IX
1
de Novembro de 1755
Ainda se ouvem aqui e
ali o choro dorido, há silêncio, pesado e triste. Hoje a terra tremeu. Tremeu
muito. Gião ondulou, tremeu, rangeu, balanceou pelo lado norte, pelo sul pelo
oriente e pelo poente. As entranhas retorceram-se convulsas mas por fim
serenou. E o silêncio deitou-se. Pesado, quebrado onde em onde pelo lamurio da
morte ou da desgraça. Ouviam-se os gritos vindos do outro lado do Sizandro. A
velha capela tremeu no arrepio doente das suas paredes porém, o santo padroeiro
protegeu-a. E lá ficou. As telhas voaram descalças para a terra. Uma ali, outra
acolá, uma devagar, e mais outra e mais depressa, e o barulho aliou-se ao vento
num rodopio caótico.
Encostada á janela,
Maria Franca olha o cinzento da manhã, o vento que varre as árvores do pátio,
faz com que as velhas telhas executem cambalhotas no ar antes de aterrarem
estateladas no pátio ou desaparecerem pelos ares vorazes de eito.. Vento, pó e
clamor calçam manhã. A raiva soprou das entranhas do mundo. E ainda era o
primeiro dia de Novembro. De 1755- O dia de Todos os Santos.
Deita
as mãos ao peito. Cruza-as numa aflição sentida. De soslaio vai deitando o olho
para o berço onde a criança dorme. O seu filho mais novo. Tranquilo suga os
lábios. Maria coloca as mãos em prece. Tem trinta e oito anos. Não esperava já
por esta criança. Já descartara a maternidade, sobretudo com a sua idade. José,
a criança dorme tranquilamente. Poisa as mãos rechonchudas fora do lençol alvo.
Não acordou c quando a terra tremeu. Ela tremera de pavor. Ouvira os gritos dos
criados, o alvoroço da terra. Recolhera-se no seu quarto agarrada ao berço. Não
ousara gritar com medo. Esperara-a. Olha agora por entre a janela. Os murmúrios
da casa são esparsos. O silêncio tomou a vida.
Volta a olhar o seu
tesouro. Há preocupação nos olhos escuros. Tem que se mexer, saber da filha, do
marido, dos criados, da casa, enfim do seu pequeno mundo.
Afasta-se da
janela, perscruta a penumbra da casa, parece-lhe que os barulhos ressuscitam.
Os sons rasgam a casa. Uma correria, uns passos, uma mão que veemente abre a
porta e Ignes despenteada em camisa irrompe pelo quarto. Vem trémula, pálida.
Os enormes olhos verdes transpiram assustados.
-Oh minha
Mãe!
-Ignes
acalme-se
- Está bem?
José está bem?
-Estamos
bem.
-Minha Mãe e
o meu Pai?
-Com certeza
que o seu Pai estará bem.
De repente o
medo invade Maria F. Caetano está em Lisboa. Silenciosamente suplica que ele
esteja bem. Quer convencer-se, tem que se convencer. Está sozinha em S. Gião.
Pega na mão
da filha, puxando-a para o seu lado. Firme dirige-se para a porta. Há que ver
se há feridos. Há que saber os estragos. Há que tomar decisões. Há que retomar
a rotina. Não há tempo para se lamuriar quando os outros possivelmente precisam
do seu apoio. Depois logo se verá.
-Não
aconteceu nada a Caetano se Deus quiser - pensa para si.
Percorrem o
corredor caladas. Maria agarra o ombro de Ignes que soluça de mansinho.
- Vá, vá lá
minha querida acalme-se. Vá lá ter com a Joana e acabe de se vestir. Apanhe
esse cabelo, depois venha ajudar-me. Deve haver muito que fazer. Chame a ama de
José, para eu ficar descansada.
- Sim, minha
Mãe.
Empurra-a
para o seu quarto suave mas com firmeza. Sorri-lhe e acaricia-lhe o rosto
pálido.
Logo de
seguida estuga o passo, desce as escadas e desemboca na velha cozinha. Há pó
por todo o lado. Tosse e leva a mão à boca. Chama.
-Piedade, Piedade!
A velha criada surgiu aos tropeções vinda de
um canto. Apareceu-lhe assim de repente mesmo à sua frente. Assustou-se.
Olhou-a com espanto. Parecia uma alma do outro mundo, tanta era a caliça que a
cobria.
