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15 julho, 2008

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Urze e Giesta

(…) IX

Maria Luísa sorri por entre a liquidez que teima em inundar-lhe as pupilas. Sente um nó, não sabe se no peito, se na garganta, crê mesmo que o maldito a comprime toda. Relança o olhar ao filho mais velho e os lábios despregam-se-lhe. Tem vontade de o castigar como se fora ainda o seu menino. Dois açoites apaziguariam a tremedeira que a percorre. Tem a ira a enrolar, a enrolar.

-Bom, o melhor é levantar-me e ir até à cozinha. Os tachos ouvir-me-ão certamente. Assim o pensa, melhor o faz.

Ouve-se um cair de tampas, sons estridentes, rolados, consequentes e subsequentes à manipulação desastrada ou irada da sua dona. A fanfarra desafinada largou-se pelas bandas da cozinha e os pratos batem convulsivos num estertor estrídulo de notas arranhadas em dissonância.

-Ai Pedro, Pedro… E pensar que passava a vida a enaltecer este filho. Afinal é igual aos outros, e ainda por cima diz que está simplesmente cansado. Ai, ai que idiota! Os irmãos pelo menos nunca se taparam com a capa de Santos. A Margarida é mesmo daquele jeito, sem jeito. Mas parece que é feliz. O outro, o Afonso, agora depois de casado e pai, achou que tinha que mudar de género. Enfim. Na verdade estes tempos são demais para mim. Já não atino com todas estas mudanças. E não vale a pena tentar acompanhar, as pernas já estão demasiado cambaias para tantos solavancos.

A cólera passiva que a domina espreita o exterior. É nas facas que lhe escorregam, nos garfos que se estatelam pelo chão, que sente a desforra de um penar, há muito latente nas entranhas. A loiça já está toda metida na máquina, e em vez de se dobrar, como seria normal, é com a ponta do pé que levanta a porta, de seguida o joelho empurra-a, fechando-a. Mais um movimento inusitado nesta mulher quase serena.

-Raios partam esta vida… mas que mal fiz eu para ter uns filhos assim…! Labutei que nem uma moira, sacrifiquei-me, logo agora quando pensava poder descansar, estes estropícios, sim estropícios vêm dar-me cabo dos dias com as suas “inadaptações”. Santo Deus… estou farta!

Num gesto inusitado, num arroubo incomum, Maria Luísa dá um pontapé no caixote do lixo que se entorna pelo chão.

-Só me faltava mais esta ter que apanhar o lixo, nem a propósito…

A inércia tomou conta dos seus resmungos. Sente um pouco de alívio, sente que o seu peito despejou umas quantas queixas mas que o desengano se mantém. Mãe, que é mãe, sempre ajeita as notícias, mas dentro de si, elas entrechocam-se até o tempo as acomodar nas prateleiras dos afectos. Por ora, Maria Luísa, ainda procura o espaço, em tempo, chegará o lugar exacto, e só muito depois, o sorriso e a famigerada auto-consolação: “Afinal não foi o primeiro nem será o único”. E ponto final, fecha-se a gaveta. Há que abrir outra. Porém por ora, as emoções estão ainda à flor da pele…

- Bem, e ainda não acabou por hoje, vem aí a Margarida mais a Inês. Com que cara de pau lhes vou dizer, sobretudo à Margarida… Sempre tenho cada engulho… e logo a ela!

-Mãezinha, o que se passa, agora fala sozinha?

-Pedro és tu que me pões assim. Filho, não estou ainda em mim… juro que não. Mas é só uma coisa passageira, não é? Um arrufo? Ai, os meus netos!

-Mãezinha, não sei se é passageiro ou não, não sei. Sei que preciso, que precisamos de tempo. É isso. Por favor não faça drama de uma coisa natural.

-Natural? Pois, pois… não me digas mais nada. Vai ter com o teu pai, vocês homens nestas alturas entendem-se melhor. São da mesma massa… Coitada da Isabel...tão boa rapariga, boa mãe, esplêndida profissional, mulher interessantíssima e… agora.

- O paizinho disse-me que a Margarida vem cá passar o fim-de-semana e que a Inês vem com ela. Há séculos que não vejo a minha sobrinha. Afinal via-a nascer.

- Só desgostos é o que vocês me têm dado. A tua irmã, depois o teu irmão, agora tu. Nem sei como tenho cara…

-Mãezinha, não percebo porquê tanto drama. Já se esqueceu de todas as outras e muitas alegrias que lhe demos os três. Esqueceu-se… ou faz que se esqueceu. Nós somos vossos filhos, mas não somos vossas cópias, somos diferentes, vivemos noutro tempo, sentimos sem rótulo de embalagem. Quando o embrulho é desatado apenas aproveitamos o que precisamos, não queremos o papel nem o laço para toda a vida, mesmo porque que o papel se vai rasgando e a fita desfiando. Percebe-me, mãezinha? O casamento é isso, um embrulho. Cada um desata conforme sabe e gosta.

