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.Memory - Cats
Urze e Giesta V
(…)
Isabel senta-se na bancada de todos os dias. Está presente, contudo ausente de vontade, quebrou-se-lhe o encanto da porfia intelectual, do gozo íntimo da descoberta. Bloqueou, simplesmente. A mente sempre célere assemelha-se a um aspirador em agonia.
Zune, mas não aspira a multiplicidade de mutações que surgem mesmo ali, sob a lente, em segundos de exposição. Hoje o pensamento voa para além do tecto científico. Hoje o coração dita-lhe as hipóteses num teorema ainda não demonstrado. A racionalidade do seu ser treme perante a incógnita. Não estava preparada para este desafio. O seu rosto onde a serenidade sempre foi uma mais-valia, está inquieto. A mobilidade contraída dos maxilares estende-se ao rictus dos lábios que se pressente crispado, pese o sorriso afivelado à laia de cartão-de-visita. A situação apanhara-a desprevenida. Bem quase. Afasta ligeiramente o microscópio num movimento mecânico, gira na cadeira e olha para o exterior. Olha mas não vê, olha apenas dentro dos seus pensamentos. E analisa. É bem verdade, que ultimamente havia um quase foge que foge de palavras. É bem verdade, que o dia-a-dia feito de correrias, lugares comuns, e pequenos muitos nadas a tinham mergulhado numa rotina doméstica. É verdade, que os filhos mais as suas necessidades e interesses a tinham feito esquecer as de Pedro, e as dela. É verdade que os silêncios se tinham adensado um pouco, mas sempre prática, pensara que era o cansaço, não um do outro, mas da labuta do dia-a-dia. Não lhe passara pela cabeça, que o seu Pedro sempre tão alegre, e cordato, tivesse tomado o barco numa rota enviesada da sua. As certezas da sua vida tinham-se desmoronado num efeito de dominó. Não era justo. Não era a sua luta. Ela, Isabel Meireles lutadora nata, mulher racional, amante terna, mãe solícita, ser humano vivo e palpitante, não queria, não aceitava, este acto na peça da sua vida. O palco continuava lá, imutável na demanda permanente dos seus actores e das suas elocuções, na representação necessária dos seus papéis de vida. Porque alterar uma peça, quando ainda se vai a meio? Não será roubar o sentido e o ritmo da efabulação? Não, ela não vai permitir, pelo menos nos termos que Pedro quer. Não vai, não pode, é algo superior a si, é algo que lhe revolve as entranhas, amachuca o coração e lhe lança vento na alma. Não! Os filhos? Não pensara ainda neles. Agora também não, depois. Tem que analisar o que falha entre ela e o marido. Não se sente culpada, porque não se sente em falta. Não vislumbra uma razão poderosa. Sabe que o trabalho, a carreira a têm absorvido muito, sabe que o quotidiano necessita de tantas premissas, que lhe é imposta uma fasquia à qual tem que chegar, a fim de obter ulteriores benesses, traduzidas em ascensão profissional, e consequentemente qualidade material de vida. O mundo, hoje, amanhece em cada segundo de exigência exterior. É verdade que muitas vezes esqueceu, melhor, colocou para trás prioridades como horas de simples conversa a dois, um descer de rua de ombros colados, um olhar quedo de sentir perpassando as palavras. Errou. Estiolou os segundos. Mas não vai gritar, nem muito menos cravar a sua dor em palavras cuspidas de ressentimento. A garra, o ânimo, a dor são apenas adjectivos que se plasmam nos lábios, vomitados ou cuspidos ou ainda simplesmente rolados de acordo com a personalidade das pessoas. Fazer do pouco muito, como atavio de personalidade, não lhe está na massa do sangue. Estar na crista da onda, apenas porque o seu ego a faz espreitar por entre os outros, também não é seu feitio. Deverá estar errada, pois que, hoje em dia, muitos gritam o vazio de si, pensando que são melhor escutados, no entanto o clamor dilui-se no próprio estertor do sibilar. Está a desviar-se, está a divagar. Não pode, tem que objectivar colocar em fio de raciocínio os últimos anos de casada. Achar o fio e puxá-lo, ou simplesmente dar-lhe um nó para estancar, o desfiar. Alguém lhe toca no ombro. Volta-se lentamente, tenta focar as pupilas nesse outro vulto que lhe está em frente, vê um rosto em branco seguido de uma bata branca. É o branco que lhe dá a sequência ocular. Devagar, inicia a descodificação visual, ao mesmo tempo que, arruma, algures os seus pensamentos. Perfeita dicotomia racio-emotiva. Aqui e agora, o mundo na lamela da ciência. Ali e depois, a vida na concha da emoção, são os andamentos da sua composição.
-Isabel…Isabel estás bem?
-Oh…sim. Claro que sim. Estava apenas a pensar.
- Olha, não te esqueças da reunião logo. Já sabes às seis.
-Não sei se poderei, Jorge. Não sei mesmo. Problemas em casa.
-Vê lá, Isabel. É importante. Tu tens que fazer o relatório da tua investigação laboratorial. Estamos à espera, queremos saber os procedimentos, resultados e conclusões se acaso já lá chegaste ou ainda estás por chegar. Sabes que há muita coisa em jogo, Isabel…
-Eu sei, Jorge, eu sei. Mas tenho também que resolver algo muito importante. Também há mais algo em jogo, que não uma simples investigação…
-Tem cuidado, Isabel. Já sabes como é… não há margem para opção…a razão deve sempre sobrepor a emoção, minha querida. Tu sabes isso… não o esqueças. Lá fora o mundo é outro. Tu escolheste, já lá vão alguns anos.