-Minha Senhora… eu… nós… ai….tartamudeou.
- Ó alma de
Deus, o que se passa? Vá lá, fala.
- O Júlio
está ferido, o Luís desatinou… a parede dali ruiu, aponta na direcção da porta
que dá para o pátio… na adega… as pipas…ovinho, vai para lá uns confusão… Estamos
todos assim a modos que meios aparvados. Ai minha rica senhora…O Demo
soltou-se, valha-nos Santa Susana mais S. Julião. Á medida que vai falando
vai-se persignando rápida e continuamente.
-Piedade
deixa-te dessas choradeiras e leva-me lá ao Julião que quero ver como o homem
está.
-Ai minha
rica Senhora aquilo não é coisa para uma senhora cuidar. Deixe os homens
tratarem do Julião. Eles vão tomar conta do recado. Enquanto fala Piedade vai
enrolando a ponta do avental de riscado preto e branco num desatino de gestos
ensandecidos. Enrola, puxa, desenrola, puxa, aperta, desaperta. O tecido já de
si gasto começa a mostrar uns buracos aqui e ali como se tentasse respirar dos
apertões.
- Já te
disse que quero ver como estão as coisas. Anda daí, agora!
A velha Piedade
olha-a por entre o branco da cal, encolhe os ombros, agarra de novo na ponta do
avental e sai para o pátio. Chinela com força sinal inequívoco de que a coisa
está brava. Resmunga de lábios apertados. Apenas a cabeça parece o badalo do
sino.
-Ai minha
rica Senhora que desgraça, veja este desinço, veja…
Cá fora o
vento continua a assobiar. O pó envolve-as. Com determinação procura o caminho
que as leva ao outro lado junto a um logradouro. Ouve gemidos., procura firmar
a vista nas sombras indistintas que se movem de um lado para outro.
-Oh Jaquim
afasta-te, olha a Senhora
Os homens
afastam-se ligeiramente abrindo uma brecha no círculo que envolve Julião. O
pobre homem deitado no chão mostra uma série de arranhões mais ou menos
profundos e pior do que isso é a perna que se mantém sob a pilha de pedras que
se desmoronaram do muro do logradouro.
- Ajudem
aqui, levantem o entulho. Tu Joaquim segura o Julião, isso. Ó Francisco vai com
a Piedade buscar uma bacia com água para eu limpar o pobre. Vá rápido, mexam as
pernas. Quem é que está mais ferido?
- Na adega
algumas pipas caíram e há gente aleijada.
-Então
mexam-se daqui e vão para lá. Chamem as mulheres. Que ajudem todos.
Os homens
movimentam-se. Dirigem-se então afanados para a adega, pelo caminho vão batendo
nos logradouros e chamando as mulheres que os seguem pressurosas.
Maria F.
olha em redor. Na desolação do dia, S. Gião mantém-se fiel a si mesmo. Aqui e
além abriram-se algumas brechas, as árvores vergaram-se e o caos instalou-se. O
caos e o medo. Há pavor nos rostos, murmúrios nos lábios e preces nos gestos.
Há que reorganizar, há que ser forte. E Caetano como estará, onde andará?
Aperta-se-lhe a alma. Respira fundo, abana a cabeça como que a espargir
pensamentos funestos e retoma a lide.
-Piedade,
Piedade dá-me essa bacia mais os panos e trata de ir ajudar as mulheres na
adega. Confio em ti para as orientares. Vá lá.
-A Senhora
não vai fazer isto pois não? Pergunta a incrédula
-Claro que
vou e é para já.Desanda que há mais gente a precisar de ajuda.
Enxotada do
lugar, Piedade dirige-se para a adega de onde os lamúrios se ouvem cada vez com
mais força.
Maria F
trata de Julião enquanto Joaquim soergue-o e Manel mais dois moços tiram os
pedregulhos. A perna deve estar desfeita pensa.
- Ó Manel
quando acabares de tirar essas pedras, monta no cavalo e vai à vila buscar o
Doutor Venâncio. O pobre não deve ter mãos a medir mas diz que é urgente, que
vais da minha parte. Ouviste?
- Sim, minha
Senhora.
Julião é
retirado e levado para casa. Deitam-no numa enxerga posta na cozinha. As dores
fazem-no perder o acordo. Vai e vem. Assim se manterá até à chegada do médico.
