Paki
Sentado no degrau da porta da entrada ,Paki escarafuncha as narinas já de si bem largas. Poisa os pés descalços no tijolo vermelho, ao lado descansam os chinelos já gastos e escuros de mil andanças. O tronco cor de chocolate aveludado respira nu o calor da tarde fazendo descer aquela moleza que só Paki sabe sentir. Rebola os olhos e o branco respinga no rostinho doce em jeito de nuvem de chantilly. Paki é menino órfão nas ruas da cidade grande. A vida é zagaia lançada no ar. É mesmo. Foi coisa amarga com que nasceu e cresceu, assim numa caixa vazia de amor. O pai, não conheceu, porque a mãe também se esquecera de quem fora. A pobreza é assim, o corpo paga a fome e depois sem licença gera gente em viagem famélica de amor, apenas abrigada no útero quente. Foi assim que Paki se tornou gente. Num acaso qualquer, numa troca de carne e moedas, lá viu ele a linha da vida. E fez-se menino. Depois a mãe sumiu mal o tinha botado cá para fora. Paki cresceu na rua entre o lixo, fumo e o cheiro. Mas vinha de mão dada com o sol e não deixou que ele lhe escapasse. Só no fim de cada dia deixava que fosse descansar. Paki sabe que o sol é o amigo envolvente dos dias menos quentes, a roupa que não teve. O menino de chocolate cabeceia, o pescoço dá aquela volta redonda sempre que a cabeça pesa de sono, e descai sobre o peito nu de chocolate. As persianas fecham-se, o mundo cavalga na neblina do faz de conta sonhado. Paki corre na frente do jardim onde as flores azuis se abanam no bom dia da manhã. Da cozinha vem o cheiro da custarda com ruibarbo que ele tanto adora. Ouve a voz quente da mãe, sente a macieza reboluda do peito, onde ele rola o rosto e aquece a alma. Apetece-lhe correr, correr muito tanto quanto as suas pernas esguias o levem. É o seu sonho de todos os dias. E no rosto adormecido perpassa a luz do sorriso que lhe ergue as comissuras dos lábios cheios.
Depois, depois, vem o homem grande que sai do quartinho lá em cima, onde a madrinha ganha a vida e perde os anos, o homem que embirra sempre com ele, e lhe dá um pontapé dizendo-lhe:
-Ei, miúdo acorda, pisga-te daqui…senão desanco-te. Vai trabalhar moleque…
Paki levanta-se, agarra nos chinelos de borracha mas o pontapé atinge-o ainda nas costas. Dói. Nem tanto a dor seca que lhe comprime o ar fazendo-lhe arder as costelas, mas mais magoa aquela onda surda que o sufoca. Rebenta em lágrimas e ranho pelo rostinho. Paki é menino da rua, pobre, sujo, famélico mas sentido. A solidão dos afectos torna-o mais sofrido. Soluça Paki, soluça a alma da criança na sombra cinzenta do mundo às avessas. Paki é testemunha. Paki é nome Zulu.