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30 agosto, 2007

Dona Santinha.



Anda nos seus setenta e muitos. Figura doce. Os cabelos são alvos, o rosto ainda é rosado, as faces são pêssegos maduros de covinhas risonhas. Dona Santinha é uma cesta de fruta a cobiçar o desejo de ternura.

Quem a conhece, sabe que a vida foi um cacto espinhoso de criar e moldar. Mas foi …

Enviuvou cedo, demasiado cedo. A prole era de cinco, todos seguidos. O seu, Albano, que tenha a alma em descanso, era homem de necessidades prementes e cuidados descuidados. Todos seguidinhos sem descanso. A Clara, o Francisco, o João, a Susana e o Afonso, o seu derriço e pecado. Hoje é avó de vinte e um netos e bisavó de cinco bisnetos. Mal sabia o seu Albano o que as pressas poderiam dar…

Sentada na sua velha cadeira, misto de chaise-longue e poltrona Dona Santinha vai desfiando o passado com aquele sorriso doce de sabor cheio. Já lá vão cinquenta e muitos anos. Ai, tanto Jesus!

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-Menina, o seu paizinho chama-a à sala.

-O que é que aconteceu, Maria?

-Menina, eu é que sei. … Vá mas é lá. Senão… já sabe.

-Tu sabes. Diz lá… Tá bem. Pronto…

Com o coração apertado, lá se dirigiu á sala. Bateu, entrou e pediu a bênção.

Sentados, os pais esperavam-na. A mãe quase sumida pela presença avultada e áspera do pai, Parecia mais pequena e ele, com aqueles olhos enormes que pareciam querer adivinhá-la., simplesmente pigarreou e afirmou.

-A menina vai casar-se. Arranjei-lhe um marido. A sua mãe dir-lhe-á.

E pronto. Deu meia e volta e saiu. Santinha, perplexa e meio zonza, ouviu a mãe dizer-lhe que o Albano, rapaz às direitas, filho de Artur Nóvoa, era o seu futuro. Estudara e era um rapaz de bem. Ponto final parágrafo.

Casara-se como mandavam os preceitos. De inicio custara. Dormia com um estranho, mas aos poucos fora-se habituando. E depois não havia nada de amores, como Rosarinho, a sua neta mais querida lhe dizia, era só amizade e depois muita ternura. Tanta que ainda hoje suspirava com a falta daquela onda que a costumava invadir.Aos poucos fora nascendo os pequenos. A primeira é que custara mais, depois fora mais fácil.

Foi naquele Verão. No ano seguinte à Clarinha ter entrado para o colégio. Tinham ido para Moledo, como sempre, desde que se lembrava de ser gente. Estava grávida de Afonso. O verão era esplendoroso. As crianças, um bando de andorinhas sempre de um lado para o outro. A sua Maria era o seu grande apoio. Tinha vinte e oito anos. Sentia-se plena, mulher

O dia fora igual a tantos outros na praia, a Maria levara o almoça às crianças na sua grande cesta. Comera-se na barraca como sempre. Ela conversara com as amigas, as crianças brincaram, no mar, na areia, e regressaram a casa. Depois do banho já deitadas, ela sentara-se na saleta para uma breve leitura. Não esqueceria jamais, a chegada convulsa do pai, dando-lhe a notícia … que o seu Albano tivera um acidente. Que tinha que partir rapidamente, as crianças ficariam.

E lá foi ela.

Foi só e ficou só. Só de alma e de ombro amigo na solidão dos dias que correriam.

A vida, doce até então deu uma reviravolta. Teve que fazer face a tudo. Aos filhos, á casa, aos negócios e á vida. Á vida, sobretudo. Mas não descansou os braços no parapeito das convenções. Pouco a pouco tornou-se dona de si, da sua vontade e do seu pequeno mundo, para além das crianças e da casa.

Santinha Nóvoa foi pioneira, no seu tempo de mulher. Não chegou a vestir calças, mas vestiu a determinação das decisões., num mundo feito de homens e para os homens. Era a província dos anos quarenta e cinquenta. Era o Estado Novo. Era o mundo fechado em si e sobre si.

