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Silêncio
Correr na esteira do passado ao longo do corredor da vida, beijar o vento na aragem da memória, eis o presente de quem ainda respira mas já revive a neblina. São os cinquenta. Janela semi-aberta para a meia-idade e ainda semi-fechada sobre um tempo maduro que se côa. É assim que se equilibra o tempo. Embala-se nos acordes que brotam do leitor de sonhos, o corpo desfalece na languidez do sofá verde e o olhar perpetua-se no adejar do cortinado que sincopado rodopia em passos de danças leves e aéreos. O olhar magoa-se mas memórias e os lábios entreabrem-se em húmidos rios de palavras por dizer embora por demasiado pensadas. Houve duelos interiores que pereceram na arena do coração. Houve vontades desfeitas por imposição do soprar do vento da quietude, houve desejos amordaçados por imperioso bem viver, houve sonhos abortados por necessidades ditas do quotidiano. E o tempo escoou-se por entre os dedos, como se fora a areia em peneira de criança. No rosto, chão de linhas escavadas, talismã dos anos, existe um pouco de doçura e brilho fugaz de porvir. Esse chão que pretende ser o palco de uma vida, esse mesmo chão que envelheceu antes do espírito ou até mesmo do sentir. Será possível a máscara não casar com o costume? Perscruta o ontem na busca da resposta que se dissolve na maré do presente e quem sabe, na onda do amanhã. O que vê? Tanto e simultaneamente tão pouco. Dicotomia? Não, apenas perspectiva de tanto vivido, puxado, repuxado, apaziguado e quase esquecido. Dores, gritos, tumores coarctados onde, porém a cicatriz permanece. As preces erguidas em arroubos de esperança, o acreditar no amanhã, o esperar pelo que não chegará. Tudo, tudo, curvas de um percurso de vida. Hoje pára-se e olha-se. Não se respira porque o tempo não o permite. Apenas se inspira. Pertence-se a esta nova urbe como se fora inquilino não desejado. Tem que se habitar o prédio, todavia os lances são penosos e as varandas ventosas. Opaco desceu sobre a gente já amarelecida. E a voz? A voz é mandada silenciar como se fora som monocórdico por demais dissidente em ensaio de orquestra. Torna-se óbvio, que se perdeu o estrado, mas é latente que ainda se é necessário na subsistência da precariedade do presente. Uma espécie de salvo-conduto para se continuar. Ter cinquenta ou sessenta é ter muito vivido, e ainda ter muito por viver. Não é credível a frase por julgada excedente. Ter cinquenta é ser excedente no mundo precário de hoje. Saber julgado quase obsoleto, imperfeito ou até mesmo destituído.
Na sala de sofás verdes a porta fecha o tempo. A música parou o seu débito. O cortinado deixou a dança do vai e vem. A noite sobreveio ao dia no interlúdio do pensamento deslizante. É assim que o tempo a recolheu, sentada e pensativa. Tanto ficou por fazer, tanto por dizer, e mais ainda por amar. Houve pressa e correria. Um descartar de gente, na vã e inútil procura, da alcova ou do sofá perfeito, da primazia algures no mundo. Tudo isso não está, não existe, não se atropela, não se compra, não se tem ou se burla, apenas se sente. Sentir é uma arte, um dom. Sentir não é só rir, lacrimejar, chorar, ansiar, doer, é também e sempre partilhar e dar, dar-se. É essa a chave da vida. Abrir o olhar da alma no girar da vida.
E o silêncio casa-se outra vez…
Tanto movimento. Tanto sentir. Tanto barulho. O teu tempo não é um meio tempo, é-o inteiro e íntegro. E até o silêncio o engrandece.
ResponderExcluirUm beijo.
Bela, como sempre.
Querida amiga,
ResponderExcluirBelo texto!
Todo este movimento aqui descrito, tem dentro de si uma força impressionante, um movimento de uma grande orquestra em apoteose.
Bom fim de semana!
PS:Dá uma saltada a um novo cantinho de uma amiga muito especial, onde eu também estou de parceria.
Começamos hoje, mas devagarinho iremos lhe dando alegria e cor.
Beijinhos...
http://neninadosgatos.blogspot.com/ "EU E OS GATOS"
muito bonito o texto... damo-nos e gostariamos de partilhar... realmente é a chave da vida. pena que nem sempre acertemos na fechadura.
ResponderExcluirbeijo
O tempo enquanto riqueza e não como perda...
ResponderExcluirBelíssimo.
bj
Só soube hoje ler-te com um grande suspiro.
ResponderExcluirbeijo
Belo balanço, porque para lá do que não aconteceu, há o que se Descobriu!
ResponderExcluirUma lição de vida, um tempo que valeu a pena
ResponderExcluircomo gostei.
Beijinho