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15 outubro, 2007




Bêlaflô

- A va safy va lomo…

Melopeiando e dengando ,Bêlaflô dobra o corpo ,no ritmo compassado dos braços, que esfregam o meio coco seco,no soalho de madeira ,fazendo os círculos de brilho espreitarem. Naquele sobe e desce de canela, toda ela estremece. São os pequenos figos de S. João que saltam no decote meio aberto do vestido de florinhas vermelhas, as coxas esguias dobradas que estremecem, o traseiro duro e bem espetado que dança ritmado. Uma linha divide-lhe as nádegas revelando a nudez de interiores, uma cintura breve, umas as ancas redondas mas esguias, umas pernas compridas e torneadas que terminam nuns pés largos de dedos curtos onde as solas são rosadas e grossas. Está descalça O rosto é oval, risonho, de olhos negros, as narinas são palpitantes como se fora potro em trote, a boca é cheia, sensual em riso de pequenas pérolas brancas., o cabelo em pequenas trancinhas que pespontam no lenço vermelho com dobra e atado em três pontas que lhe tapa a cabeça, mas revela a esbelteza de um pescoço longo. Caem-lhe das orelhas duas argolas quase cobertas de missangas. Faltam os sapatos, coisa que não gosta. Nem sapatos nem cueca. Aperta.

Bêlaflô, moleca flor-fruto de quinze anos, vive e trabalha na casa de patrão Alberto. Quase nascera lá. Lembra dos tempos em que ía à escola e brincava no jardim e no quintal com os mininos mais velhos. Quando a mangueira do quarto da menina Zinha ainda era bem pequenina. Hoje já cobre a varanda e dá fruto. Agorinha, não ligam não, a Bêlaflô. A mãe Rosa bem lhe diz:”- Bêlaflô te enxerga tu és nêguinha os mininos são brancos”

Inda agora viu o minino Carlos entrar em casa, olhou-a de soslaio e foi para o quarto. Nem uma boa tarde…gente assim faz, doer. Morde o lábio inferior, dilata as narinas, ergue-se e suspira. Já acabou, pode ir descansar até à hora do jantar. Foi às compras com a senhora de manhã, arrumou a casa, e agora até ao jantar, descansa. Arruma o coco e o pano no armário, dá uma espreitadela enviesada a mãe Rosa que labuta na roupa.Branco gosta de comer e de tomar banho. Todo o dia é assim. Mãe Rosa bem diz que a casa tresanda de roupa e de sabão. Sai pela porta da cozinha e vai até fundo do quintal, para debaixo da acácia florida de rosa. Linda. Tem perfume doce. Como o ar quente que não mexe, tá calor, mesmo, Janeiro, o mês da quentura e da moleza. Deita-se no chão, abre as pernas, ergue o vestidito ligeiramente, coloca as mãos sob a nuca e vê o céu por entre os ramos da acácia florida. O sol está lá cima mandando a luz forte, pisca e fecha as pálpebras ao brilho, e matreira tenta abri-los lentamente, como que a enganar, mas não consegue, então solta um gorjeio forte e rebola-se na terra. Aquieta-se para aspirar o vento que traz a maresia, e o marulhar das ondas, mesmo do outro lado, da estrada. Nem cinquenta metros a separam da praia. Sabe bem, lá ir, ao fim da tarde, no finzinho da luz forte, quando tudo é rosa e laranja. É quando o dia é mais bonito, e se sente calma, sem aquela coceira que a traz, meia sem jeito. Não sabe bem o que é, vem mesmo de dentro, fica arrepiada e meia tonta. Será maleita, mau-olhado? Mãe Rosa anda de olho nela e está mais áspera. Que coisa! O velho Tião abana a cabeça e diz: -“ Ah Bêlaflô vucê tá flô”. Domingo, o cozinheiro olha-a dengoso, mas não gosta dele, não, é velho. Domingo, negro como ela, inté é bem-parecido, gosta de rir e de tocar a viola feita de lata de azeite vazio. Ao domingo veste a roupa nova e vai gingar com os amigos. É a tarde de folga. Todo o dia está agarrado às panelas e inté usa farda, avental e chapéu, tudo branco. Coisa da senhora, mas se soubesse, que ele, quando tem calor e coceira, mete a colher de pau da panela, na cabeça, coça - coça, e logo mexe o cozinhado. Xi! Põe a mão na boca e sorri faceira nas comissuras dos lábios. Os patrões não sabem tanta coisa! Uma leve aragem murmura entre a folhagem, e fá-la soerguer-se, para espiar a dança dos ramos. Espreguiça-se, senta-se e olha a casa, silenciosa no seu descanso. Parece não ter gente, mas tem. Estão escutando as ideias. É, branco gosta de escutar os pensamentos. Fica calado, sem luz na cara, de olho mortiço e amarelo. Aí fica sempre amarelo, porque a cor foge para as ideias. É quando a casa e o quintal se calam. Os meninos pequenos estão no colégio, a senhora está de livro aberto ou ao telefone, o patrão no escritório, a minina Zinha com os amigos, e o minino Carlos, no quarto. Tá sempre no quarto, inté tem cheiro. As persianas estão corridas, tudo a meia-luz para refrescar. Mas não refresca, não. Calor é calor e só vai com a noite.

