A s personagens:
António vive na vila, é um cidadão comum, tão comum que ao domingo se
levanta mais tarde, toma o pequeno almoço no cafezinho da vila, depois vai à
missa ouvir a palavra do Senhor regressa a casa almoça um repasto melh
orado, e, depois de uma breve soneca vai dar um passeiozinho com a família, ou então, visita a família espalhada pelas redondezas. Regressa ao anoitecer, vê as noticias, boceja e beatífico vai para a cama. A semana seguinte é de trabalho. Há que repousar.
orado, e, depois de uma breve soneca vai dar um passeiozinho com a família, ou então, visita a família espalhada pelas redondezas. Regressa ao anoitecer, vê as noticias, boceja e beatífico vai para a cama. A semana seguinte é de trabalho. Há que repousar.
Rita é citadina. Não de uma grande cidade,
daquela que nós chamamos de província já com boas condições que permitem uma
boa qualidade de vida e sobretudo tranquilidade de espirito. Rita também se
levanta mais tarde. A semana foi pesada. O inicio do ano escolar é sempre
complicado. Há que ajustar mil e uma coisas. A roda dentada dos dias tem que
ser oleada. Ser mãe e pai é algo acontecido, não deliberado, mas beatificamente
aceite. É a vida.
Hoje vai com os garotos à aldeia.
Prometeu aos pais lá ir almoçar. Fica só
a trinta quilómetros entre ir e vir. Tem que se despachar. A preguiça toma o
tempo.
Miguel é mecânico de carros. Vive
naquele oásis entre a aldeia e a vila. Nas horas vagas é bombeiro. Este fim de
semana deixou a mulher e os pequenos e foi apagar o fogo. Tem sido um verão sem
parar. Graças a Deus que tem tido alguém a olhar por ele. Já viu coisas que um
homem não deve ver, nem saber. Mas é a vida!
Maria é política, tem um lugar de
destaque no governo. Levantou-se cedo, aliás foi acordada pelo ruído do
telefone. Arranjou-se e correu para o
ministério. Entredentes maldisse a sua vida, ou antes, a ausência dela. O poder
estava a começar a cansá-la. Não o poder, sejamos claros, as emergências que o
poder exigia. Uma vez mais os malditos
fogos. Não podia fazer muito. Toda a pirâmide estava minada havia décadas. Sem
dinheiro, pouco ou nada se podia fazer. Depois havia interesses, coisas que não
se podiam mexer. A teia ia muito para além de qualquer reforma da floresta, da
prevenção aos incêndios, de mudanças na proteção civil. Em resumo há lobbies em
que é quase impossível mexer, e o dos bombeiros também era um. Dizer isto ao
cidadão comum era fazer uma enorme clivagem política, de interesses e até de
sentimentos. Só podia dar a cara, gerir o pouco que havia para gerir. Evitar o
grande caos, se possível. A política não vê, não ouve, não sente. A política
apenas se esculpe. E, assim pensando, abriu a porta do gabinete.
Nuno é jornalista. Está na
redação desde bem cedo. O instinto leva-o a estar ativo. Pressente, que o dia
vai ser longo. Há que dar a noticia, há que não deixar escapar o todo. Estar
ali e aqui, estar no acontecimento, estar em direto, estar sempre no local. O
público vive das palavras, das imagens, do despoletar dos sentimentos, da dor
do outro. Há que mostrar, quase infernizar as consciências. Não criticar
somente cobrir o acontecimento. O papel principal de um jornalista em direto.
Os acontecimentos.
Não se quer saber como, mas
sabe-se porquê do dos acontecimentos. Alguém ou muitos alguéns resolveram fazer
queimadas ou por ignorância, ou por maldade, ou por ganância, ou por tudo
aquilo que o povo sabe e não quer pensar.
Da cintura para cima do país
labaredas vermelhas, laranjas, quentes, brutais, queimaram, assaram,
devastaram, fumaram, enfim criaram a dor e o vazio. As gentes gritaram de dor
física, de dor mental, de dor vinda das entranhas apunhaladas na labuta das
vidas. Retorcidas nos esgares, nos gestos de mãos erguidas e lágrimas
pingadas.; de choro acre e sangrento; de gritos e ais estiolados num ar negro,
sufocante de ignescências. As chamas riram-se das gentes boas numa dança de
macabra de ambição, podridão e morte. A morte rondou, desceu e roubou gente, a
nossa gente. Ontem e hoje o meu país ardeu. Arderam os pinheiros, os
eucaliptos, os carvalhos, os castanheiros, as oliveiras e tantas, tantas
outras. Arderam as casas, os casebres, as capoeiras, canis e mais e mais. Ardeu
a gente por dentro e por fora. Ardeu a alma de um povo. Foi o último domingo de
António. Morreu queimado na sua casa, a que construirá com as suas mãos,
envolto nas labaredas vermelhas da cor do seu sangue. Morreu na asfixia enrolado
em si de mãos hirtas e dedos convulsos.
Rita ficou presa no caminho entre
mantas negras que a asfixiaram e aos filhos. Jazem na cama branca entre tubos e
emplastros de gordura. Da simplicidade de um almoço e calor parental para
frigidez translucida do hospital. Os pais da Rita choram e abanam a s cabeças
na sua imensa alma dorida. Miguel, o bombeiro, olha-nos de olhar vazio. Aqueles
olhos viram mais do que é permitido à gente deste mundo. Miguel não fala,
respira o ar amarelo do dia, apenas porque vive. Vive, perdido no horror do dia
de ontem, vive porque teve a sorte de não ser apanhado. Tanta desordem em nome
do comando. É o que pensa, é o que sente. Maria saiu do gabinete e entrou
noutro maior onde se pressupôs seguir as operações. A politica não sente, a
politica não é gente, é intenção. Não serve à gente, não resolve as crises, não
mitiga a dor, nem salvaguarda o quotidiano. Perde-se nas palavras, ditas de
promessas.
Nuno descansa. O dia foi grande.
Cumpriu. Uma desgraça. Passou o caos, passou as palavras dos dirigentes.
Palavras contritas, contidas e verdes de esperança. O único verde que remanesceu,
porém, já uivado de negro, do ar em que foram proferidas.
Esta foi a estória do meu país.
Durante ias vai-se ouvir todas as hipóteses viáveis, corretas e honestas para o
futuro. Mas será que teremos mesmo futuro? Será que no meu país o laxismo,
facilitismo, o adiar são as ferramentas que o dirigem?
M aria Teresa Soares
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