Murmúrios
Dorme o monte embalado no vento do tempo. Dormem as gentes no aconchego morno dos corpos. Há prece muda nos sinos ensonados. Encarrapitada, lá no cimo, a aldeia dorme. Agasalha-se nas suas ruas estreitas calçadas de xisto, sempre que a melodia sibilina assobia por entre os dentes de pedra. É a ladainha agreste da voz do mundo.
Foi por ali que calcorreei os caminhos de pé nu ou bota gasta, que vesti as calças de alças e remendos. As costas das mãos foram o linho que me secou, as pedras calejaram-me os pés, a terra, mole e fremente vestiu-me as pernas e o rosto de poalha fina. Foi assim que cresci entre os homens e os outros bichos numa terra nua de poesia que quer as letras quer as aguarelas teimam em enroupar.
É essa terra, a matriz, cuja alma se desfia sob os meus pés cansados, que eu oiço no calcorreio dos campos, ou quando adormeço no crepúsculo do dia. Oiço-a quando a noite desliza nos campos drogados de adubo. Foi esta a terra que me moldou, qual pedaço de barro desterroado por pés convulsos de labuta. Paro no alto, junto da oliveira prenhe de fruto. O vento traz-me aquele ciciar macio que me estremece. Dobro-me. Atordoa-me a força que se desprende, o hálito que me envolve. Sinto-me zonzo. O húmus das suas entranhas é demasiado forte. Já não lhe pertenço como outrora.
A memória devolve-me a sua cantilena das tardes quentes, era então, assim, que eu a escutava:
“Sou a erva-fina, o cheiro húmido que lava o sentir. Sou a flor miúda, amarela vinagreira que brota nos dias húmidos quando o sol resolve preguiçar. Sou a semente do mundo que germina humilde sob a capa que me vestem, borrifam-me as chuvas, pisam-me os pés, exaurem-me as bocas, amaldiçoam-me os sóis e os ventos, debicam-me as aves, sugam-me os répteis. Mas eu sou a Mãe, o útero do Mundo.”
Cresci nesta melopeia de sentires, entre o tempero do corpo e a forja do espírito. A terra, a aldeia, foi o meu berço. A voz do vento, o odor húmido da terra, o espaço em declive folheado de vinhedos, o rio lá em baixo manso e liquefeito de tons embebedou-me sempre a razão. Há neste pedaço de mundo uma magia tal que faz a Gente crescer para lá do corpo. Casa rude de traços ásperos e janelas abertas onde as paredes xistosas deixam aninhar o vento do destino. Eis a fachada onde mora o sentir. Barro, xisto, água, semente, vento, sol, chuva e labor germinam o telúrico de um povo.
Subo a estrada estreita retorta pelo xisto que se ergue nos taludes socalcados da vinha. Lenta e deliberadamente aspiro a poalha da terra me envolve. Sinto-a no rosto, respiro-a Aquele sabor a terra forra-me a língua, cuspo na estrada estreita. Cuspo mas o sabor fica. Engulo. Sinto o estômago acre. Arranho-me interiormente, porém a mente está lúcida. Há uma clareza invulgar neste subir de estrada. Sei o que me empurra, visiono o meu destino. Antevejo o meu percurso.
Há uma força, uma voz que me empurra estrada acima, que me impele mais além. E o murmúrio do vento cada vez mais perto. E subo, subo arrastando-me contra a fúria que em meu redor sibila cuspindo a golfadas de ar que entram a jorros pelas portas do meu corpo. Ferem-me, cortam-me mas lavam-me a alma. E continuo subindo, subindo. Está quase, quase. Lá em cima no ermo, no monte vazio a razão espera-me.
Até lá a Terra Mãe protege-me. Assim seja.
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