o tinha botado cá para fora. Paki cresceu na rua entre o lixo, fumo e o cheiro. Mas vinha de mão dada com o sol e não deixou que ele lhe escapasse. Só no fim de cada dia deixava que fosse descansar. Paki sabe que o sol é o amigo envolvente dos dias menos quentes, a roupa que não teve. O menino de chocolate cabeceia, o pescoço dá aquela volta redonda sempre que a cabeça pesa de sono, e descai sobre o peito nu de chocolate. As persianas fecham-se, o mundo cavalga na neblina do faz de conta sonhado. Paki corre na frente do jardim onde as flores azuis se abanam no bom dia da manhã. Da cozinha vem o cheiro da custarda com ruibarbo que ele tanto adora. Ouve a voz quente da mãe, sente a macieza reboluda do peito, onde ele rola o rosto e aquece a alma. Apetece-lhe correr, correr muito tanto quanto as suas pernas esguias o levem. É o seu sonho de todos os dias. E no rosto adormecido perpassa a luz do sorriso que lhe ergue as comissuras dos lábios cheios.

Depois, depois, vem o homem grande que sai do quartinho lá em cima, onde a madrinha ganha a vida e perde os anos, o homem que embirra sempre com ele, e lhe dá um pontapé dizendo-lhe:

-Ei, miúdo acorda, pisga-te daqui…senão desanco-te. Vai trabalhar moleque…

Paki levanta-se, agarra nos chinelos de borracha mas o pontapé atinge-o ainda nas costas. Dói. Nem tanto a dor seca que lhe comprime o ar fazendo-lhe arder as costelas, mas mais magoa aquela onda surda que o sufoca. Rebenta em lágrimas e ranho pelo rostinho. Paki é menino da rua, pobre, sujo, famélico mas sentido. A solidão dos afectos torna-o mais sofrido. Soluça Paki, soluça a alma da criança na sombra cinzenta do mundo às avessas. Paki é testemunha. Paki é nome Zulu.

08 julho, 2008

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O Mar e os Sinos

O dia não é hora por hora.
É dor por dor,
o tempo não se dobra,
não se gasta,
mar, diz o mar,
sem trégua,
terra, diz a terra,
o homem espera.
E só
seu sino
está ali entre os outros
guardando em seu vazio
um silêncio implacável
que se repartirá
quando levante sua língua de metal
onda após onda.

De tantas coisas que tive,
andando de joelhos pelo mundo,
aqui, despido,
não tenho mais que o duro meio-dia
do mar, e um sino.

Eles me dão sua voz para sofrer
e sua advertência para deter-me.
Isto acontece para todo o mundo,
continua o espaço.

E vive o mar.

Existem os sinos.

Pablo Neruda

.Hymn To The Sea - Titanic
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Mãe infusa

Ainda estão por dizer
as púdicas confidências
do tempo em que era possível
ouvir as hortênsias.

No quintal de incontinente
o maracujá enlanguescia
e pedra a pedra se reconstruía
a casa infinitamente.

Teu rosto ainda não vagueava
na noite fria do retrato.
Em que desmemoriada candeia
derramaste oh mãe o azeite intacto?

Dispunhas as jóias do inverno
para a festa cálida do verão.
Por certo alguma levaste
passando-a ao fisco da morte
para que uma pérola te assinalasse
no caso que o vento espalhasse
o pólen da tua mão.

Eis-te todavia sem ossos
mas mais do que nunca infusa
em teu ovular desvelo
e eu carnalmente intrusa
pressinto que para tocar-te
enfermo de longos cabelos.



Natália Correia
Poesia Completa
O Vinho e a Lira, 1966
Publicações Dom Quixote
1999
The Flower Duet - Katherine Jenkins
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05 julho, 2008

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La paloma

Poema de Rafael Alberti
 
Se equivocó la paloma
se equivocaba.
Por ir al norte, fue al sur
creyó que el trigo era agua,
se equivocaba.

Creyó que el mar era el cielo
que la noche, la mañana,
se equivocaba,
se equivocaba.

Que las estrellas, rocío
que la calor, la nevada,
se equivocaba,
se equivocaba.

Que tu falda era tu blusa
que tu corazón, su casa,
se equivocaba,
se equivocaba.

Ella se durmió en la orilla,
tú en la cumbre de una rama.

Creyó que el mar era el cielo
que la noche, la mañana
se equivocaba,
se equivocaba.

Que las estrellas, rocío
que la calor, la nevada,
se equivocaba,
se equivocaba.

Que tu falda era tu blusa
que tu corazón, su casa,
se equivocaba,
se equivocaba...







