É Impossível que o Tempo Actual não Seja o Amanhecer doutra Era
Miguel Torga, in "Diário (1942)"
(...É impossível que o tempo actual não seja o amanhecer doutra era, onde os homens signifiquem apenas um instinto às ordens da primeira solicitação. Tudo quanto era coerência, dignidade, hombridade, respeito humano, foi-se. Os dois ou três casos pessoais que conheço do século passado, levam-me a concluir que era uma gente naturalmente cheia de limitações, mas digna, direita, capaz de repetir no fim da vida a palavra com que se comprometera no início dela. Além disso heróica nas suas dores, sofrendo-as ao mesmo tempo com a tristeza do animal e a grandeza da pessoa. Agora é esta ferocidade que se vê, esta coragem que não dá para deixar abrir um panarício ou parir um filho sem anestesia, esta tartufice, que a gente chega a perguntar que diferença haverá entre uma humanidade que é daqui, dali, de acolá, conforme a brisa, e uma colónia de bichos que sentem a humidade ou o cheiro do alimento de certo lado, e não têm mais nenhuma hesitação nem mais nenhum entrave...)
.Miguel Torga, in "Diário (1942)" .
"...És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças." Miguel Torga
06 abril, 2014
19 março, 2014
Hoje é Dia do Pai
Hoje é dia do Pai.
Já lá vão seis anos. Redondos.,
quiçá nem tão redondos assim. Tem dias em que têm esquadria, imperfeita é
certa, mas têm-na.
Hoje é um dia de esquadria
imperfeita. Não é redondo porque o círculo é imperfeito. A imperfeição da ausência.
Perceções que se ausentam. Pastel tornado aguarela que, se dilui- nas gotas do
tempo.
Hoje é dia do pai.
Não é simples rotina, nem
obrigatoriedade social na recordação e muito menos o assinalar conspícuo de uma
data. Na verdade, Pai, é lembrara-a tua essência de ser, aquilo que ficou em mim,
no melhor de mim. Não sei se será vaidade, arrogância, sei apenas que sou parte
de ti em sentir. Ser filha é ser carne mas é também, ser rio de sentires, ser alegria
ou lágrima. É a festa da vida gerada um dia, é a memória viva do passado em
presente.
Hoje é dia do pai.
Não acredito na rotina das
memórias nem nas frases perdidas aqui e ali, creio e sei, que as palavras
quando sentidas, quando feridas de amor povoam a memória do coração. Creio,
pai, que o meu coração possui a memória dos dias em que viveste, os claros, os
cinzentos e os negros. No teu, no nosso caleidoscópio de vida.
Hoje é dio do pai e,
Lá onde te habita o espirito
recebe simplesmente um beijo, o meu.
Sorrio e aceno-te.
Até outro dia, Pai.
21 fevereiro, 2014
Mundo Melhor
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Do outro
lado da Europa ainda troavam os canhões, os corpos dos jovens frutificavam as
terras como se fossem adubo lançado às sementeiras. A Europa, o mundo
colhiam-se sobre si. Os olhares rotos de dor humedeciam, os rostos fechados
onde os sorrisos borboletavam sem poisar. Era o mundo dos idos de 39-45.
Na
plataforma, a criança, dez reis de gente, pegando na mala já vazia de presente
mas cheia de futuro, pergunta numa vozinha meia engasgada.- “Senhor passa aqui o
comboio para a Terra da Verdade?
O homem olha
para baixo e num quase sorriso, num quase esgar, responde:- Claro, meu filho, a
terra da verdade é do outro lado, junto ao pôr do sol, mesmo na rua em que a
lua nasce.-
-E qual é o
comboio? Posso esperar?
- Claro, meu
rapaz. Senta-te no banco. O comboio está atrasado.
O rapazinho
responde contente:- Obrigado, Senhor
- Mas, meu
rapaz, não sei se deixam as crianças viajar sozinhas. O comboio é muito grande
e tu ainda te podes perder.
-Não.
Senhor, não pense nisso. Sou pequeno mas ando há muito tempo á procura da Terra
da Verdade. E ainda não a encontrei. Fica sempre do outro lado. Quando estou
quase a alcançar, a Terra da Verdade desaparece, perde-se.,
-Ah, meu
filho. É uma terra de poucos homens, muito poucos.
- Eu sei.
Por isso é que quero lá chegar para crescer, para ser diferente. Já é tempo de
mudar.
-Vais ter
que esperar, meu rapaz. Mudar é muito difícil.
-Eu espero. Um
dia vou poder abrir a minha mala e enchê-la de futuro. Sabes? Roubaram-nos,
roubaram tanto que a minha mala ficou vazia de presente ,e eu agora só posso
esperar pelo comboio para a outra terra. Percebes?
-Sim percebo
mas eu sou velho, já não subo ao comboio. Só o vejo passar apitando.Passa meio cheio, meio vazio. Ultimamente passa tão vazio...
-Eu sei.
Olha, adeus, meu velho. Eu vou esperar. A minha mala vai-se encher.
Adeus.
O velho,
apertou o capote, levou os dedos ao boné e rapidamente desceu-a até aos olhos
vidrados e opacos. Também ele estava vazio de esperança. O filho caíra na terra
mãe. Não havia sonho, havia amargura na alma.
Hoje, o
século dobrou. Não morrem de balas, hoje morre-se de não atos. O homem, já não
a criança, continua à espera na estação pelo comboio para a Terra da Verdade.
Irá parar?
17 fevereiro, 2014
Vicente
As estórias vestem-se e
despem-se de acordo com o vento da alma. Há dias em que a roupa pesa, outros,
porém, em que a nudez brilha. Nesta veste que despe, Vicente vestiu o capote,
calçou as galochas e fez-se aos dias.
Na calçada varrida de lama não havia o palpitar
das sentires, nem o correr dos passos vivos, nem o matraquear das vozes
perdidas e muito menos o buzinar dos carros apressados. Havia sim, a imensa
neblina da vida. Vicente de galochas e capote pardo carregou pesadamente os
passos na lama, trilhou as ruas vazias, apertou os lábios num esgar perdido e,
sem alma, correu nas margens do rio frio. Depois, perdida mas afincadamente
despiu o capote, descalçou as galochas e mergulhou. Mergulhou na corrente.
Uns dizem que se afogou, outros dizem que
nadou até à outra margem, conta-se ainda que nas redondezas, do outro lado do
rio, vive um tal de Vicente, Homem-Novo e justo que cresce na medida dos dias
,será?
Até hoje não foi encontrada a alma do
capote nem das galochas de nome Vicente.
. .
09 fevereiro, 2014
Uma Casa na Escuridão
Uma Casa na Escuridão
«Então, fechei os olhos com força e fixei-me no que via.
Esta era uma das coisas que fazia desde pequeno, que tinha descoberto por acaso
e que imaginava ser eu a única pessoa a fazer no mundo. Fechava os olhos e via.
Via o que se vê com os olhos fechados (...) Isto é o que se vê quando fechados
os olhos e continuamos a ver: a cor negra e os pequenos seres de luz que a
habitam. E não se consegue olhar fixamente nem para o negro nem para a luz. Os
pontos ou as linhas ou as figuras de luz fogem da atenção. O negro é tão
absoluto, tão profundo, tão infinito que o olhar avança por ele sem encontrar
um lugar onde possa deter-se. Mas, naquela noite, comecei a distinguir algo
dentro desse negro.»
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