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01 junho, 2009

AMOR







AMOR

Olhos abertos. Olhos bebidos. Olhos vividos. Olhos cansados. Olhos.

Mãos descarnadas, longas, engelhadas, manchadas. Mãos de suor. Mãos de luta. Mãos de amor.

Mulher.

Senta-se no canto do escano. Saia enrolada e blusa folgada. Avental a jeito bem enovelado. Lá escondem-se as mãos. Cansadas. Gretadas de amor.

O rosto é um pêssego seco de maduro. A boca morde-se por entre os dentes. Emoldura-lhe o traço aquele azeviche ponteado aqui e ali de riscos brancos, que teima em dançar sob o lenço de papoilas de sangue. A sua garridice. Nas orelhas, pendem lassos, os brincos enfiados nuns lóbulos já frouxos, há muito, do peso. Os ombros vestidos de chita cinzenta atraiçoam uns ossos escalavrados de fadiga. Vinca-se pelo meio, pela cintura ainda viva. Lá reside o laçarote do avental cinzento e riscado. Assim curvada espreita os chinelos. Estica o dedão, depois o outro, e o outro ainda, assim, num leque de dedos inchados.

Suspira.

E as mãos continuam arrecadadas dentro do avental enovelado, naperão da saia escura, que lhe veste as pernas magras.

As mãos.

Esfrega-as rolando-as entre si. Lenta e sofridamente. Sente-lhes as gretas ásperas. Liberta-as do avental, e poisa-as no regaço. Olha-as. E, então, suavemente, como se fossem pétalas acaricia-as. As mãos inchadas e gretadas a beberem carícias.

Sincopadamente rola os dedos. Tal como fizera com o dedão. Um leque de dó, ré, mi, fá, sol, lá si. E os dedos giram em pauta. Assim repetidas vezes. Quase um piano de contas balbuciadas. Aquietam-se sobre o riscado do avental. Olha-as. Uma lágrima. Redonda, doce, trémula quase, quase um pingo de beiral cai-lhe na palma da mão direita. Ergue o rosto e pisca os olhos aguados de lembranças.

Mãos macias de meninice, mãos doces embalando, mãos suaves mitigando, mãos férteis criando, mãos de trabalho semeando, mãos calejadas mondando, mãos amigas amparando, mãos de amor labutando, mãos felizes amando, mãos velhas acariciando. Sempre as mãos. As suas. A vida. A sua.

Mãos e vida. Mãos e olhar.

Benedita

Cruza os pés nos chinelos cambados. Olha o vazio da cozinha. O castanho da íris repousa. Um barulho lá fora fá-la pestanejar. Breve entrechocar de seda negra. Os músculos jazem inertes no rosto imóvel. Permanece solitária dentro de si. Nada a perturba. Depois as mãos movem-se descaindo do regaço. Caem laterais, desalentadas. Rolam pelo corpo como berlindes partidos. Impeçam na cadeira e ali ficam. Tremula o olhar em fugaz faísca. Um estilhaço de vidro frio calça-lhe o castanho da íris.

Benedita foi-se.

Benedita de mãos ásperas-doces e olhos rotos de amor.

Benedita passou por aqui.



Ave Maria (Violin Duet from La Corda dOro) - Schubert