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10 fevereiro, 2018

Os Sem-Abrigo

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Os Sem-Abrigo.
Nos dias de frio são mais lembrados. O frio tem a particularidade de degelar os corações e aquecer as mentes, então, os sem-abrigos vêm à lembrança. Há preocupação maior ou única, há uma pena roída no sentir, há, sobretudo, o acompanhamento que não existe nos outros dias do ano. Não sendo cínica, mas pressente-se que a estatística se aprimora nos dias frios!
Os sem-abrigo são homens e são mulheres, são, em suma seres e humanos também.
A Ludovina, velha gasta, trôpega de articulações, rosto de sulcos duros e fundos, cabelo quase emaranhado de mal cortado. Uma ponta que pesponta debaixo do barrete de lãs vivas. Um olhar vigilante de pupilas baças, qual cotovia em presságio das horas, mãos dentro de umas semi-luvas de dedos ao léu, saia rodada de cores baças e nos pés aquelas botas forradas de pelo, onde umas meias grossas, roçadas, de negro espreitam nas pernas finas, tortas, quase, quase trôpegas da vida. A Vina é sem-abrigo, seguiu o estribilho da queda. Dorme no cartão, tem por lençóis as noticias dos jornais que lhe segredam as coisas do mundo. Come na lata do atum ou no púcaro que encontrou. Corre o bairro nas horas do dia e ninguém lhe põe os olhos em cima. Desaparece. Regressa em cada noite, deita-se no vão da escada, acomoda a trouxa que a acompanha, e espera pela manhã de cada dia. Tem frio, tem fome, tem sede e tem tudo, sem nada ter. Um sem-abrigo, é mesmo assim. Falar do passado para quê, recordar a vida, não tem jeito. O passado não lhe dá o presente. O seu presente é conta-gotas da vida. Vive no limbo. Foi atirada para ali. Se tem sonhos, anseios? Desejos? Uns sim, outros não. Desejo de comer e tomar banho sim; anseios de vida melhor, não; sonhos, muito menos. Há que perceber que o sem-abrigo está na última linhado Ser sem Já Estar.
O Victor também é um sem-abrigo. Não é tão velho quanto a Vina, mas está mais acabado. O álcool descarnou-o no corpo e na mente. Ele conhece bem o inferno, o caminho do purgatório, o regresso ao inferno. Ontem, hoje, ontem, tempo sem amanhã. Lutou, caiu, lutou, caiu, lutou e desmotivou. Saiu. Fartou-se de prometer o que não conseguia, fartou-se de querer, sem querer, fartou-se de se empanturrar, de variar, de estar doente, de se vomitar, de sentir a bílis amarga, fartou-se do travo amargo da sua boca, da sua mente, da sua alma. Fartou-se do descrédito dos próximos, do olhar de nojo e compaixão. Fartou-se das súplicas e das lágrimas. Deixou a bebida, mas também deixou tudo. Inexplicavelmente há muitos anos que é um homem sóbrio. Sóbrio de álcool, mas bêbado de miséria. Ah, Victor sabe que nada tem, que nada quer, que nada o espera. Todos os anos risca o um ano naquele calendário tão especial que lhe enche o bolso do casaco velho e tosco que lhe tapa o esqueleto. Os zigomas fortes e salientes são o traço, mais forte do seu rosto. Uns olhos negros, que perscrutam o interlocutor, sem dó nem piedade, uma boca de dentes esconsos, uma voz rouca por onde irrompe um discurso articulado e fluente. Victor teve posição na sua outra vida. Nota-se no gesto, na postura, em pequenos detalhes que fazem a diferença. Porém dorme também nas caixas de cartão. Não se cobre de noticias, mas de cobertores puídos, que depois de enrolados são o maior calor da noite fria. Victor vagueia nos dias da grande cidade como tantos comparsas seus. Um sem-abrigo de passado liquido pontilhado de saberes de outas vidas.
O Manel é o mais velho de todos. É velho nos anos e no tempo de sem-abrigo. Não teve percalços de dinheiro, nem de álcool, nem de outras drogas. Manel foi amputado de afetos. A morte da mulher deixou-o sozinho. Foi escorraçado pelo filho. A rua foi o único lugar que fez sentido. Ali foi parando, ali foi deambulando, ali foi sedimentando a sua invalidez de afectos. Até que ficou. Ficou entre os outros, apesar de estar sozinho. Mas, quando temos outros iguais a nós, quase ao nosso lado, sentimo-nos acompanhados. A diferença afasta, a semelhança abraça. O Manel é velho porque nada tem. Nem nada quer. É o mais solitário dos três. A solidão de não pertencer a ninguém nem a nada, é tremenda. É um casulo roto de ambos os lados, entra-se e cai-se. Não vagueia pela cidade. Não desaparece. Senta-se todos os dias ao sol no banco do jardim. Trás no bolso o pão que mastiga devagar, bebe a água do chafariz do jardim. Recebe no corpo o calor que lhe roubaram à alma. E as lágrimas caem. Não pelo rosto, mas pela garganta macerada de sofrimento. Há quem chore para fora, outros fazem-no para dentro, com dor de quem nada tem, nem a ninguém pertence. À noite enrola-se no seu saco-cama que alguém lhe deu, e dorme sob o dossel das caixas de cartão que lhe dão a ilusão da sua cama de outrora.
São assim os dias frios, quentes, mornos e amargos dos sem-abrigo. São estes os dias que o tempo e a vida teimam em criar. São os dias dos desafectos, da cupidez e vícios que criamos por sermos tão orgulhosamente ignorantes dos que ao nosso lado respiram.
Maria Teresa Soares

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