Era vê-la, lado a lado, com os homens e as mulheres na fábrica de tijolo. Aprendeu o ofício, sujou as mãos e partiu as unhas. Ganhou o respeito. E a Telheira foi pão de muita gente da região. Foi também a côdea e o miolo dos seus filhos, da sua casa e de si. Recorda…

-Dona Santinha, a máquina partiu…

-Minha senhora é preciso, enviar esta encomenda…

-Dona Santinha os operários querem aumento…

Minha Senhora…Dona Santinha… Patroa…Mãe… Menina…

Ecoam os chamamentos no tempo ido. Sente alguma saudade. O tempo foi. Já não é. Hoje descansa, pensa e frui o que sobrou de então. Da vida agitada mas cheia. Da casa de riso fresco e cheio. Das portas que batiam e dos passos corridos na tábua já gasta. A casa, armário de pequenas vidas de tamanho já passado. Hoje é grande, solene, vazia quase ermida perdida no alto. Apenas uma vez ao ano, a casa acorda. Pelo Natal. Repete-se há cinquenta e tal anos, inexoravelmente. Revive em cada data. Depois hiberna no tempo.

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Recordou sonhando ou estava acordada? O tempo já lhe prega destas partidas. Ajeita-se e pega no livro. Olha o telemóvel como se esperasse … por uma voz.

Ah, os filhos que se esquecem…os afazeres. Dá-lhes a desculpa. Vidas. Algumas partidas, outras meias feitas. Escolhas, agora dizem-se opções. Não são as escolhas dela, são deles. Mas gosta das suas duas noras e dos seus três genros. Pensa ser assim que deve chamar ao companheiro de Afonso. Bom rapaz. E ele, o seu filho é feliz. Custou-lhe mas acabou por aceitar. Um escândalo no inicio. Os irmãos foram os piores, aliás dividiram-se como sempre acontece nas famílias. Uma vez mais teve que apanhar os cacos e colar a família. Um acto de reconstrução. Hoje coabitam todos, no Natal, diga-se, e ali na casa velha, os pruridos sociais desarmam-se para se tornarem todos filhos e irmãos. Lá fora, no frio do tempo fica o preconceito estreito de quem não sabe amar e aceitar. Cá dentro, tal como o seu coração, crepita a labareda viva da lareira afagando as vontades.

Mas se fora só o seu Afonso. Também o João e a Susana já se tinham divorciado, casado e sabe o que mais. E as netas e netos. Tudo diferente. Já se habituara ao desfile de caras novas. Buscavam a felicidade, tal como o tempo. A instabilidade era apanágio destes dias. Na sua opinião amavam demasiado o amor. Depois ficavam exauridos para amar o concreto. Mas como ela lá dizia para os seus botões. "Que cresçam, que sejam felizes!" Ela também fora diferente e hoje era uma Senhora de coração aberto e alma doce. Pensa amiúde: "A vida é a arte sublime do Homem" porque desprezá-la, então?

Um som forte agita-a. É o telemóvel.

-Estou? Sim?

-Rosarinho, vó.

-Diz , minha querida. Tudo bem?

-Vózinha querida -a voz treme muito, num soluço perdido. -Preciso de si, muito!

-Então, o que se passa, diz que fico aflita.

Um silêncio e um soluço e depois a voz entrecortada.

-O Pedro Maria deixou-me… saiu de casa. Oh Vó…tou tão…

-Minha querida acalma-te. Estás em condições de vir até cá?

-Sim, Vózinha…sim…

-Então espero-te ainda esta noite. Tem calma. Tudo se resolve.

Desligou, suspirou, levantou-se e dirigiu-se para a cozinha. Há que fazer uma boa canja. Depois logo se verá. De novo os cacos. Mais uma colagem, mais uma página lida que terá que ser relida. Ergue as mãos e murmura:

-Que sou Santinha, sei, mas um vá lá, um pouco de Temperança, também não me caía mal.

-" Não resmungues. A auto-comiseração não te fica bem. É mais uma oportunidade de seres útil. E tu sabes fazer isso. É a tua vida."

Olha em redor. Será que ouve vozes? Será? É a sua consciência. Uma inoportuna ao longo da vida, mas uma amiga também. Já refeita, solta uma gargalhada sólida e franca. Inspira a plenos pulmões e diz a meia voz:

-Vamos lá, então ver onde o barro partiu, se foi forno ou defeito…