.Recuerdos de la Alhambra - Nana Mouskouri
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La vie en rose (Edith Piaf)

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.Des yeux qui font baiser les miens,
Un rire qui se perd sur sa bouche,
Voilà le portrait sans retouche
De l'homme auquel j'appartiens

[Refrain]
Quand il me prend dans ses bras
Il me parle tout bas,
Je vois la vie en rose.
Il me dit des mots d'amour,
Des mots de tous les jours,
Et ça m'fait quelque chose.
Il est entré dans mon coeur
Une part de bonheur
Dont je connais la cause.
C'est lui pour moi,
Moi pour lui dans la vie,
Il me l'a dit, l'a juré
Pour la vie.
Et dès que je l'apercois
Alors je sens en moi
Mon coeur qui bat

Des nuits d'amour à plus finir
Un grand bonheur qui prend sa place
Des ennuis des chagrins s'effacent
.
Heureux, heureux à en mourir.




La Vie En Rose - Edith Piaf
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03 julho, 2008

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As Time Goes By (Love theme Casablanca) - Ernesto Cortazar
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Silêncio

Correr na esteira do passado ao longo do corredor da vida, beijar o vento na aragem da memória, eis o presente de quem ainda respira mas já revive a neblina. São os cinquenta. Janela semi-aberta para a meia-idade e ainda semi-fechada sobre um tempo maduro que se côa. É assim que se equilibra o tempo. Embala-se nos acordes que brotam do leitor de sonhos, o corpo desfalece na languidez do sofá verde e o olhar perpetua-se no adejar do cortinado que sincopado rodopia em passos de danças leves e aéreos. O olhar magoa-se mas memórias e os lábios entreabrem-se em húmidos rios de palavras por dizer embora por demasiado pensadas. Houve duelos interiores que pereceram na arena do coração. Houve vontades desfeitas por imposição do soprar do vento da quietude, houve desejos amordaçados por imperioso bem viver, houve sonhos abortados por necessidades ditas do quotidiano. E o tempo escoou-se por entre os dedos, como se fora a areia em peneira de criança. No rosto, chão de linhas escavadas, talismã dos anos, existe um pouco de doçura e brilho fugaz de porvir. Esse chão que pretende ser o palco de uma vida, esse mesmo chão que envelheceu antes do espírito ou até mesmo do sentir. Será possível a máscara não casar com o costume? Perscruta o ontem na busca da resposta que se dissolve na maré do presente e quem sabe, na onda do amanhã. O que vê? Tanto e simultaneamente tão pouco. Dicotomia? Não, apenas perspectiva de tanto vivido, puxado, repuxado, apaziguado e quase esquecido. Dores, gritos, tumores coarctados onde, porém a cicatriz permanece. As preces erguidas em arroubos de esperança, o acreditar no amanhã, o esperar pelo que não chegará. Tudo, tudo, curvas de um percurso de vida. Hoje pára-se e olha-se. Não se respira porque o tempo não o permite. Apenas se inspira. Pertence-se a esta nova urbe como se fora inquilino não desejado. Tem que se habitar o prédio, todavia os lances são penosos e as varandas ventosas. Opaco desceu sobre a gente já amarelecida. E a voz? A voz é mandada silenciar como se fora som monocórdico por demais dissidente em ensaio de orquestra. Torna-se óbvio, que se perdeu o estrado, mas é latente que ainda se é necessário na subsistência da precariedade do presente. Uma espécie de salvo-conduto para se continuar. Ter cinquenta ou sessenta é ter muito vivido, e ainda ter muito por viver. Não é credível a frase por julgada excedente. Ter cinquenta é ser excedente no mundo precário de hoje. Saber julgado quase obsoleto, imperfeito ou até mesmo destituído.

Na sala de sofás verdes a porta fecha o tempo. A música parou o seu débito. O cortinado deixou a dança do vai e vem. A noite sobreveio ao dia no interlúdio do pensamento deslizante. É assim que o tempo a recolheu, sentada e pensativa. Tanto ficou por fazer, tanto por dizer, e mais ainda por amar. Houve pressa e correria. Um descartar de gente, na vã e inútil procura, da alcova ou do sofá perfeito, da primazia algures no mundo. Tudo isso não está, não existe, não se atropela, não se compra, não se tem ou se burla, apenas se sente. Sentir é uma arte, um dom. Sentir não é só rir, lacrimejar, chorar, ansiar, doer, é também e sempre partilhar e dar, dar-se. É essa a chave da vida. Abrir o olhar da alma no girar da vida.

E o silêncio casa-se outra vez…

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