Talvez
Foi num dia pequeno. Naqueles dias em que a manhã é curta, o meio-dia vem cedo demais ,e a noite arregaça-se logo que a luz mal se despe. Foi, portanto um dia curto que se viu pela primeira vez. Não gostou das sombras que a rodearam, não gostou dos rostos difusos que a olharam. Não gostou da palidez nem das correrias. Gritou, berrou. Muito. Foi assim que cumprimentou o mundo.
-Uma menina! Disseram e ouviu. Então era menina. Como se isso importasse para a viajem que tinha que fazer. Depois enfiaram-na em água, rolaram-na de uma lado para outro, puseram-lhe um lenço na cabeça e finalmente deram-lhe comida. Enfiaram-lhe uma bola redonda e não muita dura na boca que chupou. Escorria uma coisa quente que a acalmava. Assim esteve, depois descansou. Pegaram nela, e enfiaram-na numa cova com panos macios. Adormeceu. Estava cansada.
O dia escorreu por entre a cova e as mãos. Entre as caras cinzentas que a olhavam, ente o murmúrio e o olhar cansado da mãe. Ah! tinha uma mãe e um pai. Ficou a saber.
Muitas outras coisas viriam a saber ao longo da sua viagem. Tanta, tantas e muitas tão más.Mas nas viagens tem que se conhecer um pouco de tudo. Cresceu e depressa. O tempo passou como se de um pião em roda se tratasse. Rodou. Ela, e as suas saias engomadas, que rodavam quando ela girava de braços abertos para o sol.
Quando voltou a olhar para si, num olhar perscrutador de gente, já era adulta. O tempo passara tão voado. Talvez o espelho da viagem lhe mostrasse o trilho que ainda tinha que fazer. Mas o espelho enublou-se. Foi o vapor do suspiro. Teve que se levantar do banco em que se sentara. Para ver o reflexo. Mas revolto. O reflexo, não reflectiu, e ela pensou. Foi aí que começou um outro caminho. O trilho da ponderação. Nem sempre gostou do trilho. Ser ponderado, certinho é como um guisado deslavado. Mas o trilho da vida era torto e revolto. Tropeçou, caiu, magoou-se. Feriu-se. Levantou-se, cambaleou, ziguezagueou, endireitou-se. Lacrimejou, fungou, chorou, gritou e riu. Sorriu e gargalhou também. E cresceu um pouco mais.
Cegou a vida das ervas daninhas, ergueu as paredes da sua cela, gerou e pariu a sua família. Criou, amparou, enxugou lágrimas e floresceu sorrisos. Amou, muito, sempre. E cresceu um pouco mais. Não foi poetisa, nem artista, não foi heroína, não foi gente invulgar, não foi mente exaltada. Foi talvez a mulher mais mulher que o dia viu crescer.
Hoje, já não cresce muito qual espiga em campo de trigo. Hoje, cresce nos anos doces da idade. Olha o mundo com ironia, com aquele brilho por detrás dos olhos castanhos mel. Nos lábios já descaídos de trejeitos, ainda se esboçam pequenos ritos de ironia. O asséptico das relações fazem-na suspirar de novo. Os desinfectantes inundaram o mundo das emoções. Hoje o cheiro de éter paira sempre entre as pessoas. Não há medo, há sim, receio. Mas também não percebe. Se há liberdade, porque é que o receio existe. Coisa que ela, não muito dada a exaltações mentais, se limita a encolher os ombros, como resposta. Anota ,então, no caderno rosa que tem junto à alma os pequenos todos ,incongruentes deste mundo. Talvez tenha estado sempre enganada. Talvez seja tudo muito simples. Talvez a vida seja uma equação de pessoas. As incógnitas? Meros passos, que são sempre achados quando o resultado finaliza o exercício.
Talvez…assim seja o mundo.
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