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Alguém que ama a vida e odeia as injustiças

13 outubro, 2023

IV
 Lança a pasta para o banco do carro enquanto se senta ao volante. Agarra-o entre as mãos como se quisesse espremer as últimas horas do dia. Não sorri. O olhar é duro. As mãos apertam com força, com toda a sua força, o volante. A raiva estala, forte, jactante. Toma conta dela. Treme. Inclina o dorso para a frente num pequeno gesto de abandono. — Que dia! E haverá mais alguma coisa? Maria Ana abandona-se à raiva surda que rebenta dentro dela. Toma-lhe o corpo que se retrai na medida exata da força interior incontrolada, a mente lateja-lhe num pensamento único: Ódio. — Não, não vou cair, não, não vou… isso é que era bom! Devagar endireita-se, como se colocasse as peças no lugar exacto. A figura está composta. Olha-se no retrovisor, acha que os olhos a traem, que a boca está amarga. Exercita os músculos de sorriso. Depois habilmente pinta os lábios, dá cor às faces e retoca os olhos. As mãos descem pelo tronco alisando hipotéticas rugas. Sobem de novo, entremeando-se nos cabelos castanhos risonhos de cor. Suspira aliviada, mastiga as palavras e põe o carro a trabalhar. — Não vou quebrar, não vou, não! Um sorriso aflora-lhe os lábios, um misto de dor e de decisão Maria Ana é assim, não dá tempo para se sentir infeliz. Não permite que a vida a controle, ela é a controladora. Aquela sensação percorre-a pela segunda vez nos seus quarenta anos. Quando se separou aquele outro dia, em que decidiu separar-se de António, após várias humilhações que jamais pensara ser possível, ela que sempre fora preservada a quase tudo e tão desejada. Mas acontecera. Nessa altura como agora, não sentira que o desespero tomasse conta do seu ser, não, sentia raiva, uma raiva pronta a estilhaçar-se sobre alguém que tivesse a simples desgraça de se aproximar. Maria Ana não tolerava que a colocassem no degrau debaixo. Maria Ana era competitiva até ao osso. Estar na crista da onda, ser adulada e, sobretudo, ser imprescindível. Precisava de tomar as rédeas das coisas desde as mais comezinhas às pseudo-importantes, era assim que o seu ego se satisfazia, dando-lhe milímetros à sua estatura mediana. Estes quid pró quods faziam parte, não na capacidade de entreajuda, mas antes, na busca das luzes da ribalta. Necessitava da adulação. Maria Ana, Ana, para os amigos, acaba de ser dispensada do seu serviço. O termo eufemista para o desemprego. São quarenta anos, doze de trabalho. Não vai baixar os braços. Tem que pensar. Recomeçar parece-lhe desde já o óbvio. Recomeçar. Ontem como hoje. Já lá vão dez anos desde aquele dia em que decidira separar-se. Algo que precisava de ser feito, sobretudo por ela. O casamento fora a maior asneira que cometera nos seus vinte e pico anos. Fizera várias, porém não tão primárias quanto ter-se casado. Aquelas coisas que se fazem, quando se pretende ter uma vidinha semelhante à da mãe ou da avó, ou por aí adiante. Todavia, o tempo não é igual ao delas, nem o sentir. Os conceitos tinham mudado muito e, muito mais ainda, a capacidade de resiliência. Como suportar um homem que embora encantador, não passava de um parasita, e ainda por cima que a traía constantemente. O nome, a família e todo o respetivo devaneio de genealogia foram insuficientes para a prender. Nem o atrativo físico, nem a simpatia, nem a elegância, Tudo pontos positi|vos  IV memória as sensações que a tinham levado à decisão final. A saturação, a raiva do tempo perdido. Recorda. Ana era realista e despida de culpas. O motivo formal do divórcio fora o adultério, mas na verdade fora a saturação. Estava farta. Era jovem, bonita, com sucesso. Os homens sempre se tinham rendido. Era uma sedutora. Tudo simples e linear. A dificuldade vinha com a mãe. Não ia aceitar. A mãe não vivia na realidade, mas antes, naquele limbo onde os sonhos tomam o rosto da certeza, e esta por sua vez, despe-se e tornando-se um quase sonho. Ela adorava o genro, pelo seu encanto pessoal, pelo peso do nome e da sua condição social. Ana era forte, sempre o fora. Decidira e pronto. Agora experimentava a mesma sensação, o mesmo ímpeto que a levava por diante sem medo, sem qualquer recuo, com aquela certeza quase obscena, que iria obter o que queria. — Estou livre, livre. A minha vida profissional recomeça de novo. Amanhã é outro dia, e vai ser meu como os restantes. Põe o carro a trabalhar. Chega a casa, atira-se para os sofás dando um piparote nos sapatos que lhe calçam os pés e deita-se ao comprido. Maquinalmente prime o comando da televisão que imediatamente volta a desligar. Prefere estar em sossego, a escutar os seus pensamentos. Faz a restrospetiva da sua carreira profissional. Sente-se injustiçada. Dera tanto à empresa. A crise internacional, aliada à conjuntura nacional, fizera com que esta fosse desaguar para outras bandas. Sente de novo o amargo da injustiça. Julgara que jamais voltaria a experimentar aquele travo acre de novo, contudo a vida fintara-a uma vez mais. Urge traçar um rumo. Tem a noção exata que o nível de vida que estava habituada irá decrescer. Tem a ideia exata que Ernesto a irá apoiar em tudo o que decidir, pese o facto de a aconselhar com toda a sua ponderação, depois, mais tarde, será o companheiro físico que ela necessita, será a presença quotidiana que lhe preencherá o tempo dos dias. Tem a perfeita noção, que os cordéis da vida são e serão sempre manipulados por si. Aliás, gosta de o fazer. Aquele sentido de domínio, de gestão, de agenda, de compromisso a ser ou não, de uma palavra aqui, outra ali, um sorriso, um sim e um não. O domínio, sentir-se necessária, ser ouvida, aliás a necessidade em ser o holofotedas atenções, uma parte do seu património familiar.. Detestava papéis secundários, sempre fora assim. Podia começar de mansinho, mas a verdade, é que pé ante pé, se fazia pelos lugares principais, sobretudo aqueles de visibilidade. Fora uma jogada mal pensada que a atirara para o desemprego. Não contara com o imponderável, a pouco empatia do chefe e, sabendo-se, no entanto, uma boa profissional, jogara. Nestas coisas a empatia do chefe é muito oportuna e a falta dela, levara-a a ser colocada no rol dos dispensados. Na boca, as papilas trazem-lhe o travo amargo da ocasião, porém, no seu íntimo sabe que irá dar a volta, seja ela qual for, mas irá. Conhece-se. Sabe que o seu sorriso fácil, a loquacidade em que é fértil, o humor fluido e ainda a gargalhada cheia granjeiam-lhe pontos, a par, de muito esforço intelectual que procura disfarçar. Ana pertence àquele grupo de pessoas que, embora providas de capacidades, gosta de fazer crer que a facilidade na obtenção das suas vitórias é algo que lhe está predestinado pelo nascimento, e jamais o resultado de um grande trabalho, o seu, e uma maior estratégia. Ana é uma oportunista esforçada. Já em casa, esticada no sofá, espreguiça-se olhando em redor. O que a rodeia tem sido fruto do seu trabalho. O Pad já está entre as mãos e num ápice as ideias começam a tomar forma. Ter algo de seu. É isso, isso que se vai lançar. A área? Bom… tem que fazer prospeção de mercado, um mercado depauperado, é verdade, contudo, haverá algo que valha a pena, está quase certa, que conseguirá. Vai ser algo | simples, nada de complicado, sabe por natureza que na simplicidade é que reside sempre o segredo do sucesso empresarial. Nada de coisas estereotipadas. Algo de subtil, necessário e sobretudo muito comercial. São seis da manhã, tem que se levantar, arranjar e partir. O aeroporto tornou-se a sua sala de visitas. Aqui e ali, pelos quatro