Dirige-se para o quartinho dos fundos que partilha com mãe Rosa. Pega no fato de banho, que não veste e na toalha. Vai até à praia refrescar. Cruza o quintal, e sai pelo portão do quintal. O jardim é à frente, e para os patrões, eles usam os fundos. Sai para a rua, atravessa a estrada e ei-la no areal branco ponteado de palmeiras. O Índico, azul, morno e espesso marulha no areal. As sombras da noite já tingem o branco da praia. As palmeiras crescem no entardecer e bolem ligeiramente no verde-escuro das folhas. Está tudo vazio, um barco repousa ainda molhado. Ninguém. Estende a toalha, aninhada à proa, do outro lado, escondida. Despe o vestido e corre para o mar, mergulha-o e inunda-se da sua tepidez fresca. O sal morde-lhe a pele mas sente-se flutuar de leve, de livre de feliz, o corpo vibra no interlúdio de água Á laia de despedida, faz das mãos cutelos e corta as águas em lâminas translúcidas que lhe salpicam os olhos em lágrimas de riso. Corre para o areal junto à proa vazia e deita-se. O ventre tem ritmo de sobe e desce da corrida. Fecha os olhos e abandona-se ao prazer do momento.

Um arrepio de toque percorre-lhe os sentidos, sustem a respiração. Tem coisa aí. Mas os olhos mantêm-se fechados. Está expectante. Os dedos continuam na sua viagem lenta, gulosos, tocam a lisura de veludo e chegam aos seios que se encarrapitam. Tá gostando. Abre um olho e espreita devagarinho, é minino Carlos. Sorri e enrosca-se nele atraindo-o para si com toda a fragrância da sua canela de fêmea em desejo. Ele monta-a sem delongas, rápido em impulsos secos de compasso simples. Bêlaflô ri, ri, seguindo o ritmo esplendorosamente. Carlos levanta-se e olha-a, já em pé murmura: -’és linda, negrinha!”

-Iiii minino Carlos., Bêlaflô gostou, gostou mesmo.

Respiram e olham-se. Ele serenado de desejo, ela saciada de tremuras, uma onda quente que os varreu desaguada no ventre de vida. Agarra no vestido de florinhas vermelhas que dançam a marrabenta do amor e deixa-o descer pelo corpo quente de florido. Flor sobre flor em pau de canela. De novo os personagens da vida têm que ser preenchidos, ela, Bêlaflô nas tarefas de moleca neguinha, ele, Carlos no “minino” de sua mãe e varão de seu pai. Juntos e separados regressam à casa, um pelo portão do jardim, a outra pela porta do quintal. Bêlaflô rápida enfia-se no quartinho e dali na casa de banho. Lava-se sob o duche frio, sente-se zonza e inundada. Veste-se, cueca, bata amarela e sapato. É hora de jantar. Apanha as trancinhas num novelo e coloca o lenço na cabeça. Senhora não deixa que sirva à mesa de cabeça ao léu. Esquisitice…

Já na casa de jantar, observa os patrões e a prole. De soslaio, vai olhando para o “minino Carlos. É bonito. É alto, forte, tem olho claro como o pai ,deve andar pelos vinte. Ela era assim de pequenina ,e ele já era grande. Depois está a estudar no “Puto” há dois anos, só vem a casa no Natal e nas férias de Junho.

-Carlos, eu já comprei a passagem de avião. Na próxima sexta -feira, tu, e a Zinha, embarcais de regresso. O voo é bem cedo. Ouve o patrão dizer.

-Ó pai ,podia ter dito antes, tenho os meus amigos… Zinha que sempre fora bem palavrosa, e explicada, recalcitra logo, revirando os olhos bem à moda da época.

-Pois tem uma semana para se despedir. E depois, sempre quero ver, o que vai fazer este ano, o outro foi para esquecer…Tem o exemplo do seu irmão, veja lá se o segue., senão regressa a casa e acabou-se a Universidade, percebeu?

-Sim, pai. Também…

Pondo ponto final na conversa, o pai dirige a sua atenção, para os mais novos, que sob a toalha se beliscavam.

-Quietos Leninha e Miguel! Ou vão já de castigo para o quarto que depois vou lá!

A calma volta à mesa e Bêlaflô serve o peixe assado, que cheira divinamente. “Domingo tá ficando um bom cozinheiro!” pensa a neguinha.

-Bêlaflô! Acorda! Ouve a voz da senhora…

-Sim, senhô.

-Não sei o que lhe deu hoje. Está meia parva. Faz o favor de me servir, e como deve ser, percebeste?

Rápida, coloca o peixe-dourado com tirinhas de cenoura, as batatinhas redondinhas e o molho no prato da senhora, do patrão e dos meninos. Treme-lhe a mão quando serve o minino Carlos. Ele, calmamente vai roçando -lhe a coxa com o cotovelo... xi que calor! O patrão Alberto olha-a fixamente e ao minino também. Poisa a travessa e vai para a cozinha, onde mãe Rosa e Domingo já lavaram as panelas todas

- Tu tem Flô? – Pergunta mãe Rosa, perscrutando-lhe o semblante e o corpo.

-Ora, nada, mãe Rosa.

A velha nega, não se convence, e olha-a, remira-a e funga. Já viu muita coisa e pressentiu muito mais. Sabe da vida, do que é ser neguinha em casa de patrão. A sua Flô, também não escapou.

Olha a noite, com os olhos vidrados de sonho partido. Foi há tanto tempo, também fora flô, depois o patrão novo enrabichara-se e servira-se dela. Por algum tempo enquanto a pétala não murchou. Logo, fora recambiada para a “terra”. Silvestre fora o homem da sua palhota, até que tinham vindo para a cidade e fora trabalhar para o porto, junto dos barcos, ela, viera para a casa de patrões Lacerda. Um dia, Silvestre fora ter com os antepassados, só ela e Flô ,tinham restado.

A vida era sempre igual. Tinha que arranjar a trouxa e ir embora de volta para a palhota. Era tempo…Flô que não era flô, tinha que arranjar homem e depressa, antes de as chuvas chegarem, antes das águas do mar trazerem as algas de volta, antes do sol dormir mais na terra, antes de a palmeira dobrar no vento. Antes de Flô apanhar o jeito… de branco.