Faire Pendant
No calor sufocante do Inferno, a alma entreabre o casulo que a reveste e tenta respirar. Lá fora, na abóbada que cobre o lugar, o calor dilui-se por entre espirros de vapor, que infernizam as outras almas em passeio nocturno. Tímida, incauta despe-se da sua pele e voa pelo espaço. Vagueia em ziguezague, está meio zonza, a esfera é pesada, enxofrada e arrepanha-lhe o espírito. Imprime mais movimento ao seu vaguear, como se a rapidez lhe desse o alento que sente desfalecer. O lugar para onde a enviaram é casa de expiação, sente-o. A morte apanhara-a desprevenida. Estivera dançando com o luar, e num pestanejar azul fora-se, lado a lado, com um suspiro de adeus. Depois fora a viagem. O casulo onde a tinham depositado, após pesada, medida e avaliada, tinha-a forçado a uma postura vertical que lhe comprimira os neurónios, de tal forma que ainda não apreendera o todo da sua novel situação. Para já e após um breve vistoria apurara que o lugar era variável em temperatura de acordo com o número de casulos que chegavam. Regressada ao seu alvéolo, prepara-se para descansar um pouco quando entreouve uma conversa de outras duas almas, por sinal um pouco afogueadas que lhes confere um tom rosado de quase felicidade. Conversavam, assim, as energias:
-O ostracismo grassa lá por cima.
-Nem me diga. Os meus últimos dias foram péssimos…Não me ligavam nada. Posta assim de lado como se a lepra me tivesse tomado.
-Mas então porquê, o que é que a querida fez, ou não fez?
-Olhe a querida sabe que no meu país, pois a menina vem de um outro mais a norte, e desconhece as regras, mas como lhe contava, lá por bandas do Oeste”quem não é por mim é contra mim”. Uma frase já muito antiga, pisada, descartada mas que serve sempre para vestir quem calça os corredores do Paço.
-…?
-Eu explico, querida. Tal como na moda, as ideias devem faire pendant, faz parte das alíneas do Tratado Europeu. Não somos nós Europeus, todinhos, pelo menos nesta secção? Veja as benesses que temos em relação aos pobres chinesitos…
-Lá isso é verdade, temos mais direitos…muitos mais…mas também eles não estão habituados, não lhes deve fazer impressão.
-Rica, mas como lhe dizia, tive assim um ataque de rebeldia e decidi vestir a minhas ideias. Foi o fim, querida. O fim! Fui logo posta de lado, riscada e enxotada, assim à laia de mosca varejeira. Senti-me a coisa mais abjecta apenas porque pensei, veja lá, mas fiquei tão desgostosa, ferida, magoada que tudo isto acabou por inundar o meu ser, e assim finei-me.
-Pobrezinha da rica. Olhe, myself também…, estou ainda a acomodar-me, pois que como sabe, só cheguei após o resultado do referendo na minha Ilha. Naturalmente que votei Não. Logo, fui considerada persona não grata e expedida directamente para este lugar. Lá fora vive-se numa banheira de espuma sem água. Só marketing. Fazem-me lembrar os nossos duendes mais os potes de ouro, só lendas….Como vê é tudo igual, por isso é que estamos na ala da Europa que por sinal é enorme.
-Pois a menina tem toda a razão. Andei eu, uma vida inteira a pensar, e a penar pela Europa, e afinal vejo que este lugar está repleto. De boas intenções vaiadas. Um dia destes, o continente passa a ser aqui. Pelo jeito parece que a população aqui cresce a olhos vistos. Se excluirmos o ar, até se está bem melhor do lá em cima ou em baixo, olhe que perdi o tino, e depois, querida, podemos ter as nossas ideias, não podemos?
-Ah, claro que sim, e até fazemos manifestações, e somos ouvidos… veja uma coisa quase inaudita para mim… desde que a Ilha passou a estar em Paz, como dizem, tudo deixou de ser ouvido. Era lá para os lados de Bruxelas que cozinhavam as nossas vidas, sem sequer se dignarem a saber o nosso prato preferido. Tudo igual. Uma vergonha.
-Um horror, rica. Sabe que ao olhar para trás vejo que não passei de uma nefelibata. Nem me apercebi que estava rodeada de tartufos e mentecaptos. Fico estarrecida. Agora!
-Ai rica, que a menina fala caro. Também só pode né? Lá nas suas bandas são todos bem-falantes e pouco mais…Um país de linguajar pomposo para esconder a pobreza de…
Ouve-se um estrondo, seguida de uma algazarra, logo sobreposta por uma voz imperiosa. As duas almas calam-se. Escutam. Então a alma lusa, aflita contrapõe:
-Ó rica, ó rica, cale-se que vem aí o meu chefe, deve ser engano, mas se me apanha a falar estas coisas ainda me despromove e …
Lá vou parar ao quinto dos infernos! Sabe como é, não sabe, rica? Sempre à faire pendant!
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São cravos vermelhos
ResponderExcluirsenhora
orvalhados
a rasgarem neblinas
"decidi vestir a minhas ideias. Foi o fim, querida. O fim! Fui logo posta de lado, riscada e enxotada, assim à laia de mosca varejeira". Brilhante! Estavas inspirada, marota! ;) Os meus parabéns! Beijo!
ResponderExcluirehehehehehehheheeheh
ResponderExcluirnem no estado mais puro se perde o "MEDO" luso
uma perfeita delícia
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um beijo
[ se quiseres ,amanhã à noite estou disponível para "blogar" .por mim ,marcamos encontro no msn .pode ser? ]
Esplêndida capacidade de "retratar" "tipos". Como sempre, aliás. Um beijo de boas férias.
ResponderExcluirAinda nem acabei de rir
ResponderExcluirmas o pior é que é simplesmente verdade.
Beijinho
Á medos que não se perdem, como uma doença
ResponderExcluirSaudações amigas
os medos sufocam-nos
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