A Chuva na Cidade.
A Chuva cai gorda e fria. O asfalto vibra em espelho deslavado. O céu vestiu um casaco roto de cinzento opaco. Na rua perpassa vento que abana as gotas redondas de água. O dia magoa-se soprado de água, e solidão. As ruas estão corridas de água em poças escuras ou de correntes esparsas de amarelo barrento. É a cidade lavada, que liberta o pó dos seus sonhos perdidos.
Um homem, um só, retalha a água por entre os passos de uma rua. Dança no calcorreio. Os pés, gelados dentro de uns sapatos cansados onde as estrias engraxadas se enrugam de água, enfrentam o dia. A gola erguida de um casaco que já teve melhores dias, a par de umas calças coçadas, revelam o homem jovem de face rude. Os ombros carregam o peso do dia mais do sentir. São largos mas abaulados como se o correr do tempo os saturassem de desconsolos.
Tem o nome de Albano. Albano Vieira como usa apresentar-se naquele rumorejar cavo. Atravessa a rua húmida de chuvada e entra no café. Olha em redor. Quase cheio. Toma o lugar junto á janela, na mesa que espreita a rua. Sente-se aquecido pelo bafo quente que lhe chega ao rosto.
Pede um galão. O dinheiro não dá para mais. Enganar as horas do tempo e do corpo. Uma arte que domina. Está desempregado. Está só.
Um dia, já quase difuso tivera família. Companheira, filho e emprego. Hoje tem uma mão cheia de vida vazia mais um coração esvaído de luta. São os alcatruzes da nora no seu perpétuo rodar. Lenta e inexoravelmente. Ora em cima, ora descendo, até ao fim.
Suspira, abana a cabeça espargindo gotículas em redor. Leva os dedos longos ao cabelo que percorre como se fora um arado cortando a terra. Cruza a perna esquerda, endireita o tronco e olha em redor. Velhos. Enrugados e pregueados sentam-se em grupos. Falam dos grandes nadas do seu dia. Discutem em voz entaramelada a politiquice nacional. A coisa pública em pires de bicas, cimbalinos ou outros regionalismos, entornada, aguada ou puramente manchada. O tempo sentado na flacidez da vida enquanto o espírito ainda brinca nos canteiros do pensamento.
As vozes tremulam por vezes, enrolam-se na falta dos dentes esganiçam-se na ausência do ouvido ou tornam-se sussurradas quando brotam mais sibilinas. Calendário vivo de uma outra era já em remanso.
Fecha os ouvidos aos sons, afila o olhar em frente. Vê em forma difusa, do outro lado, uma montra. Pingos desfeitos embaciam-na. Silhuetas de modelos parados vestem a roupagem da fantasia de uma estação. E as pessoas continuam a passar. Nos passos esgrimidos sob os fios líquidos, há pressa num vai e vem cadenciado de rumo.
Os candeeiros pestanejaram de amarelo para o céu. O nevoeiro adensou-se. A noite começa a descer à cidade molhada. A solidão esconde-se nas esquinas.
Albano levanta-se, levanta a gola, lança uma moeda sobre a mesa e sai para a rua. O estrebuchar do dia acolhe-o. Mergulha na rua de asfalto luzídio e brilhos manchados. O deslizar dos pneus, o chiar dos travões, o buzinar estridente são ecos perdidos de movimento.
Ouve mesmo por cima da sua cabeça o correr das persianas. Mais pálpebras que escondem o calor de gente. Mais um muro em volta daquela ilha. A cidade prepara-se para descansar sob o xaile azul da noite.
Continua o seu deambular. Chega ao velho prédio. Empurra a porta, galga a velha escada que range sob os seus pés. Qual ladrão abre devagar, devagarinho, a porta. Olha, espreita. Não vê ninguém, em quase duas passadas cruza o corredor, entra no seu pequeno quarto, despido de quase tudo senão de uma cama e uma cadeira. Num vão de parede pendura o que tem. O espaço sobra para o que falta. Atira-se para cima da cama. Dá um quase pontapé e um sapato solta-se, depois o outro. Rebola. Agarra na almofada tapando meio rosto e soluça. Não. Arqueja, repuxa o cabelo, arfa de raiva e de dor. Sente-se violado. O desatino do não ter, a amargura do caos solitário.
Tem trinta e cinco anos. Um prefácio de luta e um contar presente de angústias. O seu epílogo? Tê-lo-á? Talvez as páginas ainda estejam vazias, talvez a estória deva ser reescrita, talvez o amanhã seja o enredo buscado da sua vida. Talvez, pensa.
Relembra outros dias. O passado vibra glorioso e mordido no seu espírito. Quando tinha gente a seu lado. Carne da sua carne e espírito comungado. Dias de antanho, nebulosos, mas agora achados gloriosos. Sabe -se o travo da coisa quando a boca está faminta. O seu filho, o seu menino. Já vai para cinco anos. Raramente o vê. Prefere esconder-se, prefere ignorar a sua miséria. Procura quebrá-la, mas os alcatruzes não sobem. Um dia pensa, um dia, conseguirá.
A companheira, não a falta. É apenas um tempo que passou. Deixou-o assim de só. Mas o seu menino… sente-o ainda tenro nos seus braços, no gorjeio de um sorriso.
Ana, a mãe, sua companheira de um breve hiato, advogada, avilta-o na sua ascensão célere. Ele, para quem as bolsas já terminaram depois de mestrado, doutoramento e pós-doutoramento, ele cujo saber académico obsta a um simples trabalho, vagueia na obscuridade da tarefa fortuita de dias. É a nova ordem de um país de malha rota. É o gozo sentado das estatísticas manipuladas. É também o futuro hipotecado de uma geração. A sua!
Levanta-se. A janela retalha o azul de um céu, que embora molhado, beija a lua timidamente. Os vidros lavados de noite chamam-no. Abre-os e respira, inspirando aquele cheiro de molhado misturado com o tossido dos carros, e o pó da vida. Odor único de mundo apressado, de corpos suados, de almas estioladas, de vontades desfeitas e sonhos abortados. É a cidade vibrátil, de tons quentes e respirares entrecortados. É o mundo sussurrante, lascivo, envolvente que o chama sempre que lhe fixa a âncora pese a corrente o afundar.
Veste o casaco. Desce a escadas. A chuva enxuga por ora as suas lágrimas. A humidade envolve-o, um passo, outro, mais outro. Simplesmente mergulha na cidade.
Lá em cima, na sua janela, o luar da noite veio sentar-se no parapeito.