-Ai é? Um embrulho? Muito me contas. O melhor é não dizeres mais nada. Peço-te.

- Como queira. Mas é a minha decisão.

Sai da cozinha encolhendo os ombros, meneando a cabeça e de rosto fechado. Aquele ar calmo e simpático, apanágio da sua pessoa, parece ter-se evaporado. Há uma nuvem espessa nas pupilas que as tornam cinzentas escuras como se uma trovoada se acercasse tocada pelo vento forte do norte. Aquele que trás o frio e a chuva. O tempo dito de borrasca.

Ouve-se o toque do badalo no portão do jardim. Sorri por entre o furacão que espreita às janelas do seu sentir. A sua irmã sempre previsível, igual e turbulenta. A única pessoa na família que sempre puxou o badalo do portão do jardim, que sempre se fez entrar por aí, desdenhando a porta principal. Margarida que desde pequena sempre foi avessa ao padrão. Nasceu quase assim. Ainda se lembra dela bem pequenina e sempre independente. Apesar de ser a menina, era bem mais rebelde do que os seus dois irmãos. A única que enfrentou o pai e lhe desobedeceu acintosamente. A sua força de carácter foi sempre um mistério para Pedro. Nunca percebeu lá muito bem, onde é que aqueles dez réis de gente fora buscar tanta força, raiva, altivez e independência. Porém, e se bem conhecia a sua irmã, o reverso de todo aquela personalidade era um bom pedaço de manteiga bem mole.. Quem lhe soubesse tocar as cordas do violino da sensibilidade tinha tudo o que queria. Era certo, que o pai tinha muito orgulho no seu carácter e vida profissional, não tanto na sua vida pessoal. Houvera sempre um constrangimento no relacionamento entre mãe e filha, ela não aceitava a maneira acintosa de Margarida, a sua frontalidade pessoal, o seu desdém pelas convenções, o encolher de ombros, a fuga aos paradigmas que Maria Luísa tinha como certos, a falta de sentimento de culpa, o que parecia ser, a seus olhos, lacuna grave no carácter da filha. Os preconceitos de laivos burgueses que geriam o mundo de Maria Luísa, e contra os quais Margarida sempre se rebelara, levando a dela a à avante. A relação mãe-filha mais do que conflituosa fora sempre táctica.

Pedro respira fundo e desde para o jardim. Margarida sempre lhe dará um pouco daquela alegria que ele bem precisa.

No alto das escadas que dão acesso ao jardim já Maria Luísa fala com a filha e neta.

Calmamente desce e coloca-se a meio caminho. Uma estratégia de batalha que aprendera e o precavia de golpes mais profundos.

-Olá Margarida, bons olhos te vejam. E a Inês, caramba sobrinha. O tempo passa!

-Olha pra ele, a fazer-se de importante. Por acaso não sabes onde vivo? Sabes, não sabes. Eu é que não tenho vida, e depois nunca fui dessas coisas, já sabem.

-Olá tio. A tia e os primos estão cá? Vou já ter com eles. Estão lá em cima?

-Não, minha querida. Vim sozinho. Estão bem, todos finos e rijos.


Margarida olha directamente nos olhos do irmão. Sustenta-lhe o olhar, lê tudo o que tinha para ler. Não precisa de mais. Pertence ao singular grupo daquelas pessoas que percebem tudo sem as palavras. Estende-lhe as mãos e estreita as dele nas suas. Um sorriso de lábios vermelhos aquece o constrangimento sub-reptício que pairou por momentos. Há luz e força nas suas pupilas. Margarida ágil, senhora de si, dá um braço a Pedro e juntos entram em casa. Há cumplicidade . O tempo da revelação virá...

Eines Tages (from Madame Butterfly) - James Last

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Posted by Picasa

5 comentários:

  1. Como sempre, ler-te é um prazer imenso. Como é verdade esse sentimento que carregamos os fardos das vidas dos nossos filhos, quando já devíamos ter tempo para nós. São diferentes, todos somos diferentes.
    Um pedaço de vida, este teu romance. Que mais posso chamar-lhe?

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  2. A Maria Laura tem razão, apesar de nunca ter pensado, como mãe, nos termos em que a tua Maria Luísa o faz.

    Beijinho

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  3. o retorno sempre apetecido ao bem escrever/ler


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    um beijo

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  4. Enquanto espero a operação aos olhos padeço de pouca leitura.

    Que bom chegar aqui e ter um pratinho feito e com letras grandes, de boa escrita.

    :)

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