cantos do globo vai fazendo o seu negócio. A Investments and Purchasing Ltd tem-lhe devorado os dias na proporção direta do desafogo familiar. A sociedade de que faz parte conjuntamente com mais dois colaboradores é, de alguma forma, a sua mais recente e desvelada filha. Quere-lhe não só por ser, isso mesmo, uma criação, mas também, porque apesar do tempo conturbado de crise, tem, aliás têm conseguido capitalizar lucros viáveis, permitindo-lhe catapultar-se a negócios mais audazes. A firma, que começa a ser referida no meio, e neste pequeno recétaculo de credulidade, há que investir sempre, mais e melhor. Ela desdobra-se pelos cinco continentes na busca, na agenda de investimento, na compra de imóveis. Tornou-se uma saltimbanca de vendas e uma coletora de compras. Mais uma visita de observação de mercado. É esta a sua vida. Hoje aqui, amanhã ali, um corre, corre fisicamente poderoso, mas que lhe permite distender a ânsia que a possui, que lhe permite percorrer caminhos, conhecer gentes, experimentar emoções. Ser ela na sua verdadeira essência de mulher, na sua criatividade humana, no arquétipo profissional. Ana é assim, sempre foi assim. Nunca se prendeu pelo comezinho, pelo vulgar, pelo menor. Acha que a vida é o que dela se faz. Longe de grandes laços que a sufoquem. Tudo deve estar em plano não convergente, assim jamais haverá o perigo de coincidir algures e em tempo. Recomeçara a sua vida desde que em oitenta e cinco assinara o seu divórcio. A sua família passara a ser Afonso e Ernesto, o companheiro. Faz agora parte da sua vida, e sempre que regressa a casa, | 46 | MARIA TERESA NOBRE em breves hiatos de tempo, ele é o ombro amigo onde repousa a sua cabeça cansada. É diferente dos irmãos, muito diferente, especialmente das irmãs mais velhas, quase suas mães. É impetuosa, trinca com prazer cada tempo e saboreia-o, seja acre ou doce. Frue-o. Não compreende as irmãs mais velhas, tão mediazinhas nas suas vidinhas, com ar meio cansado, sem terem experimentado o pico da vida, no entanto, uma já na casa dos sessenta, a outra no cinquenta, assim sossegadas como se o mundo tivesse parado à porta das suas vidinhas, meio perfeitinhas. Maria Ana odeia tudo isso. Já era uma condescendência enorme, os almoços de família que pouco lhe dizem, não fora a companhia de Vasco, o irmão. Para muitos, o seu trabalho reveste-se de glamour, contudo possui de tudo, exceto, isso mesmo. Aprendeu a colher o melhor de cada situação como uma tábua de sobrevivência no mar, nem sempre calmo, das suas vivências profissionais. É um trabalho cansativo, manipulativo. A carreira fora o seu grande objetivo. Afinal ela, Maria Ana, não era uma mulherzinha de tachos, maridinho e filhos com uma profissãozinha regular. Não. Nada disso. A sua capacidade, o seu jogo de cintura, o seu sorriso e gargalhada fácil, a par de um empenho profundo no que fazia, e espírito analítico tinham-na elevado ao lugar que exercia. Maria Ana era uma mulher inteligente. Ela sabia-o tornando-a displicente junto daqueles que achava menos dotados, ou seja, aos que por uma razão ou outra classificava de “simplinhos”. Maria Ana tem ainda uma figura gentil. Hoje nos seus quarenta embora, embora o rosto se mantenha expressivo, os traços arredondaram-se em consonância com os anos adquiridos. Não possui a elegância física de uma mulher bem-feita, no entanto é apelativa. Talvez mais pela expressão e riso do que pelo feitio, talvez pela sedução física que sabe espargir no momento certo. Maria Ana é, sem dúvida alguma, uma vencedora. Sempre soube tirar partido de  si. Não tem complexos, sorri e ri da vida. É uma mulher em busca, quando as conceções ou emoções rebentam, agarra-as e usa-as, deleitando-se. Não há pruridos na sua mente. Giza o “Ter” e o “Haver” com a destreza do pai. Coisa simples, a vida. Quando deseja vai em busca, quando tem, sacia-se, depois apazigua-se. Então, tranquila, dirige-se para o trabalho que a consome até ao outro momento exato em que o corpo volta a arquejar. Orgástica no seu intelecto e no seu sentir, Maria Ana percorre o mundo com a mesmíssima decisão que um dia caminhara para o escritório de advogados e iniciara o seu processo de divórcio sem quaisquer pruridos de ordem emocional. Levanta-se, agarra no robe que veste. Já na casa de banho despe-se e enfia-se no chuveiro. Depois é a rotina matinal. Vestir-se, maquilhar- -se, tomar o pequeno-almoço. À noite quando aqui voltar, será para fazer a mala, tomar um bom banho, aperaltar-se e descobrir a cidade. Maria Ana, a mais nova dos quatro, sempre fora decidida. A sua afirmação fora-lhe permitida, quer por motivos de idade quer, de proteção. Mimada pela mãe e pelos irmãos, soubera, desde bem cedo, levar a sua avante. O pai condescendera com a sua mais recente obra de arte. Ser pai aos quase cinquenta anos, quarenta e oito mais corretamente, tornara-o vaidoso. Não só pela sua virilidade, como também pelo aumento da sua prole, algo que o orgulhava. Naturalmente que este rebento fora sempre motivo de muita condescendência, e até porque a garota era cativante e sossegada. Muito risonha e depois fizera com que ele, Henrique Gonçalves de Mascarenhas, desempenhasse pela primeira vez pequenos papéis de paternidade, coisa que com os outros sempre descartara, uma vez que Maria Salette estava lá para isso. Nesse tempo costumava dizer: — Ó Maria Salette, olha o miúdo, trata dele! Entre dentes verbalizava bem baixinho: “os miúdos não têm piada nenhuma só depois de mais crescidinhos!” Rapidamente levantava-se e saía ou sentava-se placidamente no seu sofá vermelho ouvindo um trecho de ópera ou mais prosaicamente a rádio Moscovo, proibida naqueles dias. Punha-se um copo de água em cima do aparelho para, segundo os peritos caseiros, interferir nas ondas hertzianas, assim chamadas naqueles dias. Mas a mais nova sempre fora muita senhora do seu nariz, quiçá algo rebelde. Desde que se lembra, nunca nenhum dos outros lhe batera o pé e respondera de queixo erguido e olhos nos olhos. Seria coisa de avô? Talvez. Ela cresceu com um rostinho macio e sereno servindo de capa a um caráter por demais voluntarioso. O rosto doce e a vontade permitiam-lhe que levasse sempre a sua avante. A mãe denominava-a a “menina dos seus olhos” talvez pelas parecenças físicas, talvez pelo tardio da maternidade, talvez por uma pseudo quietude na sua relação que foi isso mesmo, esporádica. Maria Ana cresceu e casou-se. O genro era um tipo engraçado. Nunca lhe caíra muito no goto. Porém, não se meteu, até porque a mulher adorou-o, mais que não fosse pelo beija-mão, pelos gestos cavalheirescos de filme mudo em trejeito de Valentino, bah estava a ser bera, o tipo até era elegante e cavalheiro. Mas não era o seu género e para cúmulo tinha mais dezasseis anos que a sua menina., ou seja, quando ela casou com vinte e seis, António tinha quarenta. Era bom de ver que a coisa não iria dar muito certo, mas ela quis, assim se fez. Do outro lado do mundo, Clara resmunga, como é seu hábito, sobre a pouca vergonha da política e dos políticos, de toda a desumanidade que parece ter assolado o país nestes últimos anos, já para não falar nestes últimos meses. Parece ter tudo enlouquecido. A situação económica parece ter partido, não sabe bem como, a espinha dorsal do povo. Há tristeza nas faces, há fome nas casas e sabe-se lá que mais. Clara resmunga, na mente, porque nas palavras, não vale a pena. As pessoas não gostam de ouvir a verdade nua e crua. Não gostam pelo gostar, mas antes pelo medo. Têm medo de proferir a verdade, pelo simples facto de poderem ser prejudicadas,  de não chegarem