ALVA
Alva senta-se no rodado da saia. O frio que lhe atiça as coxas recorda-lhe as palavras gélidas ainda vivas no papel da carta que acabou de reler. Tanto tempo sem saber dele e agora, assim de repente, tudo e nada.
Diz quem escreveu que falecera.
Talvez.
Alva abana a cabeça, incrédula.
Outros tempos, outras terras. Outras cores. Fora há muitos anos. Tantos que decidamente quase se esquecera do contorno do seu rosto. Era tempo de amor. Quando o calor aquecia o corpo, mais os sentidos.
Alva dos Santos.
Que tempos aqueles. Quase olvidara como fora. O tempo tem sempre destas coisas, lava. Lavara-lhe os desejos, apagara-lhe as memórias. Agora recorda. Sente uma tremedeira que há já muito esquecera. A carta. Maldição. Um desvendar de coisas que julgara sepultadas. Não sente saudades. O passado deve ficar por lá. Já fora joeirado. Depois dançado e iluminado de fogo.
Fora num tempo de verão. Quando as amoras refulgiam de pesadas por entre as silvas. Fora quando o pai fizera aquela promessa ao Santo Patrono a propósito das sezões da Lila. Lila era a irmã do meio. Nascera assim fraquinha, e, depois sempre que o verão apertava, a coitada rebolava os olhos, empalidecia, e zás. Caía. Assim pró chão. Desabada. O Chico das Mós, homem de boas promessas e trabalho, empenhou-se a fundo, arrastando toda a família. Alva era moçoila feita por essa altura. Moçoila bonita, muito mesmo. Alva como o nome. Toda ela vibrava. Tinha namoro. Tinha. Até já lá ía a casa, isto é ao pátio, que o pai não era de modernices.
Mas o sofisma da vida, fez que o destino lhe trocasse as rédeas. Jorge Feitor. Ai, ainda lhe rói o nome. Bem-apessoado, bem-falante, bem jeitoso. Tudo bem e bom. Lá foi com o pai até à igreja, à sacristia. Trataram da promessa. Os olhares enviesados que entretanto se iam dando. Os calores. Os sobressaltos. O pai não viu, não reparou. Também fora discreta. Só pelo rabo do olho se encontrarem naquele espaço de cheiro a sabão e cera. Tão lavado e engomado que sabia a pecado só olhar.
Mas naquela noite, deitada na alcova, lado a lado com a Lila que gemia, Santo Deus como aquela alma gemia. Enquanto Lila gemia, e estrebuchava de mansinho, ela rebolava a carne no ardor do cheiro que lhe ficara. Cera e sabão. Decidiu no dia seguinte visitar a igreja. Fazia-o ao domingo com a família. Nunca se apercebera como era bonito! Também de longe e no meio daquela sotaina toda. Pouco tinha para ver. Ah, amanhã ía lá. Tinha que ir.
Levantou-se com os pardais mais o desejo.
Na cozinha encontrou a mãe. Aquela criatura nunca devia dormir. Era a última a deitar-se, ouvia-a de noite, e de manhã já estava de pé. A mãe. Sempre pressentiu nela, mais do que corpo e alma, uma espécie de oráculo de tristeza. Nunca se lembra de a ter visto gargalhar. Os olhos enormes, fundos, as olheiras. Um rosto liso e inexpressivo, mas meigo. A bondade vestia-lhe a pele. Era assim a mãe. Serena ou alheada? Nunca percebeu bem.
.-Ó Alva já a pé? O que te aconteceu?
-Nada, mãe. Não tinha sono. Fez muito calor de noite.
-Estamos no tempo dele., minha filha.
-Ó mãe, como o pai me pediu para tratar do assunto do patrono, levantei-me cedo para ter tudo em ordem e depois ira até à igreja.
-Ah, mas o pai e tu já não foram lá?
-Já mãe, mas sabe como é, há sempre coisas pra fazer…
E fora assim. Visita hoje, encontro amanhã, recado depois. Batina rolada, saia caída e… o mundo mais as rezas, promessas, cera e sabão, tudo desfeito na erva do campo, na alcova por detrás da sacristia. No quarto caiado de branco com o crucifixo na parede. A mudança vestiu-a de mulher. Sabia o quer queria. Não pensava em desistir. Nem Jorge. Como era bom amarem-se. Como se sentia plena. Mesmo quando o cheiro a sabão e cera se misturavam e o olhar do crucifixo a ponteava. Não havia sentimento de culpa. Ela amava um homem. Só isso. Podia durar, queria que durasse. Mas também, não podia.
Era aquele tempo.
Mas, as histórias têm sempre um mas, a Lila, a irmã, a menina das sezões, a doentinha, a tadinha. Não era parvinha, não era, não. Fazia-se. Convinha-lhe. Ameaçou-a. Disse que sabia de tudo. Que a tinha visto. Que a seguira. Que ia dizer ao pai. Que o homem era o padre. Uma vergonha. Uma desgraça.
Alva suspirou.
O último reencontro não foi fácil. Foi de despedida. Não pediu nada, porque nada havia para pedir. Não chorou, porque tinha rido. Não o recriminou. Não tinha que o fazer. Porém, não sentia vergonha, nem asco, nem nada. Apenas estava saciada. Toda. As carnes vibravam, alvas e deleitadas. O resto estava sereno. Tudo.
O seu episódio de vida nunca fora um paralogismo, mas antes o mais puro realismo ideal.
O frio da pedra acorda-a para as palavras.
Levanta-se, entre dentes murmura, enquanto amarfanha a carta. “Ser é ser percebido” foi sempre o que eu quis. Foi tudo o que eu quis.
Act 1 La Traviata: Libiamo, nelieti calici (Brindisi - Inessa Galante
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12 comentários:
Um excelente post! Beijos.
Mateso, grande narrativa!
E uma vontade de dizer onde é que eu já vi isto ou parecido?. - Mas não digo.
Fico-me por uma frase perfeita que, essa sim tem tudo a ver comigo - "Sempre pressentiu nela, mais do que corpo e alma, uma espécie de oráculo de tristeza. "
Obrigada. :)
Lndo texto...mais uma vez repito me.
Lembraste me esta frase:"Que dificil que é a vida dos homens, pensou ela.Eles não têm asas para voar por cima das coisas más"Sofhia de Mello Breyner Andresen- A Fada Oriana]
um bjo
ser é ser
ex ten sa men te
BEIJO
~
O poder silencioso dos oráculos
Belo texto como sempre
Tudo de bom para 2009
Bjs
Precisamos de ser para que possamos sentir o que de fatos somos.
Cadinho RoCo
Querida amiga,
Como sempre, belas histórias aqui nos narras.
Um excelente ANO DE 2009!
Beijinhos
Mário
Excelente texto que me transporta para Alvas que conheci noutros tempos, noutros lugares. A tua escrita tem sempre esse poder. **
e ser percebido é a plenitude
Bela imagem
Prospero 2009
Saudações amigas
um belíssimo texto que só poderia ter sido escrito com o cheiro alvo do natal
agora vamos esperar que 2009 não seja tão preguiçoso quanto o 2008 .prometes?
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um beijo
como sempre... maravilhoso!
um beijo grande
luísa
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