Quem sou eu

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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

09 setembro, 2008

Visto-me…





Visto-me de Setembro em cada ano. Visto-me da neblina encaracolada na luz do dia, e nos orvalhos da noite. Visto-me da liquidez do tempo e da convulsão das cores. Visto-me antes de o Inverno chegar...Sim visto-me frágil, trémula, nas manhãs sonoras de adeus, quando a alma, suspira no corpo descansado, de repoiso. Visto-me, não de casacos ou outras peças comezinhas, visto-me de vida, da que palpita lá fora, qual capa ondulando ao vento do desejo. Visto-me de ânsia, porque o meu corpo estremece. Nicho de cada estação, onde o cálice frutifica em ondas plangentes de sentir. Freme a pele, soluça o vento, sorri o tempo porque me Setembro.

Setembro-me, porque estou nua de tempo e cores. Quero para mim os rosas quentes, os dourados eternos, os térreos flamejantes e o verde que me adoça e beija os pés. Quero o azul por cabelo, já que as nuvens são os meus caracóis, soltos em tufos de algodão macio. Quero a brisa por carícia, afagando-me o pescoço em látegos de deleite incandescente. Quero rebolar na terra húmida, sentir o húmus, o cheiro, a voz, a essência do mundo. Quero beber na fonte o orvalho do dia e da noite, trincar os bagos dourados, deixar escorrer pelo corpo o líquido doce e morno, lambuzar-me de néctar, saciar-me de vida, calcar as cores e cobrir-me de grinaldas purpúreas de desejo e correr, correr pelas encostas engalanadas de cores, e quentes de luz. Quero colher o tempo, a luz, a vida em Setembro.

Respiro saciada. O vento partiu, a brisa beijou-me.

Balade Pour Adeline - Richard Clayderman


08 setembro, 2008

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Neste céu cinzento,
Que me envolve
Vejo as aves que planam.

Elas rodopiam,
Sobem,
Descem,
Como num louco carrossel

Em bandos
De ondas,
Num vai e vem, constante
Elas correm...
Como um corcel.

E eu, parado
Olho, observo...
Com o meu olhar de vazio.

E elas, enamoradas
Em duetos, desejados
Escrevem no ar
Passos de dança
Orquestrados...
Em valsas,
Em tangos,
Ou outras danças de voltear

Elas passeiam-se no ar
Perdidas, em abraços
De tanto namorar.

E eu perdido, neste jardim
Já nem me encontro,
Em mim,
De tanto ficar tonto
Destes voares loucos
Que se desprendem de mim.
Em pequenos sonos
De loucos sonhos
Onde passo, tantas vezes
Por ti...

Augusto Gil

Chopin Waltz No. 14 in E minor - Chopin
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03 setembro, 2008


A arte é a mão direita da natureza. A última só nos deu o ser, mas a primeira tornou-nos homens.


.Swan Lake No. 13 - Dance of The Swans - The London Fox Orchestra
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20 agosto, 2008



O Candelabro Dourado.

Eça nico-doces, esticado, augusto e elegante lança um olhar supérfluo ao ambiente. Há um pouco de déjà vu, que o torna afectado pelo excesso de trejeito. Porém lá no fundo, bem no fundo, brilha e rebrilha a pupila numa ironia captada ao pormenor. O nosso homem pára, e com um movimento todo ele em estribilho de dernière mode, sorrindo, aqui e ali, senta-se na mesa da esquerda mesmo junto ao passeio, aliás a única, mesmo ali defronte do táxi branco, um Mercedes forte de som rouco, apanágio de um motor fiável. Eça, cofia o bigode, encosta a bengala, sacode a ruga imperceptível da calça riscada e pega no monóculo, já em desuso mas tão chic. A tarde é morna. O calor veste o ar que sopra em brisa fugaz. Não pode varrer o tempo. Olha em redor, o caos organizado, próprio de quem está sempre em guarda. -Desde os idos de 1900, que o mundo que é mundo não muda mesmo - pensa o nosso elegante.

Uma dama de tons ocres aproxima-se. Sobressai-lhe o cinzento e o branco da cabeça. Há algo de imponente, e todavia de doce no feminino, que o olha desassombrada. Dizem que se chama Meir, Golda. Não possui o encanto franzino do personagem sentado, antes a solidez da luta perspicaz da vida. O nosso elegante levanta-se quando a dama se aproxima. Inclina-se respeitosamente. Sentam-se. Sorriem e estendem as mãos que se tocam. Um arrolhar de sons florescidos em lábios sorridentes, o eco perceptível da conversa é carregado pela onda de som até mim.