ao lugarzinho que desejam, por mais mesquinho que seja, mas será sempre um lugarzinho, têm medo porque podem ser conotadas com alguém crítico que os possa impedir de chegar ao tal lugarzinho, têm medo porque são amigos do amigo que tem um amigo que é importante e pode proporcionar o lugarzinho, têm medo porque a simpatia ou filiação política a isso os impede, de criticar, têm medo ainda, porque são fundamentalmente medrosos de viver. Suspira. O medo e a culpa. Pega na faca e começa a cortar a cebola. Coisa chata, isto de picar cebola, mas lá tem que ser feito. Não há guisado sem refogado, tal como não há resultados sem trabalho. São coisas básicas. A base tem que lá estar sempre, por mais voltas que se deem, por mais premissas que se procurem criar ou recriar, o silogismo final é inevitavelmente lógico. A vida é uma lógica, pena é, que as pessoas não pensem assim, e andem atoleimadas com atributos sem acessórios que as volvem tão frágeis de ilógicas. Lá estou eu a divagar, Santo Deus, que cabeça a minha! — Diz a meia voz Clara. — Bom, vamos lá ao que importa que ninguém está interessado nestes pensamentos, se os pudessem ouvir até me comiam viva. Oh, eu sei… Clara é assim mesmo. Poucos, muito poucos ou talvez ninguém a conheçam. Há alguém que quase a conhece. Quase. Sabe que é diferente. Sempre o soube desde que começou a dialogar consigo ainda bem pequenina. Os anos passaram E o jeito aumentou, um jeito calado, interior. Clara sempre gostou de conversar com o seu pensamento. Cedo, aprendeu que ninguém estava interessado nas suas palavras, e, muito habilmente voltou-se para dentro. Quem a conhece, e conhecem-na quase todos superficialmente, dizem que é uma mulher muito extrovertida. Tal como costuma afirmar: — “Falo muito, mas só aquilo que quero dizer, ou acho por bem dizer.” | O que lhe vai na alma, isso é seu. Não tem interlocutor. O seu trabalho é pensar e analisar. A sua profissão é ensinar. O refogado está pronto, junta-lhe a carne, depois o vinho, coloca a tampa no tacho, baixa o lume e deixa a cozinha. Maquinalmente olha o relógio de parede da cozinha. Tem tempo. Volta para a varanda e senta-se na cadeira. Olha em redor e retoma o fio das suas memórias. Agosto, quinze. Não se vai esquecer da data por muitos anos que viva. Quando aterrou na Portela, o dia pespontava forte de sol. Vira a Ponta de Sagres bem nítida da janela, depois a aridez de um Alentejo em dia de feriado, e finalmente o Tejo mais a ponte, que estava em construção quando saíra de Portugal. A manhã estava soberba. A viagem fora tremenda. Um avião superlotado. Uma paragem de horas no Gabão num aeroporto abrasivo. Meia-noite e quarenta e dois graus. O suor empapava o corpo, melava os cabelos e aturdia ainda mais a mente já de si anestesiada pelos acontecimentos em catadupa. Mas a manhã estava mesmo soberba, vista do interior do avião. Não havia medo. Somente cansaço e uma esperança expectante. Urgia esticar as pernas, receber o dia no corpo. Lavar as feridas do ontem ainda presente. Caminhar para este presente. Caminhar. Quando pôs o pé nas escadas sentiu uma brisa gelada, diferente do calor morno que estava habituada. Um arrepio percorreu- -lhe o corpo jovem. Os cabelos longos esvoaçaram pelos ombros, qual cortina, ajeitando a intimidade. Olhou em frente, sempre gostou de olhar em frente. Mas não viu nada. Nada. A paisagem era fria, como o arrepio que a possuía. Estava de regresso. Percecionou naquele momento exato, tristeza. Rápida sacudiu-se, descendo os degraus dobrada ao peso dos sacos. Nos dias que se seguiram andou um pouco aérea. Rever velhos lugares, ver a família. Sorrisos. Palavras e palavras formais em forma areada. Jeitos de abraços sem calor, sorrisos enviesados. O momento | A  não permitia grandes efusões e depois, depois o atavismo dos afetos vestido da eterna inveja nacional porventura trapos de vingança secular. O pai e a mãe conversavam entre si à noite, ela a mais velha, ficava sozinha no seu mundo. Tinha expectativas, mas ao mesmo tempo uma força que não sabia explicar, tolhia-lhe o peito. Sabia que o seu mundo se fora, que este que pisava já não era o da infância, muito menos do da adolescência e definitivamente o da juventude desaparecera. Jovem, mas nua de futuro. Foram dias tremendos. Dias de verão com o frio do inverno na alma e o calor do sol no corpo. E os dias seguintes vieram. Nas madrugadas arrefecidas de setembro, acordava. Deixava-se ficar deitada de lado com os olhos fechados como se estivesse a dormir. Mas não estava. Recordava os tempos do antes. Esmiuçava-os. As imagens eram, por essa altura, ainda fortes. Deleitava-se nelas. Apertava com mais força os olhos para não as deixar fugir. Viu-se pela primeira vez a crescer de menina a mulher sem tempo e sem espelho. Viu-se, sozinha, mas acompanhada, sofrida e todavia abraçada, ver-se enfim, no futuro áspero que seria o seu percurso. Os primeiros meses foram esquisitos. O apartamento europeu com móveis africanos. Esquisito. Algo estava dissonante. Lá era tão bonita a sua casa. Tão viva, tão alegre. Aqui parecia uma feira de tons. A sensibilidade europeia coaduna-se com os dias pardos. Os tons recolhem-se numa paleta suave. Lá tudo rebentava com o calor e o brilho do tempo. As cores eram fortes, a luz era quente. A vida coloria-se no exterior e nos interiores. O Outono chegou. O tempo da mudança veio com a queda das primeiras folhas. O pai começou a trabalhar devagarinho, a mãe dedicou-se à casa e aos filhos, a mais nova começou a crescer, o do meio a viver sozinho em casa e ela, a mais velha, partiu. Foi trabalhar e foi assim que comprou a sua independência. Anos depois, muitos, compreendeu então |porque não se conseguia entrosar no conceito da sua família. A sua diferença residia na sua maturidade dorida. Os anos submergem no túnel do tempo. As recordações pulsam. Clara pega no comando da televisão. Prime o botão, o canal abre-se. Outra imagem, outra mesa redonda, mais política. Volta a premir. E outra vez, mais outra, até que apaga o aparelho. Recosta-se no sofá. Semicerra os olhos. Está cansada de ver, ouvir, sentir. Mais um dia. A dolência das horas embala-a nas memórias. Velhas e frescas. O silêncio da casa envolve-a. As imagens passeiam-se entre os objetos quietos. Cada um olha-a quando passa. Têm tempos, tempos de ontem, de hoje, de agora. Lá fora a tarde rola na estrada do dia. O morno da tarde é igual à sonolência da vontade. Clara espreguiça-se mais no gesto do que na mente. Essa mantém-se obscuramente, presa ao molhe de imagens que a perseguem. Que vale viver cada dia num esguicho de sonambulismo físico quando a mente se revolta para lá da moldura? Os anos submergem no túnel do tempo. As recordações pulsam. Foi apenas ontem que teve a certeza que o marida a traia. Descobriu tudo. Ele confessou. Depois do choro, depois da dor, depois de recolher na alma a ferida aberta ainda achou força para perdoar, para o receber de volta. Sente-se perdida, muito. Sente que o seu mundo uma vez mais desabou tal como em 61, depois em 74 e agora mais de meio século, tudo se repete. Os círculos da vida. Ergue os punhos ao alto num gesto de raiva e dor. Raiva por ter perdido uma vez mais, e dor por sentir que a sua dádiva de amor fora malbaratada. Dar sem receber é doloroso. Perder, dando, é cruel. Viver no engano é vil. Clara não é mulher de derrotas. Pode perder fisicamente, pode envelhecer, mas na cave do seu ser, a sua vontade é intrépida e embora soe dor em cada poro, não vai entregar os pontos, vai lutar, vai lutar e vai vencer. Ela sabe que vai fazê-lo. O resto? Quem sabe? 

