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Zuri me leva!
- Zuri me leva, me leva. Maínha não gosta de Thembi, não gosta, não .Maínha matou a Bunmi de Thembi, puquê Zuri, puquê? Bunmi era velhinha e boínha. Bunmi era amiga de mim. Puquê Zuri? Maínha não é boa, não....
Os soluços são profundos, vêm da lonjura do pequenino coração. Thembi leva as mãozinhas papudas aos olhos salpicados de lágrimas . O ranho espreita, a par da baba, que escorre pelos cantos da boquita prenhe de infância. Enterra a tristeza no corpo de Zuri, o irmão. A camisa, farrapo branco, descai-lhe pelo corpo roliço, cor de chocolate. Nas pernas e pés, a areia fina e branca cola-se como se fosse lantejoulas do mar. Thembi está muito triste. Mataram a sua Bunmi. E ainda lhe roubaram o casaco castanho de quadrados cor do velho Tamu. Tamu, o coqueiro ou antes o castelo, onde Thembi e Bunmi descansavam depois das grandes cavalgadas pela praia. Tamu sempre desgrenhado, por causa do vento, que soprava do mar azul-verde. Tamu, que quando estava triste, deixava cair sempre uma grande nyembeti verde e pesada, que ele, Thembi abria e bebia com gula. Ah, que bom e depois aquele cansaço redondo que o deixava zonzo. Afinal, Thembi era só um mininho piquinino.E o olho fechava de mansinho e dormia. Bunmi, ali ao lado, quietinha, com a pata direita mesmo encostadinha à bochecha como numa espécie de cafuné. Como Thembi gostava. Sentia que o azul de cima e o de baixo entravam assim no seu coraçãozinho, enchiam-no de lindeza dando-lhe uma quentura que o fazia feliz. Depois, quando a tarde entreabria a porta à noite, e a lengalenga dos pescadores começava a ouvir-se vinda do mar, bem como o chapinhar dos remos na água lisa, numa canção de despedida ao espírito do azul-verde, que se ía deitar. Thembi abraçava a sua Bunmi, deixava-a olhar bem para ele, e corria para a pequena floresta logo depois da praia. Thembi suspira e de novo as lágrimas espreitam.
Thembi, pedaço de chocolate doce, recorda aquele outro dia, quando ele e Bunmi brincavam nas águas lisas espelhadas de azul-verde, e, de repente, viram “a mulher peixe”. Bunmi, rápida, nadou para perto dele. Mulher peixe é sereia. E sereia encanta. Não fosse ela roubar o seu pedacinho de chocolate quiçá enfeitiçá-lo. Tartaruga tem muitos anos de mundo- água. Viu coisas que gente nem sonha. O paraíso, lá no fundo é de cores vivas, mais lindas que as de cá, mas tem também muitos perigos. E Bunmi sabe o que a “mulher-peixe” já fez aos homens e aos outros meninos quase homens. Não vá ela, desta vez, querer um minino mesmo. Thembi olha para os cabelos verdes e longos da sereia, os olhos são esquisitos, têm o mundo de coral neles, agarram a alma da gente. O minino sente, sente que a sereia o puxa, puxa. Está já rodando o corpinho na sua direcção, atraído pelos cabelos, pelos olhos, pelos seios verdes, cheios e redondos que lhe lembram os de maínha, assim soltos e opulentos. Lambe os beiços pensando no alimento, e mais um pé que mexe, a água faz ondinhas finas, devagarinho. Bunmi, que também de mansinho se tinha aproximado, dá-lhe uma vigorosa patada que o deixa meio zonzo. O encanto quebrou. A mulher-peixe gemendo volta a mergulhar e Thembi fica ali, zonzo, olhando no vazio. O que passou? Bunmi tão boínha bateu nele? O que passou? Depois Bunmi empurrou-o para o areal. Naquele dia não houve brincadeira. Tamu, o castelo ficou vazio, naquela tarde esquisita. Thembi foi para casa. Maínha estranhou vê-lo assim de cedo. Olhou, remirou mas nada disse, quando o viu deitar-se na esteira, e dormir toda a tarde. Maínha desgostava de Bunmi. Maínha enciumava-se da amiga, Thembi sabia. Estava muito quente, lembra, e doía a cabeça. O dia recolheu-se quando sol se deitou no mar. A noite calçou as estrelas e os sonhos vieram brincar na esteira de Thembi lambuzando-o de centelhas doces.