O dia foi
forte em trabalho. Maria enredou-se no alívio das gentes de forma a esquecer a
sua própria ansiedade. Pelas vésperas entrou de novo em casa, sentou-se no
velho banco corrido da cozinha e por ali se deixou ficar. O cansaço era
tremendo todavia este até era esquecido sempre que o marido lhe vinha à mente.
Como e onde estará? A memória devolveu-o nítido, sobretudo aquele olhar que ela
nunca mais esqueceria quando lhe disse que estava de novo de esperanças. Nem
sequer um ano e meio ainda passara., agora parecia-lhe que fora há já muito
tempo, tanto que nem sequer o conseguia segurar. Somente a luz que os olhos de
Caetano desprenderam a tinham marcado. Lembra-se do marido a ter olhado
demoradamente e depois ter sorrido. Aquele sorriso de macho feliz e pleno Ela.
Sentira um certo desconforto. Nem sabia bem porquê. Algo irreprimível. Mas
Caetano era mesmo assim. Um belo homem afável e risonho. O bigode alourado
cobria-lhe uns lábios cheios sempre hilariantes. Os olhos cinzentos-claros como
as continham o júbilo da vida. Quem o visse fardado e montado no seu
“Brilhante” jamais pensaria que aquela figura austera e garbosa transcendia a
folguedo. Caetano era dois. Um militar cioso, ríspido e autoritário. Um homem
simples e feliz com a vida e os seus. Os amigos estimavam-no e apreciavam-no. A
filha adorava-o, a mulher amava-o profundamente apesar dos pequenos estouvamentos
financeiros. Mas ninguém pode ser perfeito, pensa Maria. Caetano é irrequieto
por natureza. Adora mudar, ir de um lado para outro. Adora a cidade e os
salões, adora receber, adora viver. Maria F. acompanha-o sempre. A vida de
ambos é quase perfeita se não fora as mortes dos filhos. Filipe, Maria e
Possidónio faleceram ainda bebés. Pusera um ponto final a tanta dor.
Conformara-se com Ignes que era o seu encanto, A filha devolvia-lhes a alegria
em cada dia Vê-la crescer fora talvez a maior dádiva. Era uma jovem notável
atraia para si as atenções, naturalmente sem esforço. Primeiro era o rosto, a
figura, e logo depois vinha a alegria vestida de encanto simples que envolviam.
Aperta as mãos com força e exclama:
-Onde está
Caetano? Venha, venha para junto de nós!
O vento,
somente o vento ulula à sua volta. Detesta o vento. As suas memórias más vêm
sempre encapadas de vento. Assistiu e assobiou à morte dos seus filhos Quando
exangues de febre e doença caiam no leito, o vento dançava cá fora nas janelas.
Qual dança macabra.
Maria odeia
o vento, teme-o.
Desta vez
não se encolhe nem protege os filhos sob o seu peito antes, ergue os punhos num
desafio de cólera. O vento pára. Surpreendido. Depois ruge, depois grita,
depois dança. Maria não ergue mais os punhos, Maria cospe num trejeito de
raiva, as palavras.”-Não vencerá desta vez, não! Ele vai voltar. Não vai
vencer, eu sou mais forte. Não me encolho, não fujo, cobarde! És cobarde,roubas
e foges!
O vento pára
paralisado. Quem ousou desafiá-lo? Uma mulher! Uma mulher!
Olha-a
demorado e insidioso, olha-a na sua insignificância, todavia há algo naquele
rosto que o faz retroceder, parece que todo o amor da Terra se concentrou num
olhar que o desafia. Há tanto poder, tanta chama, tanto querer. Retrocede
silencioso. Devagar, devagarinho deixa-a. As árvores finalmente descansam os
seus ramos fatigados. A terra acalma-se no seu cobertor e o silêncio desce
sobre a quinta. As vozes cessam. O mundo calou o seu fragor. Respira a dor do
caos.
Caminha de
regresso à casa grande. Tem dentro de si uma força, uma energia que a impele e
a faz erguer ainda mais a cabeça sobre o pescoço esguio. Murmura:
-Amanhã
virá. Estará aqui. Eu sei. Tenho a certeza!
Entra na
cozinha meio desfeita e serenamente numa voz firme que ela mesma desconhece
diz:
-Piedade!
-Deus nos
Valha, Minha Senhora!
-Deixa-te
disso mulher, vá deixa-te de lamúrias. Arranja um homem e vai a Gibraltar saber
como estão as coisas por lá.