07 setembro, 2023

III

 Recostada nas almofadas, Isa, fecha o livro. Puxa o edredão ajeitando a barra do lençol. O calor da cama aquece-lhe o corpo e deixa-a dolente. As recordações tornam-na sonolenta. O passado é longo… o frio gela o ar. Lá fora cai a neve, fria e branca. Dentro suspira-se o tempo. O calor do aquecimento aquece-lhe as memórias naquela modorra, entre os lençóis coloridos, Isa semicerra os olhos negros e as imagens continuam a povoar-lhe a mente. Os cabelos já se vestiram de cinzento, a pele morena é agora pálida do frio, do tempo, da doença. As mãos fortes e doces poisam na barra do lençol. Ainda há dias tremia na incógnita da cirurgia e hoje, está ali, tranquila na sua doença, mas pronta para agarrar a vida, como sempre. Na mente livre afluem-lhe imagens dos dias. Preocupa-a sobretudo a vida dos filhos e dos netos. A felicidade de Isa chegou anos depois, muitos anos depois. Não é a que esperou, mas foi a que recebeu. 
Tinham casado tão cedo, dois garotos ainda, mas a ânsia de viver no afogadilho dos acontecimentos, fizera o casamento. Noivara com o riso, o corpo, e a alegria da vida. Para trás ficara o altar da convenção. Ainda hoje não percebe bem como tudo foi tão fácil. Não houve drama. Os tempos de instabilidade ajudaram. O tempo dourado acabara. Vivia-se, sobrevivendo, na voragem dos aconteci- | mentos, no medo do desconhecido, na corrida para a fuga. Ainda se vivia. De pequenos relâmpagos aqui e ali, mas na verdade, o tempo acabara. Sem o saberem, ela e Luís tinham aberto as portas do outro lado, do tempo a seguir. No tempo a seguir tudo tinha pressa. Pressa de esquecer, de viver, de fugir. A Faculdade ficara para trás, o que importava isso, nesse tempo de vida. Os anos eram longos, verdes e cheios de promessas, eram os anos que viriam com espaço para tanta coisa ser feita depois não precisavam de atavios. Eles eram os mais belos acessórios de vida. E tanta coisa poderia e seria feita. Depois os dois filhos tinham nascido com o ritmo do desejo jovem. O caracol da vida começou aí a desenhar a sua espiral. Lembra-se como se fosse hoje, o espanto da mãe quando assim sem rodeios lhe disse que se queria casar. A criatura quase que rebentou. Recorda o mau estar e a pergunta sacramental: Estás grávida? “O móbil para semelhante ideia. O pai ao saber, ficou vermelho como se um ataque de apoplexia viesse a caminho, depois voltou-se para a mãe e disse sentencioso.” Que bela educação deste às tuas filhas, não há dúvida!” Claro que a mãe recalcitrou, gritou, disse- -lhe o que lhe competia, e ainda o que não devia. Claro que foram três dias chatos, pesados e só levemente vividos porque a irmã mais velha lhe deu apoio, todavia sem ser muito óbvio, porque como Isa recorda, Clara, a irmã teria sempre culpa de alguma coisa, desde que não preenchesse os quesitos na mente ou no imaginário materno. O irmão, um garoto de treze anos, mas mesmo garoto, com um feitio esquisito, pois que não passava cartão à família que não à mãe, não se manifestou, nem sim, nem não. Saber o que ele pensava, nunca a preocupou, mas neste momento preciso, verifica que nunca soube, nunca precisou o que Vasco pensava ou queria. Engraçado, sempre esteve ausente com a sua presença calada. A semana acalmou, os pais acabaram por receber os futuros compadres, que eram do seu |círculo de amigos, o que de certa forma facilitou as coisas, e entre dentes, lá aquiesceram. Contrafeitos, mas a grande derrocada avizinhava-se a passos largos. Não havia nem houve muito tempo para grandes ponderações. E casaram-se. Dois garotos! E a derrocada veio. Um corre-corre de medos, de malas, de tempo sem amanhã. Uma confusão na qual os mais velhos decidiram. O importante era salvaguardar a família. O tempo fugia, os imponderáveis nasciam. Assim casada de fresco, sem saber realmente o significado de casar, para além de uma cama comum e sexo sem culpas, Isa viu-se de mão dada com o marido e as malas. A memória esbate-se nas recordações de então. São ténues, tudo passou a correr. O tempo de respirar foi entrecortado pelo momento seguinte. Apenas salta veemente a lembrança das mãos fortes de Luís. Aquele entrelaçar deu-lhe a confiança que a neblina da ocasião a impedia de pensar. A Madeira tinha sido o primeiro sossego depois da partida. Para trás, as vidas, de outro tempo. A família de Luís era madeirense, nada mais natural, pois, do que o seguir. Acomodou-se perfeitamente ao ambiente e aos novos familiares, até porque tudo se vestia de novidade e aos dezassete anos ainda era uma criança de corpo esguio e formas de mulher, mas em tempo de crescer. A família era diferente da sua, na expressão dos afetos. Beijavam-se e abraçavam- -se. Não havia contenção de emoções. Como se a insularidade os obrigasse a ser envolventes, a partilharem a vida no bom e no mau, eram afetuosos no seu estar, naturalmente, demonstravam-no sem pudores, maravilhou-se. Na sua casa os gestos de afeto eram desconhecidos. O beijo matinal, o de boas noites ou de cumprimento fora apenas o contacto físico que conhecera entre os pais e os irmãos. Clara era, ainda assim, quem, de vez em quando, lhe apertava as mãos colocando-as entre as suas, lhe dava umas palmadinhas no  ombro ou lhe fazia um carinho breve na face tal como à irmã mais nova, Maria Ana, bebé por então. Espantou-se, admirou-se, e lentamente começou a retribuir, libertando o gesto, o sorriso e até o estar. Soltou-se. Tornou-se ainda mais risonha, mais carinhosa, mais viva, se possível fosse. Aquele embevecimento de afetos fê-la adormecer por muito tempo. Ali entre a neblina macia com cheiro a sal e o verde tinha sossegado uns tempos. Deu para os dois filhos nascerem. Assim seguidos. Tudo se fazia num correr como se quisessem apanhar o tempo que se escoara. O seu embevecimento de afetos, a alegria espargida nos gestos, foi-se recolhendo na medida exata em que as dificuldades se foram alimentando do tempo. Os cursos iniciados antes e após, tinham ficado em permeio como tantas outras coisas. Os filhos eram agora a prioridade. O futuro. Pensava- -se, então, assim. E tinham emigrado. Para o Canadá. O cunhado já andava pelas terras do bacalhau. Ela, Luís e os garotos partiram com a alma cheia de futuro e o coração dorido de passado. Os primeiros tempos. Os primeiros tempos. Como os lembra. Não tinham sido nada do que sonhara. Fora tudo frio. Frio como a terra que os acolhera. Aquela alegria quente da alma fora arrefecendo. Dera lugar ao sorriso frio, às muitas palavras vazias porque os silêncios tinham-se instalado na mente. Silêncio de vida, silêncio de gestos, silêncio de afetos, silêncio de ser. O tempo tornara-a num autómato. Uma mão aqui, outra ali. Um corre, corre, uma sobrevivência, um rosto que procura o amanhã no presente cinzento e o tempo correr. Dias e dias de esforço físico, mental. Dias de luta pelo pão, pela sobrevivência entre outros. Luta dura, luta de quem quer viver o depois. Alvoradas escuras onde o calor da cama se pegava ao corpo deixando a mente numa zonzeira. Em cada manhã os gestos eram mecânicos e sem expressão, pois o sono rondava. Autómatos. E bem cedinho como todos os povos saxónicos gostam, lá estava ela, o marido e os garotos a fecharem a porta ainda sob a luz dos candeeiros. Regressavam à tardinha mudos e estoirados sem vontade de falar, sem vontade para muito mais que não fosse ter forças para o dia seguinte. Os garotos aprenderam a ser independentes pelo lado menos bom. Mas cresceram despegados de grandes objetivos. Mas quem os tem quando desde bem cedo se vive numa espécie de linha de montagem? Pouco se fala do vazio que os filhos dos emigrantes sentem enquanto crescem. Os sonhos são fabricados muitos anos depois quando se tomam adultos, e de tantas vezes pensados tomam-se por quase verdades que jamais foram vividas. Relembra vagamente as promessas que ela e Luís tinham feito. Tudo se fora. Depois os anos trouxeram o conforto do dinheiro. A sua vida tornou-se estável, no entanto nunca recuperou o tempo perdido dos afetos, dos seus afetos. O filho mais velho sempre fora instável. Dentro de si carregava a raiva. Logo que algo não lhe corria bem, ou que as regras eram demasiado fortes, Nuno explodia em acessos tremendos. Os disparates na escola sucediam-se, as notas eram baixas, mesmo baixas. Em casa Luís batia-lhe. Chegou a ter a polícia à porta. Teve medo. Muito medo. Pelo filho, pelo pai, pela vida, por ela. Os anos foram limando o caráter do mais velho enquanto o mais novo começava na mesma senda. E Luís afastou-se. Mergulhou na sua carreira, enfronhou-se. Ganhava bem, as férias eram boas, a vida corria. Ela começou a sentir o vazio, um frio que lhe comia as entranhas. De início o tempo era partilhado com os tachos e as receitas antigas, mais as novas que batia nas tigelas da cozinha. Depois veio o aborrecimento. As mãos ressentiram-se e os quilos aconchegaram-se-lhe na carne. Desistiu. Os arranjos florais prenderam-lhe a atenção. Esse jeitinho fê-la andar entusiasmada durante quase dois anos. Leu muito, assistiu a workshops, tirou pequenos cursos mas… desistiu. Em seguida retomou a velha paixão na qual já tinha alguma prática, | O guia turística na sua própria agência de viagens. O negócio esmoreceu como morre quem não nasce com muita saúde. Viu-se de novo em casa, com um Nuno cada vez mais problemático. Chamada constantemente à escola devido ao comportamento insurreto, Isa teve que parar com todas as suas atividades incipientes e consequentes e dedicar-se de corpo e alma ao mais velho. Ainda recorda o dia em que recebera um telefonema a meio da manhã do diretor para ir urgentemente à escola. Vestiu-se apressada, temendo o pior. Rapidamente tirou o carro da garagem e excedendo um pouco a velocidade que a neve aconselhava, lá se apresentou no gabinete de Mr. Immilish, um canadiano de origem indiana. Ele foi breve e peremptório: — O Nuno não só, terá que pedir desculpa ao colega e aos pais publicamente, a senhora terá que pagar os estragos, e se até ao fim deste trimestre, o Nuno não melhorar o seu comportamento e o seu nível de aprendizagem empenhando-se, o conselho da escola expulsá-lo-á. Será a última oportunidade que lhe damos, atendendo às vossas condições de emigrantes, nós almejamos que a futura geração possua o espírito canadiano. Todos que aqui nascem ou chegam desde muito pequenos merecem o nosso esforço. Fazemos isto pelo futuro, aproveite, aproveite Mrs. Silveira. Regressara a casa dividida entre a vontade de lhe dar uma boa tareia, de contar a Luís ou conversar calmamente com Nuno. Sentou- -se na cozinha, bebeu um bom chá quente, estava a precisar e chorou. Chorou não só pelo acontecido, mas por tudo, pela infelicidade que sentia, pelo esboroar da sua vida, por ser mãe, por não ter desempenhado o seu papel bem, julgava. Foi aí que pela primeira vez teve a noção exata que cometera um tremendo erro ao casar-se tão jovem, ao mergulhar numa vida para a qual não estava preparada, ao pensar que o amor da juventude é duradouro, ao enganar-se a si mesma durante tantos anos. Os filhos, o filho com os seus problemas não |era senão o badalo da campainha da sua vida cujo som desconhecera algures por entre o tempo e a corrida. Aquele som magoava-a. Naquele entardecer, num céu de noite, teve talvez a conversa mais dolorosa da sua vida. Teve-a com um adolescente de treze anos, que rebentava de raiva e desamor por cada hormona do seu corpo, cuja alma se trancara para lá da porta da ternura. Sentiu-se tão culpada. No dia-a-dia nada previa que Nuno arrebatasse tais feridas. Naquele entardecer, Isa, desempenhou, talvez, o seu maior e o principal papel de mãe, amar Nuno. Soube fazê-lo. O rapaz olhou-a, avermelhou-se, gritou, caiu em si, chorou, chorou convulsivamente e agarrou-se a ela, dizendo entre ranho e lágrimas: — Desculpa-me Mammy, desculpa-me, mas, mas, eu, eu, não sei o que me passa pela cabeça, eu rebento de raiva, de vingança, de nada.… Achei que não gostavam de mim, que cá em casa ninguém gostava de ninguém, depois na escola sou sempre o de fora, o estranho. Eles desprezam-me. Porque sou diferente, porque não sou desmaiado nem cabeça de milho. Odeio este país, odeio-os!” 

