Quando chega a Quarta-feira de cinzas…
Naquela tarde de outono de vento quente e céu pesado, Rosina
cruzou os braços no regaço, soltou um suspiro e vagueou o espírito pelos montes
da sua idade.
Não era nova a Rosina. Na tez riscavam-se as linhas dos anos,
nos olhos, as teias das imagens cruzavam-se nos cantos, mais abaixo nos lábios
serpenteavam os socalcos dos beijos dados e por dar e na figura sentada a
ligeireza de outros dias era roubada pelo caruncho das dobradiças tornando-a
mais lenta no erguer. Rosina não era nova, mas, ainda não era de todo, velha.
Espreitava entre as duas, recalcitrante em largar a primeira, no entanto, ainda
mais reticente em abraçar a segunda. Não era tola a Rosina. Não era, não
senhor.
Naquela tarde estava sentada na varanda., olhava para além,
para o vazio, para aquele espaço povoado da sua gente, da que respirara e rira
com ela e que andava algures, ou já
partira. O tempo é mesmo o maior carnaval da vida, pensava. Se o tempo dos
foliões são três dias, três tempos são também o nosso caminho. Nascer-crescer,
amadurecer-viver, envelhecer-morrer. Três tempos, três tempos com risos,
alegrias, vitórias, esperanças, tristezas e esperas. Três tempos de vida. Rosina
estreita os olhos como se quisesse espevitar as imagens dos seus tempos.
Depois, lentamente, recosta-se no granito da parede, estende as mãos sobre as
pernas e sorri.
Fora numa manhã de sol quente e zumbido de abelhas, mesmo por
detrás do ribeiro que ela e o seu Abel perderam o tino. Coisas de gente jovem.
Não havia malicia, só gosto e gozo, claro está. Depois, o ribeiro em baixo
cantava tão cristalino, que seria um desperdício não aproveitar aquele embalar.
O tempo de viver começou aí. Viveu depressa, porém, viveu muito e bem. Era o
segundo dia no tempo dos foliões. Um dia dourado que a fez mulher, mãe e dona
da sua vida. Mais tarde, quando sentado à mesa, ela e ele, já com os foliõezinhos
gerados no segundo tempo, escutavam as palavras que o novo tempo trazia,
olhavam-se, e perplexos procuravam entender. Já não era coisa de novos, já era
tempo de um maduro, muito maduro. O tempo quase a roçar o terceiro dia dos
foliões.
E no terceiro dia dos
foliões, a mesa ficou vazia, a casa silenciosa. Os seus pequenos grandes deixaram
de morar ali, o seu Abel fantasiou-se de velho, e ela, a Rosina diva da sua alegoria
também humedeceu. Agora era o terceiro dia, do tempo do descanso, dos céus cinzentos,
dos silêncios redondos e das palavras breves. Tempo, em que o tempo se faz
tempo de vida.
Ao longe, muito ao longe há um bramido no cinzento da tarde.
Uma espécie de trompeta a encerrar o tempo de festa. Rosina abre a porta.
Entra.
Não foi por querer, não foi por gosto, foi um sem querer que
a fez pisar o umbral do envelhecer.
Rosina dos dias quentes, do zumbido das abelhas, do marulhar
das águas, do riso e das lágrimas, do tempo de mulher, dos dias de mãe e das
tardes da vida. Rosina de quarta-feira de cinzas.