- Shalom meu querido Eça, há que séculos o não via nem ouvia…Finalmente ei-lo entre nós.

-Minha querida Golda, continua sempre afável. Um autêntico maná saído do Yom Kippur…

Golda solta uma forte e saborosa gargalhada. Depois recompondo-se, diz ainda, com as lágrimas a redobrarem-lhe o brilho das pupilas.

-Ó meu querido Eça, já sentia falta do seu humor corrosivo. Ai a falta que me tem feito, nem calcula.

-Pois, minha querida não me parece. Pelo reboliço que tem feito, não me parece que tenha tido tempo para se sentir infeliz…

-Não seja impertinente.

-Impertinente, eu? Já me parece um dos conselheiros lá do meu burgo… adiante. Mas Golda diga-me lá, porque é que anda nesse afã, que até me aprece o corridinho do Algarve…São as anexações, as guerrinhas, as perseguições, as extradições, um corre-corre de atropelos que me espantam.

-Ora, ora meu caro, vê-se mesmo que não conhece a nossa Torá. ”Porque Yah escolheu para si Yaacov e a Israel para seu tesouro particular” (salmo 135:4) …

-Não me diga, minha querida…- e o nosso querido Eça, deixa cair o monóculo, pestaneja, não do sol, mas da aberração e meio incrédulo, olha rispidamente a sua interlocutora acrescentando:

-Ora Golda não me faça crer, que todo este zurzir de pessoas, todo este fogo de raiva, todo este mal -estar no mundo, toda esta onda de ódio, todos os massacres que espirram sangue, infectando o ar de todos nós, a putrefacção dos sentimentos nobres, a primeira noção de irmão, companheiro, enfim o principio do homem, é pura e simplesmente retalhada e vituperada numa interpretação não humana mas antes politica. Não queira, minha querida, fazer-me acreditar que a sua Torá diz isso. Esta instabilidade na chave do mundo debita-se, porque algures, alguém acéfalo fez uma leitura de acordo com a sua necessidade bélica, política ou económica, jamais humana!

-Eça, meu amigo, mundo que é mundo, político que é político interpreta sempre de acordo com o que vai no gabinete. O gabinete, o partido, os homens, a politica, os interesses, o prestígio, o poder em resumo são a nossa Menorah. O querido amigo ainda é muito inocente, pese toda a sua diatribe linguística, o seu fino humor, a sua perspicácia, o seu savoir faire de mundo.

-Mas, Golda… embora laico, embora cínico, embora impuro, recordo sempre que matar os “homens e as mulheres de Amalek” significa a destruição. Porém não são os “filhos de Amalek” as sementes de dúvida que nos varrem a mente, não mais que os elos de cepticismo, de paixões abortadas, de ódios viscerais, de pensamentos néscios aviltantes na essência, de quereres retorcidos pelo ferro da vida, de tudo o que não somos e gostaríamos de ser, que perdido se torna na nossa negação de vida, são esses os”filhos de Amalek” que carece alojar no retábulo da criação, em vez de o depurar em acto de barbárie.

- “Isso se escreverá para a geração futura; e o povo que se criar louvará Yah”.- Belo, meu caro, e escandalosamente no silêncio quase tórrido do meio-dia lança ao ar uma gargalhada de desdém ao mesmo tempo que bate palmas.

-…?

-Oiça e memorize. Não seja pio, não seja crédulo, não seja sonhador. Eu e tantos outros políticos, tantos outros homens deste mundo, aos quais cabe a tarefa de gerir a vontade dos outros homens, simplesmente nos guiamos por este lema: “O mundo é de Deus, mas Ele aluga-o aos valentes”. Pode-lhe parecer cru, bárbaro mas no nosso mundo, neste mundo, que mesmo ao meu lado gira na sua fealdade de alma, naquele onde se mata, se morre, se nasce e se vive. Nesse mesmo, onde você e eu nos sentamos numa mesa de uma foto desbotada de vida, nesse mundo, dizia-lhe eu, já não existe espaço nem vento de concórdia, existem antes rios de desejo, águas de poder, ondas de aviltamento. A nossa recriação humana dos sete vícios. A Menorah moderna.

O sol a pique desfaz uma, não duas, pequenas sombras. Uma miragem, que em breve se desvanece, apenas coloco os meus óculos. Tudo está imutável. A terra continua a respirar.