… … … … … … … … …

 — Nuno, Nuno. Tem calma, filho. Respondem-te à tua forma de agir. Tens que te tornar o melhor, deves isso a ti próprio, aos teus pais e aos outros antes de ti, que são a nossa gente. Não estou a ser meiga como tu desejarias. Não posso, porque não é tempo para esquecermos o essencial. Tens que mudar, tens que lutar por ti, tens que gostar de ti. Nós amamos-te. É verdade que não sabes quanto, porque não temos tempo para to demonstrar, e se calhar, também não temos forma ou jeito. Uma culpa nossa. A vida tem sido dura. O carinho ficou nas Ilhas. Está errado. Mas prometo-te que hei-de recuperar esse jeito perdido. A verdade, Nuno, é que todos estamos |um pouco perdidos, não sabemos se de nós próprios, se da vida. A miragem que um dia tivemos, teu pai e eu, de um futuro para vós, de tanta coisa. Afinal, temos vindo a perder o pouco que tínhamos, a paz e a harmonia na nossa família. Talvez um dia o consigamos recuperar, mas por este caminho, não me parece. A verdade, meu querido, é que toda, a família também está perdida. Não és só tu. Mas temos, vamos recuperar o amor, temos que o conseguir, mas antes de tudo eu vou mostrar-te como te amo, acompanhando-te mais a ti e ao Tiago. Vamos recomeçar, meu filho. Promete-me que episódios destes vão acabar... vai ser difícil, mas és capaz. És forte e eu amo-te muito, muito mesmo. As pessoas novas ou velhas só respeitam quem é superior, e mesmo assim, sabe Deus, por isso Nuno, tens que mudar, tens que começar a gostar mais de ti, sobretudo a dar crédito às tuas capacidades porque és um rapaz inteligente. O que tens feito até agora tem-te diminuído, tu tens-te diminuído perante aqueles que acusas de te rejeitarem. Paciente e dolorosamente, Isa, apertou-o entre os braços bem perto dos seios que um dia, já tão atrás, o tinham alimentado com tanto amor e, carinhosamente olhou-o de frente invadindo aqueles olhos cinzentos cujas pestanas se arramelavam nas lágrimas, assim despiu-lhe o sentir, vestindo-lhe o interior da ternura, de amor de mãe. — Oh mammy, tu ainda gostas de mim? Mas e o Daddy, não nos liga, não te liga, pois não? — Nada disso, Nuno, todos gostamos uns dos outros, apenas não sabemos demonstrá-lo, porque também não nos ensinaram. És o nosso filho, o Tiago é nosso filho. Ambos sois o melhor pedaço de mim e do vosso pai Nós amamos-te muito e ao teu irmão, é verdade meu filho. Deita fora essa infelicidade, apoia-te em mim sempre que algo não correr bem, porque eu também vou aprender a mostrar-te o meu amor, meu querido.  Nuno e Tiago, eram os seus rapazes, meigos, truculentos, envasados em turfa. Eram a terra negra, fecunda e imensa de um povo sentido. Ali estavam perdidos entre canteiros perfeitos de vontades e disciplina. Eles eram a liberdade de ser, em contraponto à ordem calculada e vigente. Dois vulcões adormecidos à espera do dia. Do bem ou do mal. Da vida, em suma. Cresceram. Tornaram-se homens. Razoáveis, bom, melhor do que isso. Boas pessoas. Carregam em si os elos do afeto já semiabertos, pois que o pudor embrulhado de gerações, abriu-se. Os afetos não deveriam ser são tão ocultos quanto o respirar, pelo contrário, deveriam possuir a visibilidade do rir e do chorar, dado que não foram castrados. Nasceu ou recriou- -se, então, a primeira geração que não caiu no erro do desamor. Hoje Nuno já é pai. Duas cerejas doces do seu ramo já dobrado. Tiago e a mulher tiveram outros filhos, as carreiras, que criam desveladamente. Isa suspira, os seus filhos caminham no futuro. O tempo de crescer, o seu de recordar para viver. África fora a meninice, a adolescência, hoje e ainda ontem a emigração foi a solução. As teias da vida. Primeiro a Madeira, a família de Luís tornara-se a dela. Lá e cá. A sua, só muitos anos depois, a voltou a aceitar, porque aquele casamento fora em tudo contrário aos ditames que a mãe e o pai ambicionaram. Era verdade, não tinha senão dezassete anos; era verdade que Luís tinha quase vinte, tudo isso era verdade, mas como explica urgência de estabilidade, de sonho, quando tudo à nossa volta, o caos se reflete e as hormonas falam mais alto. Foi no espaço de um mês a aliança amarela e redonda brilhava-lhes no anelar. Se fizera bem, claro que não. Passados tantos anos apercebera-se que perdera muito mais do que ganhara, apercebera-se que a sua vida ficara suspensa para se partir, depois. O destino, que também lhe pertence, foi traçado por ambos, inexoravelmente. Em Março de setenta e cinco casaram-se. Trinta e  cinco anos. São muitos anos. Nuno, o mais velho já vai nos trinta e quatro e o Tiago nos trinta e dois Ela nos quase cinquenta e seis e Luís nos cinquenta e nove. Meia-idade. Luísa, Isa para todos, sempre foi diferente da sua irmã Clara. Uma criatura nada complicada, extrovertida, muito faladora, uma excelente contadora de histórias, de rosto sempre sorridente mesmo que o mundo desabasse aos pés. A sua voz detém o carrilhão do riso. As frases são terminadas com uma breve risada, mesmo que, da boca tenha saído a mais grave acusação, o que é raro, porque Isa tem sempre uma desculpa para os outros e para si. Não é uma mulher feliz mas é uma feliz mulher. A felicidade que detém, não a que almejou, veio-lhe em pequenas coisas, triviais, maternais e materiais. Os sonhos da juventude, o sentir, desmaiaram, adormeceram como o resto do seu corpo. De segunda filha quiçá protegida, quiçá amada, quiçá mimada fez-se uma mulher não amarga, porque a sua natureza a isso é contrária, mas uma Isa acomodada, mais prosaica do que fora, mais dorida e sobretudo muito solitária. As suas recordações são a sua história, como partiu e como chegou. Não existe transcendência no seu olhar nem muita crítica, somente o desenrolar dos factos, o caminhar das vidas, e aquela dolência tão africana de outros tempos de meninice acompanhou-a sempre. Isa é a mais internacional dos irmãos, não pelos países que conheceu, mas sim pela sua própria maneira de ser. Espírito africano, compleição europeia, gostos de lusitanos e modus vivendi americano. Isa é descomplicada por natureza. Nada a altera, nem sequer a grave doença do marido há mais de três anos nem a sua, agora. Tudo na sua cabeça se solucionará. Acredita na sorte, acredita que alguém velará por ela, acredita sempre que o bom virá mais do que o mau. Não é pessoa de grandes confabulações. Ela e o marido no cimo, na base, em cada ponta, um dos dois filhos, as noras e netos. Entre a base e a altura  do seu triângulo desenrolam-se os dias, uns melhores, outros piores, outros assim-assim, mas sempre dias e anos que têm esculpido a sua passagem. A vida, não é mais que um percurso e, como tal deve ser percorrido sejam quais forem as estações, seja qual for o transporte. As inquietações metafísicas pouco ou nada lhe dizem. Depois a sua vida, assim que teve, respaldo material, limitou-se ao prosaico papel de mãe e dona de casa. Fez uma rápida incursão pela faculdade quando pensou em dedicar-se à escrita a fim de adquirir a técnica, porém outros afazeres mais importantes como o nascimento do seu segundo neto, neste caso, uma neta e o cuidar do primeiro, relegaram as suas intenções e desejos para um outro plano que um dia há-de ser. Não se sentiu roubada, muito pelo contrário, achou esta nova tarefa como algo pleno de sentido. Está deitada. O edredão aquece-lhe o corpo. Não fez ainda um mês e já está quase boa. Um carcinoma na tiróide. Está ciente da doença. Deita as mãos para fora. Puxa os dedos como se puxasse os sonhos também. Sacode a cabeça e os cabelos cinzentos agitam-se. Vai ser Natal. Vai ser Natal. Isa pensa que vai ser um grande Natal. Tem tantos planos. Tantos. Olha o relógio na mesa-de-cabeceira e suspira de novo. Duas da tarde. Só daqui a três horas é que a casa começará a viver. Primeiro Hugo, depois Tiago, o filho, e a nora que agora quase vivem por cá, e sobretudo os netos, Joshua e Emma, sete e quase dois anos, os laços da sua vida. Naquele hiato entre as memórias passadas, o presente magoado e o futuro incerto, Isa engole uma lágrima rebelde da alma. Um sorriso macio abre-lhe os lábios enquanto os olhos molhados, não de esperanças, pestanejam lentos. O tempo e a vida tinham-lhe pregado uma tremenda partida. Questiona-se amiúde, sempre que sozinha debita as suas inseguranças: “Será que vou conseguir, será que vou ser vencida?” Vencer, é uma vontade, mas para além de tudo o incerto, o | amanhã…. Sacode o corpo dorido e fraco. Compõe-no num trejeito de mulher madura. Suave desliza os dedos pela pele. Com a outra mão puxa o edredão e lesta nas suas possibilidades, salta da cama. Vai para a casa de banho. Mesmo na doença é tempo de recuperar o seu papel. Os cinquenta e seis anos ainda são magníficos na sua tez morena e olhos negros. Alta, esbelta na sua compleição de mulher madura. O sorriso é a sua grande jóia. O gargalhar em surdina um atrativo. O encantamento pela vida toma-a, ativa, ligeira e dona de si. Uma verdade que não sabe explicar, o seu encantamento pela vida. Tantas e tantas vezes, quando algo corria mal, desde as discussões com Luís à instabilidade dos filhos, a doença de Luís, o volte face das suas vidas e agora mais esta, no entanto, o seu sorriso, aquela sedução no rosto que a envolve. Ainda hoje, agora, ao olhar-se ao espelho da casa de banho, vê a nudez da sua alma, porém o fascínio na incerteza do futuro, permanece.

 É a sua natureza. Um mistério. A culpa não lhe bateu à porta. — Isa, I'm home! — I'm coming Luis, I'm coming, dear!

02 julho, 2023

A culpa foi do meu pai! A culpa foi dele!

Henrique detém-se, por breves instantes, diante da filha mais velha. Está amarrotado no olhar e no gesto nervoso, transpira o segredo do passado. Logo, retoma o seu vai e vem inquieto na carpete vermelha. Senta-se à sua mesa de vidro e num sinal de desalento, quiçá arrependimento, coloca as mãos entre a cabeça debruçando-se mais sobre si mesmo, abana a cabeça, enquanto com o polegar a coça no lado direito. Um gesto que lhe ficou do tempo em que a brilhantina lhe empapava os cabelos. Assim fica durante uns minutos. Depois ergue os olhos já mortiços. Os anos não perdoam. A vida há já muito que corre por ali.

Mais um dia de desencontro. Mais um, entre todos os outros, dos seus dias. Henrique vive duas vidas. A de casa e a das fantasias. A sua instabilidade afetiva, o seu saltitar emocional, o seu desejo por algo inatingível sempre o perseguiu. Vê -se transido de medo por detrás da saia da mãe, enquanto o pai, podre de bêbado, gritava que nem um possesso. Vê-se trémulo esfregando o pé no outro, sentado no banco de madeira à espera do prato da sopa na mesa quase vazia. O pai reformado, jogador, bêbado e outras coisas mais, olhava pela família. Lembra a figura doce e sofredora da mãe, abrindo os braços para o acolher como se a paz estivesse ali, naquele abraço. Revê os olhos negros na face cheia podres de amargura, a boca quase sempre fechada entreabrindo-se num esgar sorriso de conforto. Lembra-se de um lar desfeito nas mãos de um homem que fora seu pai. O riso feito lágrimas, os gritos feitos palavras, o choro feito dor, a fome feita alimento. Cresceu assim. Tornou-se belicoso, doce, triste, alegre, pecaminoso, amigo, pai, marido e homem. A raiva engoliu-a em digestão difícil. Levedou para sempre e, ao mínimo aquecimento, rebenta num chorrilho de impropérios sentidos no momento. É incontrolável, é a fúria, é a pena de si. Sente profundamente o que pensa, e numa rapidez única verbaliza essa corrente num esgar provocatório de fúria que não controla. Depois esvai-se, esquece-se, apaga-se, mas jamais pronuncia a desculpa. É a força que lhe estrangula a garganta, o orgulho de si que o impede, é a sua revolta que o perturba mais e mais. E o tempo passa sobre cada ira, o tempo das horas, dos dias, dos meses e dos anos. Tempo. Reconheceu sempre os erros, mas não deu nunca o braço a torcer. Outro, dos seus muitos predicados, era dizer o que sentia diretamente olhos nos olhos às pessoas. Não gostavam, e nas suas costas comentavam, com aquele ar revestido do tom depreciativo: “Quem julga que é? Um pé rapado, um pobretanas, sem eira nem beira que se arvora em grande personagem”! Que tipo irascível!

