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06 abril, 2008




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As Redes

O cheiro a peixe impregna o corpo. O ar bebe-se de sal mais da fedentina. Sente-se a pobreza em cada passo respirado. As casas baixas, despidas, as ruas estreitas, os quintais cinzentos de flores e florescidos de canas, varapaus, redes e outras ferramentas de água. O poente tinge de amarelo reflexo a terra. O areal luz-se por entre os últimos raios, tomando aquela cor de marfim velho. Sopram grãos de quando em vez, sempre que o vento decide assobiar. O mar, esse bate-se no lamuriar rolado das ondas, que em remanso vem cuspir as últimas salivas no areal. Recolhe-se rápido para outra vez e mais outra, sempre continuamente, se salivar. As águas tomam aquele tom escuro do sono onde a luz se despede do dia, e se alberga no limbo da noite por vir. O céu entorna-se de tons alaranjados e azuis numa textura entrelaçada de aguarela e espátula.

Lentamente o barco rema em direcção à praia. Largo como um ventre inchado bebendo os salpicos do desfazer das ondas, grosso de madeira pintada a vermelho, azul, com riscas e estrelinhas amarelas e brancas. Uma fugaz apontamento de cor na superfície revolta das águas. Dentro sentados ao remos dois homens. O boné tapa-lhes o olhar, mas o rosto é esquartejado a rugas duras e áridas. O tronco é sólido e desenvolvido quase um quadrado de força motriz. Os pés descalços e salinos descansam no fundo líquido do barquito bebendo-se de frescura, qual alívio para a dureza das solas ásperas e calosas do tempo mais da pobreza. Regressam da faina. Os cestos cheios de prata mexida dilatam-se ao movimento do peixe ainda vivo. As redes descansam pelo barco num emaranhado de fios mais de cruzes, cortiças e minúsculas bóias. E os remos chapinham as águas verdes escuras. Lá vem onda acima, lá vai onda abaixo. O carrossel líquido, imenso e espumado faz ondear a madeira pintada, onde sentados tal como se fora em corcel de madeira, os dois pescadores deixam-se levar até ao desfazer da viagem.

Desliza o barco já em águas salivadas e baixas. Salta o Ti Jão mais o Jaquim, de calças arregaçadas entram na água que lhes chega aos joelhos curtidos. Puxam o barco para terra. Os pés enterram-se na areia húmida ainda à pouco beijada pela espuma. O areal está quase vazio. Há lisura corrida na praia. Apenas as patas das gaivotas deixaram rasto aqui e ali. Mais ao, longe, um barco descansa. Chegou mais cedo.

Atiram as cestas, puxam as redes, arrumam os remos e entre gritos o barco é puxado para o areal. As mulheres vão-se chegando. Os aventais enrolam as mãos. As saias, garridas ou pretas conforme a sorte do mar, bamboleiam no andar. Os pés são largos, salinos e rápidos. Conversa aqui e ali, respostas vivas a perguntas por fazer, gargalhadas ásperas de pressa ou lamúrias gastos de tempo fazem dos sons espargidos na praia, o eco do mar.

-Ai, Ti Jão a faina foi fraca, na foi?

-Atão não? Na vê? Coisa ruim!

-Ai, isto tá brabo, ai tá, tá!

-Na me diga nada, ó Zeza. Isto é um enguiço. Mal dá pró naco. Vem aí muita fome come antigamente, ai vai, vai. Puta de vida, esta!

-Ó Jaquim enche a caixa mais um cadinho… ó home na sejas de dedes curtes…

-Tá Carminha da minh’alma, dou-te tudo, mas já sabes… e pisca-lhe o olho num adejar de brejeirice...

-Ah, atão na querias, atão não. Ó home ‘xerga-te, olha o atrevide…

As cestas esvaziaram-se e o mulherio debandou de canastra à cabeça meneando as ancas enquanto as mãos livres dançavam as palavras ditas. Os dois homens estão sós. A praia e o mar são seus. Há tanto para fazer. A noite vai caindo por entre o voo das ondas. O sol quase que fecha os últimos raios no horizonte. Rápidos puxam as redes, esticam-nas, deixando-as a secar. Caminham, juntos, praia fora. As palavras são escassas, meros assentimentos, meros monossílabos. Despedem-se com um aceno.

Um vai eito até à taberna beber o copo de cinco, jogar uma partidinha, falar do seu mar. O outro, de pés cansados dirige-se para a casita. Esperam-no os netos. Mais não tem. Mulher e filhos já foram. Eles tragados pelo seu mar, ela comida pela dor. Agora é a sua neta que lhe chega o pão. Em cada dia de faina, ele, João Carapicheiro, Ti Jão, prós amigos, lembra-se dos outros dias, daqueles de ontem, quando ainda sonhava com uma traineira de peixe, quando ainda acreditava que o mar seria dele. Hoje os ombros vergam-se ao peso dos desgostos, à míngua dos afectos e ao soluçar do amanhã. Os netos são a sua força, as redes do seu sentir, malhas tecidas da vida, remendadas sempre que necessário mas perenes.

A porta abre-se. Um sorriso, de duas covinhas larocas, beija-o. Uns braços, em redor do pescoço tisnado de sol, apertam-no.

-Vô nunca mais vinha. Tava com tanto medinho…

-O mar estava miúdo. Quisemos trazer alguma coisinha e lidamos mais um tempinho.

-Olhe venha ver o que eu fiz, venha, depressa.

Leva-o puxado até às traseiras, até aquela espécie de quintal. Estendida no chão, uma rede emalhada, pequena mas perfeita, suspira por entre os ainda brancos e quase elásticos losangos. Os flutuadores quais franjas descaem no seu peso. Sorri à sua pequena, dá lhe um beijo na cabeça morena de cheiro a ondas.

Amanhã o mar vestirá aquela coberta, promete-lhe. Juntos atravessam a porta. O dia fecha-se além sobre o mar. A rede da noite desce. Lá dentro, na cozinha estreita e escura os cachuchos espevitam a fome.

Foi assim mais um dia….