Jewish Music, - Jewish Music

13 agosto, 2008

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Um jantar

Mam’selle “poulette à la crème rouge” retorcia-se na travessa aquecida. Rodeavam-na pequenas batatinhas salpicadas e espargos gratinados. A cor dourada, o vermelho, mais o verde, davam-lhe aquele ar apetitoso que faz a saliva brotar sob a língua. As batatinhas estremeciam aos pontapés dos cotos bem tostadinhos. Os espargos, moles por natureza, nem despegavam do seu sítio. Sabiam-se inexcedíveis ao toque e gostosos no degustar. Para quê incomodarem-se? Que a comum da poulette fizesse algazarra, estava-lhe na capoeira do sangue. E no pequeno elevador, da cozinha para a copa, que antecedia a enorme sala de jantar, lá subiram eles aos solavancos, porque o dito cujo, estava assim, a modos que, enferrujado dada a falta de uso. Não é todos os dias que se servem jantares para tantos convivas.” La poulette” de peito bem recheado a lembrar o colo alto e anafado de uma prima-dona, motivada pela sua magistral beleza gastronómica, passa invejável por entre os dedos que lhe suportam o leito, melhor a travessa onde repousava lânguida e tostada. O sacolejar fazia-a sentir-se ligeiramente suada, porém, assim que respirou um pouco do ar de múltiplos odores, sentiu-se logo fresca e apetitosa. Depois é “très chic” subir de elevador até ao primeiro andar, embora estivesse um pouco demodé, mas também quem é que sabia? As outras primas poulettes que se perfilavam na mesa ordenadas de acordo com o estrato social, sentiam, também, aquele frenesim que precede a expectativa, pois que, tal como ela, iriam subir pelo velho elevador para logo serem levadas pelos criados de libré. Um desfile digno de registo. Recorda, a cozinha bem atarefada de mesa comprida, panelas luzidias, fogão crepitante e facas, muitas, compridas, largas e afiadas. Depois Tia Rosinha gorda, gordinha de grande avental branco e chapéu pregueado, redondo e alvo. O olhar de manteiga, braços de derriço, as mãos de artista que de uma simples poulette da capoeira fazia a melhor iguaria digna de honrar a mesa dos “Messieurs de Souzelas.” Mas, mais ainda do que a cozinha, ela “la poulette à la crème rouge” recordava-se sobretudo do misto de sentimentos que a alagara, ao saber, que iria viajar no velho elevador da cozinha até à copa. Havia anos que o pobre fora esquecido, pois que a cozinha passara a ser quase museu de tachos e panelões lustrosos de cobre pendurados. Um espaço novo e moderno fora instalado no andar de cima, passando a velha cozinha para as calendas gregas. Porém, naquela mesmíssima noite, a tradição tomara o seu lugar há já muito perdido, e começando pela antiga cozinha e respectivo elevador, tudo se pusera a funcionar com uma quase perfeição de locomotiva bem oleada. Porque isto é assim, casa que se preze tem elevador da cozinha para a copa e vice-versa. Os criados, criaturas de Deus, há muito que se tinham desabituado, de acordo com a evolução da espécie, das subidas e descidas até ao primeiro andar. Fora pois, lá pelos idos de 1889 que D. Antão de Souzelas mandara instalar o elevador, não para evitar o esmoer físico dos seus retesados serviçais, mas antes, pelo simples facto, de detestar comida fria, e não havendo outro modo de a conservar bem quente, senão por este processo, dada a lonjura da cozinha para a sala de jantar, aquiescera na compra e instalação de tão moderno