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15 abril, 2008





Francisca

Salta da alcova. O corpo despe-se do calor morno. Os pés pendem encolhidos procurando o chão. Sente o fresco, um arrepio percorre-lhe as costas. A manhã despediu a noite entre lágrimas. Ergue o busto, abre os braços e sorri ao dia. Enfia os pés nos chinelos tortos e corre para a janela. Abre-a de par em par e sorve a manhã. É hoje. É hoje.

Enfia o robe sobre a breve camisa, dirige-se para a casa de banho. Despe-se e entra na banheira. A água morna revigora-lhe os músculos e apazigua-lhe o segredo. Lentamente como a medo acaricia os seios e o ventre liso. Sorri, um sorriso de dentro para fora qual onda rolada no areal dos lábios. Olha-se depois ao espelho na faceirice da juventude, na firmeza da vontade. Prende o cabelo deixando livre o rosto nacarado, perfeito, sombreado a negro brilhante. A luz emana-lhe. Gentil veste-se. Hoje, não sabe bem porquê, põe de lado as suas eternas calças, deixa escorregar sobre o corpo gracioso aquele vestido florido que comprara num dia de sol. Gostara dele pela luz, mas depois pensou que não era o seu estilo, e pendurou-o. Mas hoje sentia que o tinha que vestir. E o assim fez.

Grácil enfia os pés nas sandálias abertas deixando os dedos beberem o sol de si, depois suspira e humedece os lábios túrgidos. Sente que é feliz. Perpassa nela uma névoa de sensibilidade que a deixa alagada de vida como não sabia sentir. Francisca, vinte e cinco anos. Um percurso descendente, gasto, sentido, perdido e depois? Depois achado. Uma vida cortada por teias da morte. Um futuro hipotecado no turbilhão dos sentidos. Esses, que agora pressentem puros, foram negros, avassaladores, envolventes e aviltantes, derrubaram-lhe a alma e acrescentaram-lhe o vício. O mundo da droga fora seu companheiro. O mundo colorido, lambido e dorido. Saber, sentir que não era mais daquilo que quisera ser, saber que o amanhã não era senão a noite do hoje, saber tudo e nada, e nada, e tudo, de um vazio. Ter dezassete anos já vividos, ter vinte corroídos, ter vinte e dois corrompidos e ter, e ter sempre mais, e nada mais. Fora assim o seu percurso de vida. A aluna brilhante, ficara para trás nuns quaisquer bancos de uma faculdade. A argúcia de espírito transformara-se em ardil de pantomina, em embuste servil. Desejara apenas viver por viver, correr por correr, amar por amar. Desejara tudo, e nada em mil promessas de cada dia, em voltar atrás, ao principio. Não pudera, não fora capaz. Os vícios em si, mais o vício a seu lado tinham-na sedado. O seu companheiro, antes a sua metade sexual, assim o fora desde os seus quinze anos, jovem brilhante, também ausente de vontade e compromisso pessoal, vergara, também, no corredor deslizante do submundo. Pensamentos altruístas que escondiam as aviltações hedonístas. O casal perfeito no deslizar da razão. Sem formação, sem mais mesadas, sós em si, e por si, finalmente trabalharam. Caixas de super-mercado algures neste país. Parcos rendimentos. A segurança de uma infância, a fartura de uma adolescência, o quase excesso de uma precoce juventude, tornados míngua de haveres e subsistência. A vida na quadratura real da luta. Pouco a pouco foram-se a ela. Francisca e Eduardo.

Nesta manhã de sol, no dia de hoje, Francisca sorri, sorri muito. Eduardo não está, foi para o trabalho. Sente força em si, sente que algo a subtraiu, finalmente, daquela outra vida, sente que a vida que transporta, tão incipiente ainda, é, e será, o seu esteio do ainda presente, de um amanhã que pensa ser também presente. Moldado qual barro térreo no seu útero vivificado, o seu filho, beatitude aquosa do seu eu, quinhoado na cópula do seu companheiro Eduardo, o Pai.

Fecha a porta do minúsculo e despido apartamento. Repara pela primeira vez como é deprimente de nudez. Apenas o sol inunda o espaço, o resto é contra-luz despojado. Pequenos objectos sem sentido perdem-se pelo chão, nas paredes fios emaranhados tecem as teias do ontem. Mentalmente remoça na ideia o agasalhar em cor, e luz. Suspira. Tem à sua frente uma batalha difícil, convencer a família, a sua e de Eduardo, que algo mudou neles, que o futuro não será mais um sucedâneo de cinzento-negro mas antes o arco-íris de todos os dias. No alcantilado familiar terá que fazer passar a sua harmonia interior, fazer acreditar, que esta vida germinada, lhes dará força para retomar o seu próprio paradigma, aquele que um dia fora despido como qualquer outra peça em momento de turbilhão, confusão ou negação. Despem-se tantas coisas. Jogam-se muitas outras na lama disforme, seca e aderente da servidão ao vício. Desnudam-se as vontades em papas putrefactas de amanhãs perdidos. Ela, Francisca, vinte e cinco anos, sabe-o!

Mas isso foi, hoje não é, e o amanhã virá. Não tem medo. É forte. É jovem. O ontem ficou além ,por detrás da porta que fecharam. As portas também são seguras. Ela confia. A chave tem-na na sua vontade. Suspira.

E sorrindo abraça o mundo vestido de amanhã.

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8 comentários:

  1. Um canto de esperança. De força e vontade de um amanhã diferente.
    Gostei muito.

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  2. Sempre a esperança...
    Gosto da tua escrita(eu que sou de poucas palavras admiro-te!)

    Beijinho*

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  3. e sabe que ao abrir a porta, está segura e decidida do que vai ser e fazer a cada passo que der ;) um beijo.

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  4. A coragem e a vontade de segui em frente!***

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  5. Se um dia tivesse uam filha era este o nome que lhe daria.

    um bjo

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  6. trocou seu negro trajar por um em flor
    pequeno botão esperançado noutra vida
    gente semente em nova terra semeada
    futuro aberto em par depois da despedida


    abraço

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  7. A caramba Mateso que sensação ...

    A idade em que se pensa que o mundo existe ... porque nós existimos. Que para todas as portas fechadas existe um porta aberta e que não há obstáculo intransponível. A tua personagem sabe como é !

    ... até eu suspiro e não é nada comigo :)

    Beijinhos

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  8. A Francisca anda por aí, vamos dar-lhe um sorriso de esperança confiadamente.
    Grata pelas vossas visitas.
    Bj.

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