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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

21 julho, 2007

O Miúdo


Corre vivo na calçada. Pé aqui, pé acolá. Carrega no olhar o desatino da idade. Não vê, olha.Está atrasado, como sempre. Ai, o maldito do jogo. As horas. Só na escola é que não andam… uma seca…Agora quando um gajo se está a divertir… salta.

Lá vai a mãe… arengar e o pai a fazer que não ouve e depois., já se sabe…

Entra pelos fundos, pé ante pé… nada… até agora…parece que ninguém deu pelo atraso. Rápido corre para a casa de banho. Sempre se poderá desculpar… pois…

Empata uns minutos, penteia-se. Abre a porta e apresenta-se na cozinha, assobiando.

Os tachos dançam no fogão sobre o lume vivo. O cheiro abre-lhe as narinas e a fome esquecida rebenta.

-Ó mãe, ainda demora?

-Ó meu malandro, onde é que andaste, isto é horas?

-Horas? Atão tenho estado na casa de banho… até me penteei, e agora vem ralhar-me, esta agora…

Desconfiada, a mãe, figura sólida, mãos fortes, boca em trejeito e olhar doce, volta-se de novo para a mesa onde faltava o cesto do pão. O miúdo suspira num pestanejar de alívio. Desta, safei-me, pensa.

Os tachos já descansam na mesa. A família come. Pai, mãe e dois rapazes e uma rapariga. Uma prolezita, como diz a mãe. Um carrego, nestes tempos, afirma o pai. Uns chatos diz a ,filha. Uma parva, dizem os irmãos. Vá-se, lá saber, quem tem razão.

O miúdo engole com avidez. O estômago, aos onze anos é roto. A colher sobe e desce aflitivamente depressa. A sopa, já mostra o fundo do prato. A mãe para e olha para os rebentos. Três cabeças escuras, três pares de olhos da cor da azeitona. São lindos, os seus filhos. O mais fraquito é o Paulito. Mas também, nunca para quieto.

Sempre a zanzar. O demo do rapaz, mas é tão esperto. Leva a palma ao mais velho, que é todo aplicado e senhor do seu nariz. Mas o Paulito o seu pinto, é mesmo levado da breca. É a alegria da casa. A arrelia do pai.

E depois é uma meiguice. Nada como a sua Anabela sempre arisca, sempre enrugada. Boa filha, mas sempre do avesso com tudo e todos. O Paulito, não. Pode-se ralhar-lhe, castigar dar-lhe uns estrelotes que ele logo a seguir está a rir e a fazê-las… Um castiço…

Está em pé. A janta acabou. O pai já está a vestir o casaco para ir ao café da esquina. A mãe e a irmã arrumam a cozinha. E ele,?... ala que se faz tarde.

Corre num desvario para a rua. Ainda é dia. O Zé, o Júlio e Alexandre, devem estar achegar. Dá para uns chutozitos… . Pensa. Tem teste amanhã de História…uma chatice. Devia estudar… mas os stores são porreirinhos, e na aula de revisão fazem as perguntas todas, as que vão sair no teste. É só estar com as orelhas bem abertas. Depois, não é marrão. Uma positiva basta. E ele também não quer ser engenheiro como trouxa do irmão que nem sabe direito jogar bola. Coitado. Ele vai ser jogador de futebol, como o Cristiano Ronaldo. Dizem-lhe …que é bom… E depois vai ser rico… muito. Não precisa de estudar muito, só até ao nono. Mesmo assim, já é de mais. Por ele, era já amanhã que saía da escola… Todo o dia, que seca… sempre a ouvir falar.

-Ó Zé, olha este passe… tás a ver?

-É pá… faz outra vez, fogo…!

E o miúdo gira, corre, torce… o mundo corre-lhe nos pés. Boca aberta engolindo o vento, olhar com garra, cabelo suado, rosto vermelho… ali vai ele.

Já deitado, enrola-se no lençol, enterra a cabeça na almofada, dobra-se e estica o pé esquerdo. Como se fora chutar… quem sabe? Talvez sonhe com o maior golo do mundo.,

Aquele mesmo com que outro miúdo também um dia sonhou...

Sonho Real?





23 comentários:

Anônimo disse...

Gosto muito de Modigliani, e acho que esta obra se coaduna muito bem com o texto. Bom fim-de-semana!

Gasolina disse...

Excelente trabalho!

Se a tua poesia já me encantava não saio menos maravilhada com este pedaço de prosa viva e colorida!

Muito BEM!

Beijinho!

MS disse...

Poderia ser...

Aqui pintas com palavras os sonhos de tantos miúdos do nosso país, crianças para quem o 'sonho' é a paisagem possível em terras ermas e serranias!