-Oh minha
Santa Menina... Senhora isto é coisa do Diabo…Ai que vamos todos morrer.
-Cala-te e
mexe-te. Deixa-te de disparates. Não quero ouvir choraminguices. Há muito que
fazer.
Temos que
cuidar dos vivos, dos que houver. Os mortos já estão descansados.
- Ai minha
rica menina, … e o menino, o Senhor Caetano? Ai por…
-Cala-te já
te disse.
O Senhor Caetano meu marido, está bem.
-Está? Ai…
-Está sim,
eu sei.
-Se a
Menina, a Senhora o diz…Oxalá! E enquanto profere as palavras ergue as mãos ao
céu numa súplica muda, ao mesmo tempo que abana a cabeça, mexendo os lábios num
monólogo aziago.
-Cala-te e
vai fazer o que mandei. Não posso perder tempo com disparates., ouviste?
A voz era ríspida, autoritária escondendo a
insegurança e o medo que se gerara no seu íntimo, porém ela era a Senhora de S.
Gião competia-lhe transmitir firmeza e orientar aquelas pobres almas que se
dobravam à desgraça como espigas em dia de vento. Mas como se sentia
vulnerável, Oh Deus como temia…
Pouco a
pouco os ecos da desgraça são trazidos pelas gentes, que chegam ou que passam
fugindo ou procurando um refúgio. Houve lugares onde o caos foi grande. Consta
que Lisboa ficou destruída, consta que houve muitas mortes, consta que a
desgraça inundou a cidade.
Os amigos e
parentes começam a chegar. Vêm espavoridos, de olhos arregalados. Há medo nosso
rostos e no olhar existe o temor do desconhecido. Parece que esperam por algo.
Trouxeram-lhe notícias de Caetano. Estava bem. Não podia vir por ora o
regimento estava a braços com o caos instalado. Logo viria. Acalmou.
Nas
freguesias em redor o caos foi grande., porém Santa Maria segundo o pároco
António Ribeiro “foi das mais livradas do terramoto” contudo a igreja de Santa
Maria do Castelo viu as suas duas torres ruírem.
Por todo
concelho houve, à excepção de A-dos-Cunhados, casas e lugares ficaram assolados
pela terra ou então ruíram quais baralhos de carta. Quando o tempo serenou foi
tempo de arregaçar as mangas e deitar mãos às obras erguendo tudo de novo.
Assim foi.
Quando o
verão chegou, no ano seguinte, ainda havia sulcos da desgraça todavia
lentamente tudo brotou. Os campos foram particularmente férteis naquele ano. O
acordar dos dias. A vida voltou à sua ladainha. A casa, os campos, as crianças,
Caetano que voltou para casa Ficou aquartelado definitivamente em Torres. Tudo
regressou ao normal, quase tudo. As feridas sararam mas a memória não. A
lembrança daquele dia de Todos os Santos permaneceu um marco cronológico. Um
antes e depois.
Maria
retomou a sua graça no governo da quinta. Caetano dividiu-se entre o regimento
e a boémia.
Quando Inês
tinha dezoito anos a casa vestiu-se uma vez mais de panos negros. Uma febre
levou-a. Foi um desgosto enorme para Maria e mais um motivo de solidão. Caetano
despediu-se definitivamente da família e entrou na descida rápida da
destruição. O álcool secou-o, embotou-o e destruiu-o. Tudo em meia dúzia de
anos.
Enquanto
isso José crescia. A quinta de entre-vinhas foi a sua melhor companheira.
Aprendeu no calor seco da terra quase arenosa a força do querer. Soube que era
ali a sua morada não só a física mas também a fonte do seu espírito. A terra
vestiu-lhe os sentidos e moldou-lhe o físico.
José era S.
Gião no seu melhor.
José fez-se
homem. Os olhos negros grandes e aveludados eram a sua arma. Bebiam neles
outros olhares ardentes, outros rostos. Porém José era a vinha de caules
nodosos e cachos doces.
José casou
com Maria do Carmo, filha do alferes Rodrigues Lisboa. Menina prendada, suave,
de grandes cachos loiros como os bagos da vinha, olhos da cor da videira em
dias de Primavera. Era meiga a sua Maria do Carmo. José bebia nela a sua força.
A vida continuou por S. Gião ao ritmo das terras. Ora em pousio, ora aradas,
lavradas, cultivadas, em flor e depois colhidas. Um ciclo de tempo, tempo de
vidas.
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