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2020 nasceu
doente. Uma daquelas doenças em que os sintomas não são percetíveis de início, mas,
passados poucos dias ou meses, eclodem virulentamente. Os sintomas da doença de
2020 já cá estavam. Não eram assintomáticos, não eram irrelevantes, não eram impercetíveis.
nada disso. Estalavam todos os dias de uma forma ou outra. Claro que não eram
eruptivas nem muito menos pandémicas. Mas estavam por todo o lado, nesta
globalidade que tanto dizemos ser de nosso orgulho. Foi, pois, neste estado de catalepsia
global que a pandemia se instalou.
Numa era de globalização em que estar vivo já é por si uma
tarefa arriscada, e sendo o risco um requisito da excitação e da aventura que está,
intrinsecamente, associada à modernidade. O risco pasme-se, é uma fonte de
energia criadora de riqueza numa economia moderna, uma vez que é a dinâmica
estimuladora de uma sociedade empenhada em determinar o seu próprio futuro. É
num processo contínuo de ganhos e perdas que nos deslocamos em direção ao dia
seguinte, ao mês, ao ano, quiçá ao porvir. Nesta plêiade de lances,
deparamo-nos com dois tipos de risco, o que vem de fora, o exterior e enquadra
as imposições da natureza ou da tradição e o outro, o interior, que não é senão o resultado do choque que o nosso
desenvolvimento tecnológico impõe ao meio ambiente. Foi este impacto da ciência
da tecnologia, a par de um pensamento assaz racionalista que objetivamente nos permitiu
viver um período histórico de transição, extensível a todo o globo.
Chamamos-lhe globalização.
Uma era de mudanças sejam na economia, no clima, na ciência,
na família, nas relações humanas que fizeram ruir o munda anterior tradicional
e preconcebido originando diferentes formas de fundamentalismo, que
necessariamente não se situam somente nos conceitos religiosos, políticos mas
igualmente rácico, sociais, ideológicos esquecendo um vetor importantíssimo: afinal
somos todos Seres Humanos pese as diferenças de credo, cor, género, ideias e
crenças.
Fala-se e extrapola-se sobre a tolerância, um vocábulo usado
em excesso, sem que a aceção do seu sentido, seja ,na maioria das vezes ,verdadeiro.
Ser tolerante não é apenas aceitar o que socialmente se decretou por estar em
voga aliado ao pretexto de estar correto, sem que algumas vezes o não seja. A
tolerância é um ato de dádiva mais do que um ato de aceitação ou de
exibicionismo. Pergunta-se onde está a tolerância económica no que respeita os
benefícios do chamado estado keynesiano do bem-estar social? Onde reside a
tolerância nos interesses financeiros dos mercados nesta nova economia
eletrónica global em que os gestores de fundos, os bancos, os investidores e as
grandes empresas transferem avultadas somas de capitais sob um clique de um
dedo, destabilizando do outro lado do mundo economias sólidas, acarretando
crises que as populações vivenciam em estados intermédios e finais de pobreza
conducentes a situações extremas de
privação.
A privação de movimento, de afetos, de sermos os que éramos
apresenta-se no nosso quotidiano como algo que nos foi decepado. Dizem, quem
sofreu de amputação, que o membro é sentido por algum tempo, embora não esteja
lá. Não sentimos o que não temos porque é algo exterior a nós, todavia as
memórias esvoaçam pelo campo das nossas vidas, e ,é ainda a elas que nos
apegamos com a ideia de um futuro não muito distante e semelhante a um passado
próximo.
Somos cientes de todos os erros, estamos dispostos a mudar. É
verdade. É humano. No entanto o caminho que recomeçamos rapidamente nos enfada
e, indiferentemente recaímos no erro. É de a natureza humana errar. Sempre foi,
sempre será. E assim fizemos da privação um país no qual entramos todos os dias
não por uma porta, mas por uma condição. A condição de sobrevivência sanitária.
Todos os dias quase desde os primeiros meses deste ano nascido doente.
2020 nasceu doente. Um vírus, uma pandemia. Um planeta em
dois movimentos um centrifugo e outro centrípeto. A natureza gira
centripetamente em direção à sua criação, porém a humanidade gira centrifugamente.
Este afastar do centro, este rolar infindo tem
as suas causas na doença que o mundo gerou. Mais do que a pandemia que
grassa nos nossos corpos, há uma outra pandemia profunda, irracional e desumana
que globalmente assolou o mundo. Chama-se egoísmo.
Este senhor é um caleidoscópio de aberrações nos seus múltiplos vidros de ganância, cupidez, mentira,
traição e tantos outros. Neste caleidoscópio gira a pobreza e a riqueza do mundo,
exatamente, do mesmo modo em o Covid- 19 dança nas vias respiratórias das suas vítimas.
Há que aplicar os ventiladores a par de outros cuidados médicos a fim de
salvar vidas e para a outra pandemia,
que ventiladores, distanciamentos, medicamentos, o Ser Humano aplicou ou irá aplicar?
2020 nasceu doente e nos ficamos doentes. A osmose entre a
natureza e o homem é um anel. Um casamento que o mundo abençoou. Quando a natureza adoeceu porque o Homem decidiu que
era hora de se divorciar, aparentemente, nada de relevante se fez sentir.
Contudo, a natureza demorou, mas acordou e vingou-se, privando o Ser Humano de um dos seus maiores e melhores bens: a
liberdade de ser e estar.
A liberdade humana é a nossa forma de comunicação. Não
percamos mais este dom!
Maria Teresa Soares
8-7-2020