Francisca
Salta da alcova. O corpo despe-se do calor morno. Os pés pendem encolhidos procurando o chão. Sente o fresco, um arrepio percorre-lhe as costas. A manhã despediu a noite entre lágrimas. Ergue o busto, abre os braços e sorri ao dia. Enfia os pés nos chinelos tortos e corre para a janela. Abre-a de par em par e sorve a manhã. É hoje. É hoje.
Enfia o robe sobre a breve camisa, dirige-se para a casa de banho. Despe-se e entra na banheira. A água morna revigora-lhe os músculos e apazigua-lhe o segredo. Lentamente como a medo acaricia os seios e o ventre liso. Sorri, um sorriso de dentro para fora qual onda rolada no areal dos lábios. Olha-se depois ao espelho na faceirice da juventude, na firmeza da vontade. Prende o cabelo deixando livre o rosto nacarado, perfeito, sombreado a negro brilhante. A luz emana-lhe. Gentil veste-se. Hoje, não sabe bem porquê, põe de lado as suas eternas calças, deixa escorregar sobre o corpo gracioso aquele vestido florido que comprara num dia de sol. Gostara dele pela luz, mas depois pensou que não era o seu estilo, e pendurou-o. Mas hoje sentia que o tinha que vestir. E o assim fez.
Grácil enfia os pés nas sandálias abertas deixando os dedos beberem o sol de si, depois suspira e humedece os lábios túrgidos. Sente que é feliz. Perpassa nela uma névoa de sensibilidade que a deixa alagada de vida como não sabia sentir. Francisca, vinte e cinco anos. Um percurso descendente, gasto, sentido, perdido e depois? Depois achado. Uma vida cortada por teias da morte. Um futuro hipotecado no turbilhão dos sentidos. Esses, que agora pressentem puros, foram negros, avassaladores, envolventes e aviltantes, derrubaram-lhe a alma e acrescentaram-lhe o vício. O mundo da droga fora seu companheiro. O mundo colorido, lambido e dorido. Saber, sentir que não era mais daquilo que quisera ser, saber que o amanhã não era senão a noite do hoje, saber tudo e nada, e nada, e tudo, de um vazio. Ter dezassete anos já vividos, ter vinte corroídos, ter vinte e dois corrompidos e ter, e ter sempre mais, e nada mais. Fora assim o seu percurso de vida. A aluna brilhante, ficara para trás nuns quaisquer bancos de uma faculdade. A argúcia de espírito transformara-se em ardil de pantomina, em embuste servil. Desejara apenas viver por viver, correr por correr, amar por amar. Desejara tudo, e nada em mil promessas de cada dia, em voltar atrás, ao principio. Não pudera, não fora capaz. Os vícios em si, mais o vício a seu lado tinham-na sedado. O seu companheiro, antes a sua metade sexual, assim o fora desde os seus quinze anos, jovem brilhante, também ausente de vontade e compromisso pessoal, vergara, também, no corredor deslizante do submundo. Pensamentos altruístas que escondiam as aviltações hedonístas. O casal perfeito no deslizar da razão. Sem formação, sem mais mesadas, sós em si, e por si, finalmente trabalharam. Caixas de super-mercado algures neste país. Parcos rendimentos. A segurança de uma infância, a fartura de uma adolescência, o quase excesso de uma precoce juventude, tornados míngua de haveres e subsistência. A vida na quadratura real da luta. Pouco a pouco foram-se a ela. Francisca e Eduardo.
Nesta manhã de sol, no dia de hoje, Francisca sorri, sorri muito. Eduardo não está, foi para o trabalho. Sente força em si, sente que algo a subtraiu, finalmente, daquela outra vida, sente que a vida que transporta, tão incipiente ainda, é, e será, o seu esteio do ainda presente, de um amanhã que pensa ser também presente. Moldado qual barro térreo no seu útero vivificado, o seu filho, beatitude aquosa do seu eu, quinhoado na cópula do seu companheiro Eduardo, o Pai.
Fecha a porta do minúsculo e despido apartamento. Repara pela primeira vez como é deprimente de nudez. Apenas o sol inunda o espaço, o resto é contra-luz despojado. Pequenos objectos sem sentido perdem-se pelo chão, nas paredes fios emaranhados tecem as teias do ontem. Mentalmente remoça na ideia o agasalhar em cor, e luz. Suspira. Tem à sua frente uma batalha difícil, convencer a família, a sua e de Eduardo, que algo mudou neles, que o futuro não será mais um sucedâneo de cinzento-negro mas antes o arco-íris de todos os dias. No alcantilado familiar terá que fazer passar a sua harmonia interior, fazer acreditar, que esta vida germinada, lhes dará força para retomar o seu próprio paradigma, aquele que um dia fora despido como qualquer outra peça em momento de turbilhão, confusão ou negação. Despem-se tantas coisas. Jogam-se muitas outras na lama disforme, seca e aderente da servidão ao vício. Desnudam-se as vontades em papas putrefactas de amanhãs perdidos. Ela, Francisca, vinte e cinco anos, sabe-o!
Mas isso foi, hoje não é, e o amanhã virá. Não tem medo. É forte. É jovem. O ontem ficou além ,por detrás da porta que fecharam. As portas também são seguras. Ela confia. A chave tem-na na sua vontade. Suspira.
E sorrindo abraça o mundo vestido de amanhã.
8 comentários:
Um canto de esperança. De força e vontade de um amanhã diferente.
Gostei muito.
Sempre a esperança...
Gosto da tua escrita(eu que sou de poucas palavras admiro-te!)
Beijinho*
e sabe que ao abrir a porta, está segura e decidida do que vai ser e fazer a cada passo que der ;) um beijo.
A coragem e a vontade de segui em frente!***
Se um dia tivesse uam filha era este o nome que lhe daria.
um bjo
trocou seu negro trajar por um em flor
pequeno botão esperançado noutra vida
gente semente em nova terra semeada
futuro aberto em par depois da despedida
abraço
A caramba Mateso que sensação ...
A idade em que se pensa que o mundo existe ... porque nós existimos. Que para todas as portas fechadas existe um porta aberta e que não há obstáculo intransponível. A tua personagem sabe como é !
... até eu suspiro e não é nada comigo :)
Beijinhos
A Francisca anda por aí, vamos dar-lhe um sorriso de esperança confiadamente.
Grata pelas vossas visitas.
Bj.
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