artefacto. Não fora a excessiva elaboração de um brasão esmaltado que roubava toda a atenção, senão alento, aos que chegavam de novo, relegando para segundo plano, o “dernier cri” do casarão. Não fora por este excesso, a preciosidade mecânica teria tido toda a admiração própria dos pacóvios de província, por sinal dignos frequentadores dos salões da casa. Bem instalado no vão das escadarias que circulavam entre a cozinha e o nobre primeiro andar, o elevador desaguava numa copa bem guarnecida de serviços de vidros, baixelas e demais parafernália, ligando por meio de um arco abobadado, vestido de pesados reposteiros de veludo mel, ao digníssimo salão de degustação, alegoricamente decorado de tapeçarias e pinturas de mestres. Mas, retomando o nosso elevador, nosso como quem diz, de “Mam’selle la poulette à la crème rouge,” que por aquelas alturas já ocupara o lugar central numa simetria perfeita, na grande mesa coberta de alvo linho. Varria-a uma excitação, era uma viagem única, quase uma aventura da cozinha para a copa. Entre o sacolejar, vai que não vai de uma subida, um arredondar de ruídos, um afogar de guinchos, um retesar de cabos e finalmente uma paragem brusca, eis que chegou ao destino. Abriu-se a portinhola de madeira e mãos enluvadas retiraram a bela da travessa totalmente decorada ao claro gosto da sábia Tia Rosinha A arte nascia-lhe sob os dedos assim que pressentia repastos fidalgos, e hoje as cores tinham-se vestido de verde e vermelho numa orgia de odores apetecíveis. Mam’selle sentia-se inchada, não se percebia se era da forma, se antes da importância, que lhe servia de mote. Assim ufana, revestida de uma vaidade dourada como o tostado da sua pele, a galinha passa em revista todas as outras frangas que se dispunham pela mesa. A mania das importâncias que lhe pulsava sob a pele estaladiça tornava-a semelhante a uma daquelas tias de nariz empertigado, voz rouca e cérebro quase vazio, mas de aparência fabulosa, assim era Mam’selle la poulette. À excitação da subida juntava-se-lhe o orgulho tolo da importância. Sentia-se tão magnífica que se esquecera que em breve seria trinchada, fatiada, mastigada e engolida. Depois cairia no esquecimento. Mas que importava isso. Feliz, Mam’selle suspirava regozijada. Depois dos preliminares comuns ao cerimonial de uma refeição de libré, a sua vez chegou. Não tugiu nem mugiu, apenas se sentiu esvaziada de carnes, delapidada de articulações, enfim comida. Saciados os humores estomacais dos ilustríssimos convivas, de novo as librés inclinaram-se recolhendo as vitualhas, que em forma de ossos pululavam as travessas. Despidas de encanto, com um ar bastante descomposto, aqueles mais os restos de todas as poulettes, desceram da copa para a cozinha no velho elevador que cansado resfolegava na descida. O dia fora-lhe pesado, e nem o óleo nas juntas lhe mitigavam o esfalfamento daquele dia. As mazelas da idade se bem que disfarçadas, chegada a hora da verdade rangiam por tudo quanto era sitio, no caso, em tudo que era porca, roldana ou cabo. Os criados exaustos retiravam as travessas descuidadamente do cubículo, e despejavam os restos num grande panelão. Entre os sobejos da travessa maior, uma pele tisnada sobressaía, colada ao fundo, como se a pobre tivesse deixado incólume o invólucro para futuras receitas de tisnado. Um guia culinário digno de uma escrita à la mode como é de praxe nestas andanças.