Porém, no dia-a-dia sentavam-se à mesma mesa de café, sorriam em semidecúbito e afagavam-lhe as costas com as palmadinhas melífluas que a sociedade procriou. A sua vida fora feita de nós que ele próprio causara. Não era mau tipo, só tinha um feitio lixado, como diziam os amigos e a mulher e os filhos, bem quase todos. Havia a mais velha que o aceitava. Não o temia, acatava as suas iras, julgando-o silenciosamente. Agora, mulher madura conversava com ele dizendo-lhe claramente que não estava correto, que não era assim que se fazia. Não partilhava o desassossego que o resto da família sentia. Não, porque o percebia. Ele apercebia-o. Não que a amasse de modo diferente, apenas e somente a respeitava, talvez, um pouco mais. Naquele serão, uma vez mais, ela retorquiu-lhe, após a explosão de culpa solta.

-Os mortos não são culpados. Os vivos é que fazem os disparates, não é justo, culpar quem já cá não está, pai!

Olhou-a de olhos vazios e recolheu-se de novo falando para si. Ela, a filha deixou passar o tempo, deixou-o sossegar. O ar pesado diluiu-se, passado um tempo a conversa retomou o seu curso de sempre. Não era um homem fácil, mas era encantador. Um sedutor enviesado. Conversador nato, com uma fluência de palavra própria de quem gosta e sabe cativar assenhorando-se do tempo. A sua voz não era metálica, nem troante, porém, o seu tom era claro e alto. Sempre houve quem não gostasse do tom de voz, e pensando ser uma forma de subjugação. Puro disparate. Gostava, sobretudo, de ser ouvido mesmo quando o assunto era fastidioso. Nesses momentos, era preciso olhar sorrindo, e mesmo ausente, ir respondendo por monossílabos. Noutras alturas era bom ouvi-lo dissertar sobre coisas passadas e aprender. A ironia rendilhada era percetível para os atentos, esquiva para quem não o entendia. Não podia ser definido por um homem colérico porque a par das suas raivas, das suas tempestades, das suas verdades doridas em tempo de cólera, havia depois um quebranto, que o levava a ser uma espécie de menino arrependido, mas teimoso. Era, então, que se revoltava contra o pai.

Naquele serão, como em tantos outros ao longo dos seus setenta e cinco anos de vida e cinquenta de casado houvera mais um desaguisado entre ele e a mulher. Pontos de vista, palavras ditas aqui e ali, conceções diferentes e acima de tudo traições, pequenas ou grandes que ela nunca lhe perdoara, embora continuassem a viver lado a lado, a pôr-lhe a roupa, a cozinhar-lhe os almoços e os jantares, a gerir-lhe o dinheiro, em suma, a pontificar o seu quotidiano o que para ele, aliás, até era um alívio, uma vez que o trivial sempre o aborrecera. As chamadas minudências do lar eram-lhe fastidiosas como era fastidioso, quase desesperante ter que fazer o seu trabalho repetitivo, desprovido de criação, sem palavras, feita de números que nada lhe diziam, porque para além de serem números, que nem sequer seus eram. Bah, o que lhe interessava a ele, se o estabelecimento A, B, ou C tinha lucro, se o comércio ia de vento em popa, ou se pelo contrário, estavam com as vendas fracas. Somente no primeiro caso ser-lhe-ia mais difícil esconder os lucros para que o cliente pagasse menos impostos. Tudo isso estava intrinsecamente ligado à sua profissão. Sonegar e enganar. Com a ironia própria da sua maneira de ser, muitas vezes pensava que ao fazê-lo profissionalmente era uma atitude aceite e quase sacrossanta por parte da sua Suzette, que achava que assim ele era um bom profissional na medida exata em que receberia mais umas “recompensas”, traduzidas, claro está, num chequezito que, iria providenciar mais algum conforto ou até descanso. Porém, quando na sua vida de homem escondia, enganava, ao ser descoberto era arrasado, jamais perdoado apenas desculpado momentaneamente. Logo a seguir, os epítetos apareciam, sobretudo em ocasiões como a daquele serão. O pomo de discórdia fora banal como sempre. A família de Suzette. O muito que tinham granjeado com suor e lágrimas, a vida simples e desprovida de laivos de vaidade, a seriedade nata dos irmãos que os levavam a ter uma só mulher e a viver dependente dela e dos filhos numa harmonia frugal e quimérica. Enfim um corolário que ouvia, sabe-se lá há quantos anos, talvez desde que tivera aquele malfadado caso com a empregada, em que pusera quase tudo a perder. Depois disso, fora um eterno calvário de críticas e quase desprezo. Sabia muito bem, sabia, que a sua Suzette tinha alturas que o aturava não porque o amasse, antes porque era a sua subsistência, porque era o seu hábito, e principalmente porque lhe era penoso, a ela, ter que mudar. Não pelos filhos, que esses estavam criados e mais que criados, mas por ela. Apesar da sua quase auto convicção de liberdade pessoal era uma mulher muito dependente. Nunca saberia ser autossuficiente. Não possuía estrutura para tal. Não tinha interesses pessoais para além da vida de casa, da dos filhos, e acima de tudo, da deles. Naquele serão como em tantos outros, o desprezo chicoteou-lhe o coração. E, como tantos anos antes, tantos que se perdiam na bruma, reagiu. Não se encolheu nas saias da mãe nem no canto vazio da casa, não, ripostou de forma desabrida, de palavras tortas e tom altaneiro. Jogou à defesa para encobrir as suas misérias humanas, os seus erros, as suas paixões perdidas, o seu amor por ser. Especificamente para se proteger. Quem diria que ele, Henrique Gonçalves conhecido pelas explosões verbais, pela crítica demolidora do socialmente correto, ele, que fazia lembrar o homem bomba do canhão do circo, não era senão uma alma que jogara toda a vida à defesa. A culpa… a culpa…

A culpa instalara-se na família. Culpa das palavras e dos atos. Culpa das ideias e dos percursos ou não percursos. Culpa dos objetivos, de ter ou não ter, culpa do aspeto físico, culpa da inteligência ou não inteligência. Enfim, culpa de Ser.

 

II

 

Clara recolhe as memórias com o olhar num suspiro de ar vivido. Como o tempo passou, medita. Está sentada no alpendre da sua varanda. O jardim em redor dormita na quentura da tarde. O Verão respira ali, ao lado, no bafo do seu alento. Poisa o olhar dentro do tempo e sorri de olhos húmidos.

Como o tempo passou! Aqui mesmo ao lado correu apressado, como correu apressado, nem deu tempo para saborear a vida. Como correu depressa, ontem ainda queria o amanhã, ontem, ainda era hoje. Assim, num ápice, voaram os anos. Remexe-se na cadeira. Levanta-se. Um passo, dois. Desce os degraus da varanda e estende as pernas pelo jardim, puxando uma erva aqui, revolvendo uma pedrita ali, arredondando uma folha acolá, uma forma como outra qualquer de afastar os pensamentos. Junto da sebe das hidrângeas inclina-se, colhe duas para a jarra do hall, pensa. Dá volta ao jardim da casa mastigando o verde das sebes, mais o das árvores. As rosas, parcas este ano, dão o tom macio ao verde do jardim. Suspira quando se senta de novo no banco. A sua casa. O porto dos seus sonhos e das suas angústias. Tanta vida entre as paredes brancas de uma casa. Em cada espaço existe um pouco de si e da sua vida. Entra. A cozinha fervilha no sossego dos cheiros. Inspira. A serenidade entra-lhe pelas narinas abertas. Tudo descansa naquela hora. Transpõe a tijoleira vermelha, e logo o estalar seco da madeira palpita sob seus pés. Já está na saleta. Atira-se no sofá verde, estende as pernas e semicerra os olhos. A sonolência apossa-se dela. O calor dolente e o peso das memórias fazem-na ficar assim quebrada. Puxa a almofada de ramagens verdes e pretas e estende-se. Cruza os braços sobre o peito e abandona-se ao sono de imagens vividas.

………………

Naquela tarde enquanto dava a segunda aula sentiu-se oprimida. Olhou para fora, pela janela mesmo quase ao lado da secretária, as serras respiravam a tormenta. Estavam escuras e poderosas. O céu pintara-se de cinzento pesado e mal se mexia, agrilhoado. Clara entreabriu a janela, porém o ar não limpou o seu sentir. A borrasca pressentia-se. Iria estalar a qualquer momento. O suor pespontava-lhe a testa. Sentia no corpo aquele tempo sem ar.

Caminhou pela ala entre as primeiras carteiras enquanto debitava a matéria. Uma pergunta aqui e outra ali. E o ritmo da aula girava. Mas aquela opressão continuava. Despiu o casaquito de algodão. Resolveu fazer uma pausa na explicação. Os cinco minutos de descanso que dava aos alunos sempre que havia matéria nova. Conversa daqui, conversa dali e, ei-los relaxados. Podia recomeçar. Recomeçou. Cansada olhou de soslaio para o pulso onde os ponteiros pareciam colados. Não se mexiam. Alguma coisa ia acontecer. Conhecia-se por demais para desprezar os sintomas. Aquela opressão causava-lhe um certo atordoamento mental. Bom, o melhor era mesmo continuar a aula. Não valia a pena antecipar-se. A ansiedade não lhe daria descanso. Continuou no seu deambular explicativo, enquanto os alunos se entretinham entre o conteúdo que escorregava por entre os ouvidos, noutros casos era bebido pelas mentes, e noutros ainda era devolvido intacto ao ar pesado da sala.

