Poças de sentir
-Hoje choveu.
A sua voz rouca tem a tristeza da tarde escura. Está para ali sentada, de olhos adormecidos e atulhada de imagens paradas.
-Hoje choveu.
Suspira tremendo. Um arrepio
Lá fora os pingos precisos e cinzentos descem na tarde triste. A monotonia do som provoca-lhe uma certa crispação. Humedece os lábios secos e olha para fora. Tudo igual.
Cinzento e triste. Fora e cá dentro.
Chega-se à janela e olha. As poças reluzem no asfalto escuro. Têm o brilho da luz cinzenta. Olha aquela ali mesmo defronte do portão. Move-se no redondo imperfeito da forma ao sabor dos pingos, que a alimentam. É escura. Tão escura como o olhar que a vê. A poça reflecte o olhar ou o sentir? Parvoíce pensa. A poça é um acaso.
A poça de chuva, a poça da alma, a poça do sentir. Tantas poças e todavia está seca. Como é possível, como?
-Hoje choveu, pensa.
Perscruta a neblina. Reforça o olhar. Nada. Nada. Não vê nada. Massa compacta de suspiros enredados em nuvens. Nuvens que se espremem em lágrimas. Tarde triste. Tarde sem alma.
O olhar poisa de novo naquela poça mesmo defronte. Atraia-a mais do que as outras. É tão escura todavia tem um brilho claro. Afasta a cortina branca. Cola o olhar, mais o rosto na vidraça borrifada.
A poça olha-a, ou ela, olha a poça? Encontram-se. Momento único de queda. Caem ambas. Revolvem-se breves num agitar imperceptível, todavia o toque repele-as. Acabou. Foi breve. Foi sentir.
A chuva partiu. A janela acendeu-se. O asfalto secou e a poça também. O sentir arrecadou-se.
- O tempo limpou. Vai estar sol. Amanhã é outro dia.
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