Modgliani, esse grande poeta das cores e das formas aqui lindamente poisado neste 'The Boy (Youth in Blue Jacket)' transpira todo esse sonho juvenil.

Muito sensibilizada por todo este último tempo q fraterna companhia me tens feito, e por isso, gostaria [se quiseres, se te sentires bem com o gesto] que passasses em 'fragmentos'

bjs e bom f-s!

Teresa Durães disse...

nunca aqui tinha passado, penso, e gostei bastante do que li

tenho andado ainda pouco na net

tentarei ser mais assídua (aqui e em todo o lado :((( )

boa tarde

Beatriz disse...

O sonho parece-me bem real. Tem as raízes ideais, o solo humilde perfeito para crescer. Se converge para a realidade ou não é que é díficl dizer. Sortes arbitrárias... Vidas poéticas e literárias que nem sempre os deixam viver felizes para sempre, conforme os seus desejos de meninos

:)
Obrigada pelas visitas.Volta sempre. Tenho gosto.

Shelyak disse...

Retratos da vida real...acaba por ser, de uma forma ou outra...
Um beijinho para ti:)

Mário Margaride disse...

Belíssimo texto, querida amiga!

Estou maravilhado, com este lindo espaço.

Beijinhos

un dress disse...

o maravilhoso universo "miúdo"...

que faz viajar até ao nosso ser miúdo(a)...!


lindo!:)




beijO

carteiro disse...

Real ou não... importante é sempre o sonho e a bela capacidade de sonhar! Onde os problemas ganham (quase) sempre um relevo de minoria e onde a felicidade pode multiplicar-se ou estender-se.

Gostei muito desta história :) Real ou não, faz-nos sonhar!

António Miguel Miranda disse...

Divulgação

Mais um Blog que virou livro!

www.camaradachoco.blogspot.com

C Valente disse...

Bom texto, retrato adequado, parabens
Sauda�es

Mateso disse...

arion,
Também gosto muito de Modigliani.
Obrigada pelas tuas palavras.
Bj

gasolina,
Sensibilizada pelas tuas palavras.
Um beijo.

miosotis,
A realidade de um país ..ainda adiado...
A escolha foi deliberada."Youth in a blue Jacket" coadugna-se , penso eu,com o meu Paulito.
Grata pelas tuas palavras e pelo gesto. Respondi-te lá no teu canto.
Um Obrigada de novo.
Um beijo.

Teresa Duraes,
Sensibilazada pelo olhar aqui poisado.
Um beijo.

Alice e Vicente disse...

esta miúda quando começa a escrever ,sabe o que faz ... escrever ,descrever ,na escrita ,o conto

.
.
.

fiquei aguada e quero mais

.
.

assim

.

saio e deixo.te aquele beijo que se impõeeeeeeeeeeeeeee

( ah! obrigada pela boa leitura )

Mateso disse...

Shelyak,
Sim, a realidade é retrato...
Um beijinho, também.

Mário Margaride,
Fico feliz por teres gostado.
Volta sempre.


Um beijinho.

Mateso disse...

Beatriz,
A realidade ainda é muito palpável... em certas terras deste país.. . demasiado verídica!
Bj.

Un-dress,
A viajem , repetida em gerações de
" Terras do demo" assim chamadas pelo poeta... Talvez, no amanhã ...
a viagam exterior seja diferente.
Um obrigada
Bj.

CNS disse...

Li, reli...Delicioso sonho. Lindo!
Bjs

Gasolina disse...

Mateso Azul,

Apenas para te desejar um inicio de semana em paz e com muitos sorrisos.

Beijinho.

Mateso disse...

Carteiro,
Grata pelas tuas palavras. Sonhar é látego que muitas vezes no faz avançar...
Bj.

C Valente,
Obrigada pelas tuas palavras. Fico feliz.

Gabriela martins,
Sensibilizada . Tentarei ...
Um beijo doce.

CNS
Feliz por gostares.
Uma beijoca

Mário Margaride disse...

Querida amiga,

Uma excelente semana, e um beijinho para ti.

Abssinto disse...

Que bonito relato. Cenas de infância. Quanto ao Modi, qualquer quadro dele emociona-me. Face ao presente texto este emocionou-me ainda mais.

bj

as velas ardem ate ao fim disse...

Pelo menos um sonho...

bjinhos e boa semana

Plum disse...

Um post simplesmente maravilhoso!Muito bom vir aqui!***

Mateso disse...

Abssinto,
Grata pelas palavras. O Modi, é a vida em quadros.
Bj.

As velas ardem até ao fim,
Um entre muitos, eles são tantos... os dos miúdos.
Boa semana, também.
Bjinhos

Mário Margaride e Gasolina,
Boa semana também para vós.. ainda trabalho...

Plum,
Obrigada. Gosto que tenhas gostado.
Bjinho.