E o tempo decorreu. E a campainha tocou. O tropel habitual aconteceu. Apanhou as suas coisas, atirou o olhar habitual à sala, fechou a porta e caminhou. Na sala do primeiro andar, onde todos os colegas se reuniam, pairava o calor abafado casado com o som das vozes. Os professores falam alto. Muito. As vozes têm tendência a tornarem-se estrídulas. Clara sentia-se zonza, cada vez mais. Agora era uma agonia vinda não do estômago, mas de algures, que não sabia bem definir. Sentou-se.

Clara, estás bem? Ouviu muito longe, a voz.

Quis dizer algo, mas a língua estava presa, o rosto também. Havia como que uma força a agarrá-la, roubando-lhe a luz do dia, embaciando-lhe o cérebro.

Sentiu-se mole. Terrivelmente mole.

Estava num sítio diferente, estranho, quase diria, esquisito. Estava separada. Ela aqui e a outra, ela também, mais além. Duas pessoas e uma só. Conseguia sentir que a outra lhe pertencia, porém era diferente. Cansou-se e fechou os olhos.

À medida que o tempo passava, a outra vinha-se aproximando. Tão devagar que nem dava por isso. E o cansaço desvanecia-se. Parecia que o torpor a ia deixando. Que o calor e a vibração começavam a tomá-la.

Abriu os olhos três dias depois. Disseram-lhe que tinha estado mais para lá do que para cá. Qual quê! Simplesmente adormecera e deixara que o seu corpo flutuasse. Tão simplesmente. Estava debilitada, sentia-o, contudo o seu cérebro funcionava. Foi retomando a posse dos seus sentidos. Sentia-se quase normal. A vista não. Qualquer coisa não batia certo. Mas não se ia preocupar agora que tinha acordado, e via o mundo à sua volta com outras formas. Esquisito. Mas as pessoas pareciam-lhe diferentes mais pequenas e sumidas. Aquele ar de conquista, aquele brilho de vontade, o frenesim do ser ouvido, tinha-se evaporado. Afinal eram comuns. Tal como ela.

Clara suspirou por entre os lençóis de barra verde. Com a ponta dos dedos puxou-os para si. Tapou a boca. Os olhos orlados de macerado sobressaiam no rosto amarelado de doença, contudo a vida continuava a espreitar.

Recuperou-se. O AVC deixara-lhe lapsos. Lapso de memória, de espaço e até de paciência. Os lapsos de Clara. Lapso que, sub-repticiamente, aprendera a disfarçar com arte e estilo. Uma sobrevivente. Diziam-lhe, uma mulher com sorte!

Talvez sim, talvez não. Já depois, muito depois quando pensava no caso, Clara murmurava para si. “Talvez sim, talvez não”.

O mundo mudara. Ou fora antes ela que mudara? Os pequenos muitos nadas que tanta importância dava nos dias antes, agora ao remirá-los, causavam-lhe bocejos. Como as ninharias deixam de ter peso quando a vida esteve em jogo. Um lugar-comum, aliás um pensamento banal, mas não somos nós todos banais? Encolheu os ombros, era algo intrinsecamente seu, pertencia-lhe. Não, não era displicência, nem tão pouco um deixa andar, somente o seu trejeito, que dizia: “Já lá vai, mas voltará.” A inevitabilidade que sempre a coabitara. E fora com um encolher de ombros que também se relançara na luta de cada dia. Lá no seu íntimo, sabia que levaria a melhor, e assim de um mansinho exterior, mas com a força interior, atirou-se e conseguiu.

Clara venceu a batalha, agora a guerra? Isso, não sabia, mas o que importava, e depois quem o sabia? Certamente outras batalhas cairiam por perto ou mesmo em cima, a sua vida era feita de lutas. Na tela da sua vida os tons sempre se tinham misturado entre os muito fortes e os pastéis, deixando pequenas réstias de azul sonho.

E os pensamentos, quais gotículas de cacimbo, deslizam pelo vestíbulo da noite. Não se sente velha como o reflexo teima em apregoar. Aliás, a sua cabeça é um baloiço de agilidade onde o pensamento se entrecruza com a maturidade do raciocínio. Gosta dos seus cinquentas e sete anos e do amanhã de todos os dias.

Uma mulher sem história ou uma história de mulher? Abana ligeiramente o pescoço afastando as divagações que a visitam em cada segundo. Não quer divagar, apenas pensar. Tem que delinear objetivamente o seu trajeto. As horas deslizam velozmente.

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Eram quase oito da noite quando o filho nasceu. Sentiu alívio. Moveu a cabeça para o lado e viu-o no berço. Viu-o de olhos oblíquos e papudos, cabelos quase alaranjados, de punhos cerrados e tão pequenino. Destapou-o e olhou-o como se visse tudo pela primeira vez. E era a primeira vez. Tocou levemente nas perninhas, no corpo. Percorreu o polegar pela linha do rostinho num toque infinito. Sentiu-lhe a macieza da carne e uma força que a fez parar. Ora, impressão sua. Retomou o toque e parou nas mãozinhas que teimavam em permanecer bem cerradas. Abriu-as e meticulosamente estendeu-lhe os dedinhos. Perfeitos. As unhas arranhavam. E naquela intimidade sem sons, ele suspirou. Era seu. Viera dela. A sua criação. Tapou-o. Pensou. Pensou na incerteza. Pensou em tudo. Sentiu-se dorida, mas feliz. Levantou-se e sorriu. A vida estava mesmo ali ao lado a desafiá-la. E ela aceitou o desafio.

Chamou-lhe Henrique, como o avô.

O tempo voou. Ele cresceu, ela amadureceu. Ele ficou homem, ela mais velha. O tempo sem tranca que varre a vida.

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Recorda os tempos de juventude. Enormes, quentes e cheios de promessas. Eram felizes na crença do amor, da ilusão, dos grandes cultos, dos enormes altruísmos, do derrear os dogmas sociais, na construção dos ideais. A sua geração fora assim. Ela fizera parte, tivera as suas lutazinhas, quebrara alguns tabus geracionais, sabe-se lá, à custa de muita lágrima, zanga e tantos outros dramazinhos familiares. A peça que fora cartaz no palco da sua geração chamava-se “Flower Power” e o seu mote era make love not war. Vivia-se entre duas grandes dicotomias, ontem como hoje, o campo e a cidade. A única diferença dos dias de hoje é que a pobreza era mesmo ruim, aviltante, redutora da condição humana. Pobreza material ao extremo nos mais desfavorecidos, na classe rural, ladeada de um pseudo certo bem-estar, um relativo bem-estar e ainda um efetivo bem-estar ou mesmo bem-estar de uma classe média bem instalada. Quem conhece a nossa realidade, sabe bem que a classe média bem instalada foi sempre a que, de uma maneira ou outra, governou o país ou se foi governando, de acordo com o degrau onde o pé era assente. A pobreza era terrível, não só a do campo capeada também da pobreza de pensamento, a par da vivida na cidade onde as pessoas pululavam na robótica do ganha-pão, onde a miséria dos dias se fazia, muitas vezes, de fome vestida de uma aparência arranjadinha e um olhar envergonhado. Lutava-se, não pelos ideais, antes sim pela sobrevivência do corpo. O desejo maior era ver os filhos estudarem, terem um ofício na mão, uma mais-valia de futuro, um casamento sólido sinónimo de porta-moedas remediado. Somente para os mais audazes, os mais inteligentes havia o curso na universidade, ser doutor ou engenheiro era uma ascensão social pratica corrente. No mundo ativo Todo este quadro originava muitos atavismos morais, uma tacanhez de conceitos baseados em padrões pseudomorais que conduziam a um conforto hipócrita de moralidade. Cabia à mulher o papel de sofredora, pese todas as diatribes, traições e outras quejanices que o marido achasse por bem fazer. Ela, ela segundo a tradição judaico-cristã, era o pilar do lar, o esteio moral da família. Claro, que este postulado passou durante gerações de mães para filhas tal como passava a peça do bragal. Esquecia-se que havia um ser humano debaixo de toda essa carga e que ele palpitava. Que ao negar-lhe a sua verdadeira existência se construíam seres insatisfeitos, incapazes de darem amor porque também o não recebiam. Alucinadas pelas leituras cor-de-rosa, não tendo a capacidade para discernir entre o real e o imaginário, desconhecendo muito da vida nua e crua no que respeitava aos verdadeiros desejos humanos. Partiam para as relações, diga-se casamento, mais nuas que a própria nudez. Sempre que o corpo falava mais do que o espírito, logo o sentimento de culpa aflorava. Uma geração de mulheres mestras na arte do disfarce. A culpabilidade e a insatisfação pariram brechas nas relações humanas. Gerações perdidas de si. Ontem como hoje, a sociedade portuguesa girava em torno dos seus extremos. E assim, do atavismo moral mergulhou-se no laxismo experimental. Na sociedade do século vinte um, a moral quase cedeu lugar ao prazer. “Eu desejo, eu quero, tenho que ser feliz, feliz, feliz…eu fui feliz no momento”. Assim num ápice, numa pressa sem delimitações. Tudo se passa num repente. O tempo de maturação, de análise, de construção, desapareceu. Não existe. Meramente um corre-corre de desejo, de posse, de saciedade e finalmente de tédio. Nesta reviravolta de conceitos, o caricato, é que ainda se continua à procura de querer ser feliz, apesar da pesada propaganda. Esconjuram-se os laivos de culpa, qual anátema de civilização primitiva. A bendita que tem ditado tantas e tantas felonias neste nosso século. A culpa, o legado nacional mais poderoso, porque a coitada tem morrido sempre solteira pese, o facto, de ter destruído relações, posições e tantas outras ações. 

