Era uma vez…
Uma estrela amarela que escorregou do azul-escuro e veio estatelar-se no movimento do mundo. Era a estrela do desejo.
Levantou-se, aprontando-se nas pontas, saltou de um lado para outro experimentando o empedrado do passeio e ,saltitando ,seguiu atrás da mulher que passava. Podia se ter colado mas não quis, apenas desejou segui-la, num toc-toc de passos miúdos.
A mulher ágil, morena e de olhar encovado seguiu o seu caminho por entre os outros. Sabia o seu destino. Sabia qual o meandro a seguir. Conhecia o seu desejo. A estrela acompanhou-a numa inércia desconhecida, mas expectante. Era novidade este percurso, tão diferente do azul lá de cima, sempre igual, sempre sereno. Aqui mexia-se, A estrela do desejo sentiu-se viva. Conheceu a sua própria dimensão ao dilatar o olhar, ao beber o seu fôlego ,ao poisar na mulher morena, ao aspirar-lhe o odor de fêmea.
À volta o mundo girava. Aqui e ali. Uns que vinham outros que iam. O vai e vem dos passos. A estrela embalada no movimento elástico do corpo da mulher deixava-se conduzir. O mundo abria-se nas suas pontas. Era uma sedução se sentires. A estrela suspirou enroscando-se.
Veio outro dia e outro e mais outro e a estrela tonta de vício doce foi -se esquecendo do azul lá de cima. Tinha simplesmente fechado a persiana do antes com presente. O seu agora estava ali, junto da mulher morena de voz e corpo macio, onde tudo tinha a perspectiva do momento vivido, onde sentia o pulsar da sua incandescência.
A mulher continuava no seu caminho de passos miúdos sob o toc-toc de uns pés gastos de caminho. A mulher não sentiu a estrela. Sentiu-se a si mesma. Sentiu um arrebatar de sentidos. Pensou que era a dona do presente. Sorriu ao poder que a absorvia, ao prazer simples da manipulação, à vitória do desejo. Foi assim que a mulher morena cresceu na tarde de sol tímido e persianas entreabertas.
A estrela estonteada, redonda de si, levantou-se e olhou pela persiana entreaberta. O sol descia algures para lá dos montes tristes. Naquela tarde de rosas sem cheiro caiam lágrimas do ar. Não eram doces, sabiam a amargo, sabiam a desejo vazio. A estrela recostou-se nas suas pontas, já gastas de tanto caminho volátil almejando pelo seu espaço sem sobressaltos. Como voltar, pensou? Ela simplesmente caíra, como regressar?
A encosta de retorno antevia-se árdua e dilacerante. Tinha que voltar mais que não fora pelo seu espaço, mais que não fora pelo seu passado, mais que não fora por si, pelo seu desejo que precisava de renascer, esgotara-se na dança dos passos junto da janela de persianas entreabertas em tardes de sol desmaiado.
No seu canto de azul senta-se e olha, pensa. O seu fulgor de outrora esvaiu-se. Perdeu-se. A queda, talvez. Olha em redor, rolando levemente uma ponta, que ainda teima em refulgir pese o opaco das outras. É nesse pedaço de luz que se firma, é nele que faz renascer a sua vontade, o seu pundonor. Já não acredita em passos breves mas ainda treme. A estrela do desejo é vã. É fraca. É a vida. Pobre estrela desejo cujo sonho foi efémero. Como irá sorrir se o seu sonho morreu?
Amanhã, talvez, amanhã, ou depois, ou num outro dia ainda, as rosas em Maio tenham perfume.
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