No outro dia, o sol amanheceu dourado na ilha, como todas as manhãs. Ouro líquido derramado no areal branco e nas águas lisas. Thembi saltou da esteira, esfregou os olhitos, coçou a cabeça e chegou-se perto de Maínha que aquecia o mata-bicho. Beberricou o líquido, lambeu o doce no pão, e devagar, devagarinho foi-se escapulindo. Assim que se achou fora da aldeia, desatou numa corrida desenfreada em direcção à praia. Bunmi já o esperava. Não devia ter dormido muito, porque a cabeça estava inquieta, pequenina, rodando de um lado para o outro, e os olhos grandes, redondos, estavam inchados. Bunmi estava em desassossego, sentiu. Ajoelhou-se, pôs os bracitos roliços à volta do pescoço e deitou a cabeça no casaco de quadrados. Assim ficaram ,um longo tempo, ouvindo-se no silêncio do coração.
E Thembi escutou:
“Há muito, muito tempo, quando as tartarugas se passeavam em bandos no azul-verde, e as ostras também vinham brincar com elas numa roda grande, se ouvia as vozes dos peixe-palhaços, dos peixe-anjos e a dança das anémonas e a cor vestia o azul-verde num turbante colorido. Tão lindo. Só quando o peixe-crocodilo vinha, ou o tubarão, é que tudo fugia para se encapotar no muro de coral, bem escondidinhos à espreita. Logo, vinham para cima rindo, outra vez. Era um tempo feliz. Mas um dia, uma sinhôa de nome Bilkis, de um reino de longe, Sabá diziam chamar-se, visitou o Bazaruto. Era bela. A sua pele ébano puro, brilhante, cabelos negros, olhos enormes. Tão bela que as nossas danças e brincadeiras se quedaram ao vê-la. As ostras, meio tontas, abriram a boca e mostraram o seu tesouro. Bilkis ao ver tantas e lindas pérolas, imperiosa, exigiu-as. Ao mar redes e redes foram lançadas, as pobres primas ostras, foram apanhadas, desventradas e depois de roubadas, algumas devolvidas, outras comidas. A raiva tomou conta de nós. E chamámos o espírito do mar. E chamámos o vento, mais a chuva e o trovão. Chamámos toda a noite. Chamámos. E na manhã seguinte quando a bela Bilkis, nua, se veio banhar no azul-verde, os espíritos agarraram-na, amordaçaram-na e levaram-na para o fundo. O castigo foi grande, muito. Já Bunmi era avó, quando viu a nova Bilkis. Já não era bela, já não era mulher, era sereia, era a” mulher peixe.” Desde então ela vem sempre que cheira inocência. Por isso, meu pedacinho de chocolate, por isso eu te bati ontem. Não esqueças nunca: Cucurira chimunanga, manguana chinowiq , que é como quem diz ,se criares uma árvore com espinhos, amanhã picar-te-ás. “
Thembi recordou tudo isto entre soluços, muita tristeza. De cabeça ainda afundada na barriga de Zuri, o belo, Thembi, o forte, despregou o olho lentamente, e olhou. Viu-a nua, despida do seu belo casaco de quadrados castanhos, que desaparecera. Jazia, ali, entre as pernas dos pescadores mais as de Maínha. Até Tamu deixara que os seus cabelos tapassem o areal, uma espécie de cama para a sua amiga Bunmi. Quis gritar, chorar, berrar. Quis tudo, mas o som não saiu. Ficou mudo, trémulo, assim dorido de sentir. E enquanto a tristeza o tomava, uma voz, aquela que Bunmi fazia ouvir, aquela que vinha do coração e lhe dizia:”Pedacito de chocolate estou no teu coração, sempre. Fecha a boca, os olhos, vês… Sorri… Sorri…”
-Zuri me leva!
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15 comentários:
Que coisa mai' linda!
Onde descobriste isto?
O que aparece em baixo é o nome do autor?
Quero ler, quero ler mais!!!
Beijooo
A autoria é minha.
Bj.
Belo conto pleno dum imaginário de terras longínquas, de lendas que se fazem (quase) realidade.
A cada leitura fico mais presa da tua escrita.
Tão bonito...
Bonito de se ler, muito bem
saudações amigas
um espanto
traduzido
em conto
ÚNICO
e
ABSOLUTO
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um beijo
"Onde há maior sensibilidade é mais forte o martírio."
(Leonardo Da Vinci
Vem de longe aqui tão perto este cheiro a maresia.
Bonito
Tens uma capacidade incrível de te meteres nas diferentes "peles". Parabéns!
Só falta publicar todos estes contos.
Um abraço.
Um conto quente.
Como as águas, os corpos e até o "cansaço redondo".
Belissimo minha Querida Mateso!
Tanta cor no teu Azul!
Um beijo
Uma doçura de um conto, cheio de beleza
beijinho
Um beijo, amiga. Vinha à procura de mais um dos teus belos contos.
Boa semana
suadações amigas
Imensa ternura neste teu texto. Muito, muito bonito.
Um beijo
Uma delícia, este mundo de sentires com uma tartaruga!
É um texto muito original e interessante. Só posso mesmo é dizer, mais uma vez: Parabéns! :)
Um beijinho
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