Hoje, ao olhar para esses dias, um sorriso irónico tem que forçosamente mascarar-lhe os lábios. Tão ridículo! No entanto, na altura geraram-se conflitos familiares, zangas e humilhações. Depois veio o vinte e cinco e, rapidamente os costumes mudaram. Tomou-se como natural, o que até então era proibido. As massas ululam ao sabor do vento, melhor, as mentes mudam, tal como o vento sopra. E se sopra com força, então a mente parece um cata-vento. Neste caso, bendito cata-vento, diga-se. Houve muita mudança. Os cenários foram-se transmutando à medida que a peça se plasmava aos costumes. Neste entretém teatral, os rostos adquiriram rugas, o espírito aquietou-se e alguns bolsos aviltaram-se. O idealismo virou capitalismo, o amor comprou-se, vendeu-se e emporcalhou-se. E a geração dos ideais metamorfoseou-se em peralvilhos com sebosas contas bancárias Os charros passaram, praticamente, a ser um quase apanágio de uma pseudoelite intelectual que os usa diz, como fonte de inspiração. Uma geração que sonhava sempre que respirava. Respira, hoje, entrecortada entre a ambição dos cifrões e do bem colocado. Não somos senão pavões eternamente voltados para um jardim que já não existe. As penas já são tão toscas que até faz dó, pese o brilho da projeção.

Houve um desbragar de convenções, o caos, diziam os mais velhos, então. E nós ríamos, ríamos porque o sentir era impune, porque éramos jovens e heróis. Havia o cheiro tremendo de sexo, mas também o cheiro da vida. Era diferente. Era a libertação, a nudez da carne e da alma. O despir total, o arrebatamento de comungar o corpo, o vento e a terra. Os primeiros ecologistas não asséticos. Clara sorri abertamente. Tem orgulho de pertencer ao grupo das cotas. É tão maravilhoso ser-se cota quando se tem um mundo de cristais nas traves do espírito. Pertencer a uma geração de descoberta, de aquisições, de luta.

Hoje torna-se doloroso verificar que os Senhores do Mundo são, os que, então, foram seus parceiros de aventura naqueles anos dourados. Como o poder corrói. Tudo é bem pior que o ácido, porque é mais lento e persistente.

Levanta-se, alisa a saia, puxa a o cós do jersey, ajeita o cabelo e sente-se de novo jovem e atraente. Uma hippy repleta de alquimia do tempo.

Está mais segura. Não olha nem para a esquerda nem para a direita. As memórias povoam-lhe o ecrã da mente. A noite pisca-lhe matreira por entre uma meia-lua sentada por cima da janela da saleta.

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Clara olha-se no espelho do seu quarto de rapariga.

Gosta do que vê. O vestido comprido cor de champanhe, corte simples, todavia elegante. O saiote faz-lhe o redondo das ancas. O cabelo no seu brilho dourado suporta aquele véu de renda enorme. Na mão as suas eternas rosas amarelas.

Casa-se hoje. Um dia especial. Percorre-a um frenesim. Não é ansiedade, somente a antecipação do acontecimento.

Olha-se fixa e demoradamente no espelho oval, a imagem não reflecte os pensamentos. Interiormente sorri. E interroga-se: Afinal é este o dia tão especial, o dia que desde garotinha ouviu falar? Uma névoa breve tolda-lhe o olhar. Recompõe-se. Há que estar serena. Uma noiva quer-se nimbada de luz. Os eternos clichés da sociedade. Mas enfim, encolhe os ombros. Assim seja.

Debruça-se sobre a cómoda perscrutando a imagem no espelho oval. Aqueles momentos a sós são preciosos. Em breve terá que mergulhar na alegria do dia. Urge.

Deseja que termine. Sempre foi diferente. Sabe que mastigar os momentos não os faz perdurar no arco-íris do relógio. Depois, também sabe antecipadamente o que se passará. Sempre um pouco à frente do hoje. Clara apressada. Não, ela não é apressada, apenas o hoje, foi o ontem dela, o amanhã, é o seu hoje. Naquela divisão de tempo o seu corpo senta-se, porém, o espírito inquieto flui. Nunca ninguém a percebeu. Habituou-se a viver assim. E hoje, pese os seus anos ainda verdes, coabita lindamente com a dicotomia. Chamam-lhe insatisfeita, nervosa. Nada disso. No entanto, nem sequer perde tempo a explicar-se porque, sabe, não a compreenderiam, se calhar até diriam que tinha alguma pancada…não fora em vão que caíra de um escadote bem alto ainda pequeninita. Talvez fosse daí, que lhe adviera esse desassossego de tempo. Não era em vão que lhe diziam ser parecida ao pai…

Mas hoje era o seu dia. Clara casava-se. Apesar da liberdade que aqueles tempos continham, essa mesma liberdade acabava por exigir um invólucro. Há vinte e muitos anos casar-se era uma quase obrigação, pelo menos no meio de onde provinha. Meio arreigado de preconceitos e normas. Aquela necessidade do certinho que sempre a baralhou. A vida é um remoinho de folhas de muitos tamanhos e cores, pelo menos para ela.

Desse dia tem sobretudo a memória das pessoas, da condescendência, do barulho, da norma, dos rostos felizes como se todos se tivessem casado na mesma hora e com eles. Achava tudo um pouco excessivo. Aliás as festas são excessivas mesmo que contidas. Porem é nelas que o ser humano abre a torneira da satisfação. A necessidade grupal do divertimento sempre a espantou. Mas naquele dia, tão especial, Clara sorriu tão beatificamente que todos a acharam uma noiva feliz, tão feliz que até estava linda. Outro dos seus grandes problemas foi perceber como o valor das palavras se alteram de acordo com o estado de espírito do interlocutor, e sobretudo, se este for coletivo.

Clara cumpriu a sua parte com muita elegância e serenidade.

Manuel. Bem, Manuel estava irreconhecível. Elegantíssimo, todo a preceito no seu mais ínfimo detalhe. Também perfez o seu papel. Mais tarde quando já estavam longe daquele reboliço, ele dissera-lhe:” Pronto, já me sinto legal”.

Ainda hoje se interroga sobre o que ele quis dizer conhecendo-lhe todas as reticências que tinha em relação ao casamento religioso, a festas sociais. Ostentação, dizia.

Porém, naquele dia foi gloriosamente simpático. Disseram dele: “Uma jóia de rapaz!”

Um prenúncio de outros dias. Como o tempo se foi!

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Permanece deitada no sofá a espreitar a noite. O livro continua a olhá-la. Prefere embrenhar-se nos seus pensamentos. Clara gosta desta intimidade que tem com as memórias, dão-lhe o conteúdo da vida. Hoje em que tudo passa numa corrida, empurrando tudo e todos, qual efeito de dominó em queda, hoje, em que parar, é sinónimo de desaparecer, hoje, é aquele tempo em que não mais se escutam as memórias, porque elas são feitas de nós vazios. Hoje, pensa Clara, erguendo o queixo acima da linha do horizonte, é o meu tempo de recordar. As suas memórias vestem o tempo. Ei-las ali mesmo defronte, sentadas, à espera de serem catalogadas no armário do pensamento.

Quando pensa em si, Clara, vê-se como alguém cujo caminho de vida tem sido difícil. Para lá das aparências, para lá daquilo que os outros gostam e são capazes de ver, tem existido uma pessoa complexa, por demais. Talvez a sua personalidade tenha sido forjada não em ferro derretido, mas sim, em pedaços de vida amassados. Vivera e tivera a noção exata do desfasamento emocional da vida dos pais. Analisara, desde relativamente cedo o que era a felicidade conjugal em desencontro. Vivera as cenas teatrais de desfalecimentos, choros, acusações e mutismos, Tivera que subsistir animicamente, crescer, diriam, no meio de muitas incongruências. Este passado não foi uma mais valência para ela, pelo contrário, foi algo que a tornou incrédula, fria e dorida. O pior defeito de Clara é não acreditar. Pura e simplesmente não crê. Não é má pessoa, no entanto para quem não a conhece, deixa sempre a ideia de altivez ou muita simpatia. Tudo isso depende do meio em que se encontra. Para os mais simples, para quem a vida é um simples corolário de sucessão de dias sem inquietações metafísicas, oh Dona Clara é tão boazinha, tão simpática, faladora, dada e de uma simplicidade e veja-se, vê-se que tem muita educação. Para os outros, aqueles mesmos que coabitam o seu meio, aos pseudointelectuais, aos alpinistas sociais e aos nouveaux riche não passa de uma criatura intragável com a mania que sabe tudo, e com a aspereza de dizer as coisas na cara, pois que pensa ser a sua verdade. Uma coitada.

O pior defeito de Clara é a sua intolerância com a ignorância. Não concebe que no seu meio, as pessoas digam disparates sobre coisas de senso comum, apenas por desconhecimento, apenas porque são incapazes de recolherem um pouco de informação, antes de debitarem, publicamente, um molhe de anedotas e ainda por cima, convictas na sua santa ignorância. Outra das coisas que lhe põe os nervos em franja é ouvir as pessoas repetirem o que outras disseram, apropriando-se dos conceitos ou simplesmente de frases banais. O ser humano é terrível, vive em atos junto a um palco que na maioria das vezes nem sequer é o seu, e outras ainda é o ator de uma peça para o qual não foi convidado. Comédias em dramas e dramas que nem a sátiras chegam.

Clara viveu uma infância e juventude processada entre dois seres muito diferentes que coabitaram o mesmo teto. Tão diferentes eram que nunca se conseguiram misturar. Água e azeite. Assim os define. Dessa não mistura resultaram quatro filhos. Ela, a mais velha, outra rapariga, um rapaz e mais uma rapariga. A diferença de idade dita-lhes as divergências não só físicas, mas sobretudo de caráter.