-Eu sei, eu sei… eu preciso… eu… está bem irei à reunião. Mas serei breve. Peço-te que arranjes de modo a que seja a primeira a apresentar.
-O.K. minha querida. Fá-lo-ei por ti. Fizeste bem em decidir assim. Agradecemos-te.
-Pois será… talvez, quem sabe? Mas não me resolve os meus problemas. Darei um jeito.
Dar um jeito. Não tem sido sempre aquilo que tem feito? Segurar pontas, desdobrar-se, correr daqui para ali, e de lá para cá. Um tempo divido entre a presença e a ausência. Pensar que conjugava o estar mais o ficar, mas afinal, o tempo fora-lhe ingrato. Perdera no meio tempo ,a direcção correcta do seu sentir. A sua bússola interior desviara-se sub-repticiamente e não se apercebera.
Por isso, o que mais fazia um dia, que importância tinha no que já estava inquinado? Nada. Iria à reunião, voltaria para casa, para a vidinha familiar de todos os dias. Deitar-se-ía na cama com o marido, falariam entre monossílabos, adormeceriam lado a lado no calor dos lençóis mais dos corpos e no dia seguinte retomariam o dia anterior apenas acrescido no calendário. Era, e fora a sua vida. Porém agora. Tudo tremia perante um vazio que Pedro dizia sentir e que o afogava. E ela? Por acaso alguém lhe perguntou como se sentia? O correr dos anos desfizera-lhe as quimeras, roera-lhe os sonhos, mas agarrara sempre o que a vida lhe dera, por pouco que fosse. Era a sua índole. Não se estoqueava em questões existenciais, porque sabia que a vida era breve passagem de sentires. A mutabilidade, plasticidade e brevidade do viver tinham-lhe há muito ensinado a aceitar o que recebia. A inquietação dos dias gizava-a na consciência de quase cumprir, o possível.
Levanta-se maquinalmente, ajeita o cabelo e endireita os ombros. O olhar reflecte a gruta das suas emoções, contudo um sorriso afivelado, mesmo que lasso, dá sempre um toque. Vai até á secretária, abre uma gaveta, pega numa pasta ,e num gesto tão pessoal encosta-a ao peito ,como se fora filho seu em doçura de embalo.
São cinco horas da tarde. Mais uma hora e picos e estará de regresso a casa.
No tempo de acrisolar.
16 comentários:
Este blog está lindo.
Para ler melhor terei de voltar amanhã. Um pouco mais cedo. Gosto de ler devagar. Saborear. Tudo.
Boa semana.
Li atentamente este texto e o anterior. Com muito gosto! Parabéns pelo amor à escrita e pelo interesse do enredo acerca da vida de uma mulher tão actual quanto me parece ser esta Isabel, uma verdadeira heróina literária.
Farei por acompanhar o desenrolar... :)
Belo momento que aqui passei. Voltarei com calma, pois esta escrita promete.
Abraços e convites d´A SEIVA e do EU, SER IMPERFEITO.
muito bem escrito (já tinha gostado muito da parte anterior).
parabéns.
abraço
luísa
Ia dizer o que já está dito pela Pin gente.
Mas deixa-me só por um pouco divagar.
Esta é a realidade de hoje em dia, ainda?
A mulher para ter carreira, tem de ter como parceiro alguém que nada tenha de educação machista, e isso é muito raro.
As mulheres da minha geração tentaram, muitas, educar os filhos sem lhes dar oportunidade de o serem em casa.
Mas os Pais, esses eram-no profundamente, por isso houve sempre duas imagens, dois exemplos.
Muitas, também achavam que os filhos nada teriam de fazer em casa....
Por isso ser fundamental que quando se começa a vivência a dois, as mulheres, nem por amor, transigirem na divisão de tarefas.
É a educação feita pela parceira, que é importante, nestas alturas.
Rotinas sempre as há, boas e más.
É importante não deixar que as más se instalem.
Desculpa o tamanho do comentário, mas este é um tema que me interessa.
Beijinho
Na vida não basta ter razão
por vezes as emoções
valem uma eternidade
Sempre bem escrito
e apetecível
:)***
o prazer mais do que redondo em continuar a ler a saga de Isabel
um deleite
o querer mais e mais
o saber
o ficar à espera
DE MAIS
.
um beijo ,Matezinha
e fico à espera da continuação
beijinho
Gosto tanto de te ler.sempre.
bjo
"Estar na crista da onda, apenas porque o seu ego a faz espreitar por entre os outros, também não é seu feitio. Deverá estar errada, pois que, hoje em dia, muitos gritam o vazio de si, pensando que são melhor escutados, no entanto o clamor dilui-se no próprio estertor do sibilar."
Finalmente arranjei um bocadinho para te vir ler com tranquilidade e cabeça. Se as primeiras linhas me prenderam de imediato, o passo que cito é-me tão real... Beijo!
Uma escrita viva que nos transporta a lugares interiores.Um beijo.
Beijo de bom dia.....URZE.
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hei.de voltar.
espero.
(obrigada)
Querida amiga,
Como sempre, presenteias-nos com belos textos. E este, é mais um a juntar a muitos outros, de enorme qualidade, e oportunidade.
Um beijo doce
Mário.
La muerte no es el final.
Nem imaginas como eu compreendo o Pedro.
e a Isabel.
mas como é que se divide a alma sem querer entre o amor à família e à investigação?
este texto dói-me de lucidez Mateso
porque
tantos têm mesmo de optar.
e neste caso parece-me ser tarde demais..
saio de coração apertadito
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