E assim findou um jantar de poulettes e um velho elevador que embora caquéctico ainda cumpriu as suas funções. Na vida fugaz de todos nós, um pouco de óleo e de pele tisnada, por vezes, são capas coloridas de belas recordações!....

One Last Look - Robin Spielberg


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02 agosto, 2008

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.Ei-las , finalmente chegaram! Até breve.
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31 julho, 2008

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O Ascensorista

Joe, negro, sessenta anos, vestidos de verde-garrafa e amarelos polidos perfila-se junto ao elevador. O número um, o da ala central. Inclina-se ligeiramente, puxa a porta, abrindo-a ao mesmo tempo que sorri calorosamente. Murmura num timbre quente e arrastado de sulista:

-Bom dia Mr. Owens. It is a good day, isn’t it?

-Bom dia Joe. It seems so, indeed.

É um espectáculo de elegância o velho Joe. Sempre erecto, engomado, irrepreensível. Na tez cor de chocolate as rugas pregueiam-se horizontalmente na simetria dos seus trejeitos. O vinco das calças acompanha a elegância das longas pernas, que terminam nuns pés calçados de preto brilhante. O boné, onde as dragonas em ouro velho sobressaem, dá-lhe aquele ar chic dos anos quarenta em filme da MGM. A sua destreza no abrir e fechar de porta, bem como a sua natural bonomia e sorriso tornaram-no uma referência, no foyer, deste edifício imenso de trinta andares, mesmo no coração de Manhattan. Os mármores negros que revestem dois terços do imenso átrio, os metais amarelos reluzentes, as plantas verdes, brilhantes e profusas, o vidro que enobrece de luz a parte frontal da entrada, a par de um suave meddley na voz de Frank Sinatra, acrescente-se a frescura, ou amenidade, de acordo com a estação do ano, fazem deste lugar, o eleito de Joe Bellow. Hoje é o seu último dia. O elevador número um, o principal, aquele que ele viu nascer e crescer passará para outras mãos. Tem pena, mas a idade não lhe perdoa. A artrite já lhe tolhe os gestos. O esforço por vezes é doloroso, não o demonstra, mas depois em casa é a sua Mabel que lhe alivia as dores com as pomadas, mais as massagens. Chegou o dia que ele temia. Não deixa transparecer a solidão que já pressente. Ninguém parece saber que é o seu adeus. Entra no ascensor. Mr. Owens e Mr. Sutton vão para o décimo, Mrs Trevor para o décimo segundo, Mr. Parker para o décimo sete, Miss Page para o vigésimo, os outros dois cavalheiros, asiáticos por sinal, não sabe, terá que lhes inquirir. O espaço está completo. Entra, prime os botões. Sorri afável. Depois de devidamente esclarecido aperta o botão no andar, que os desconhecidos lhe solicitaram. Joe suspira. Mais uma subida, mais uma viagem. O carrossel dos seus sonhos em vertical. O número um dera-lhe a possibilidade de viajar na imaginação das subidas e descidas. As suas viagens, embora breves, eram sempre ricas em indução nas figuras que o pululavam. Joe conhecia bem, o pulsar daquele edifício, e muito das vidas dos seus personagens. Havia trinta anos que fazia viagens na vertical. Recorda o ano em que Mrs Trevor teve os seus trigémeos. Ocupava-lhe dois terços do espaço dado a sua expansão física. Por essa altura tivera que fazer mais subidas e descidas. Depois finalmente os três Bês nasceram. Bruce, Brandon e Barbara. Hoje têm vinte e dois anos! Como o tempo passou. Recorda o ainda jovem Mr. Sutton, Steve de nome, quando entrou na firma. Hoje director e sócio. Trinta anos Uma vida, a sua. Ali, no “Rox Building” viu as estações sucederam-se ao ritmo das suas viagens. Ora mais movimentadas ora mais lentas. O décimo andar era sem dúvida, a zona por excelência de paragem. Muitas vezes subiu até lá apenas para aspirar o cheiro da elegância bem como dos passos deslizantes daquele pequeno mundo: Owens, Sutton & Partners Consultores. O número um sempre se portara á altura dos seus utentes. Elegante, discreto e oleado. Não fizera birras, deslizara ora cima ora baixo ao som das necessidades pontuais das suas personagens. O velho Joe tinha orgulho dele, da sua subtileza, da elegância, da fiabilidade, da generosidade e do mundo que lhe dera no seu abrir e fechar de portas. Ele, Joe, filho do Mississípi, de gentes pobres e numerosas, imigrara para a cidade, quando na década de vinte a fome apertara de tal forma, que a sarabanda fora total. Ele e os irmãos tinham vindo para a Grande Maçã. Os anos encontraram-no em trabalhos de ocasião. E fora de degrau em degrau que chegara até ao Rox Building. Porteiro. Uma posição. Aprendera muito. Não fora só escolaridade, fora mundo. E isso não se frequenta, adquire-se. Sabia avaliar as pessoas. Aprendera a ser humilde sem ser subserviente. A gente, deste meio, detesta o servilismo sistémico, desprezam-no, podem sorrir ao inclinar constante, ao assentir repetido, mas no virar de costas existe aquele sentimento de quase desprezo ou então de sentido superior. Joe sabia, que entre os poderosos não se pode ser fraco, porque motiva o desprezo, não se deve ser altivo, porque irrita a pele e os sentidos de quem está ao lado. Aprendeu, pressentiu e evitou o excesso de aquiescência, ficando-se sempre pelo seu incontornável sorriso, um sofisma por decifrar. Manteve a sua postura erecta como se fora, o fio-de-prumo, porém sobe sempre revesti-lo de uma afectuosidade envolvente. Todos apreciavam Joe Bellow. Havia uma familiaridade dos anos, uma espécie de corrente de entendimento. Os pequenos favores que lhes pediam eram satisfeitos com sabedoria e contenção. Nem mais nem menos. O ponto exacto de viragem entre o pedir, fazer e agradecer. Um tratado de bem viver, era assim que se podia ser definido Joe Bellow, o ascensorista. Uma época que cessa hoje. A idade encheu-se dos anos, as memórias saturaram o presente, os ritmos tornaram-se contínuos, os espaços estreitaram-se e os costumes tomaram aspecto de aguarelas. Um outro século que surge vibrante na dobra da mudança incógnita. O que era já não é, o que for, poderá, talvez vir a ser. Visualiza, em seu lugar, um porto-riquenho de cabelo oleado e de estatura mais baixa, menos contido, usando um tom familiar e nada circunspecto, pelo contrário, quase de igual para igual, que irá abrir a porta e carregar nos botões. Haverá um franzir de sobrolho, um pigarrear, um ah, hum e depois… depois… tudo subirá e descerá no rolar afinado dos cabos mais das alavancas. Tal como a vida.

Joe sai. Não olha para trás. Já recorda. O ontem e o hoje já foram. Amanhã recomeça a subida do outro tempo que lhe resta.


I did it my way - Frank Sinatra


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