De novo no seu lugar a ver passar a noite. O
livro continua olhá-la. Prefere embrenhar-se nos seus pensamentos. Sofia gosta
desta intimidade que tem com as memórias, dão-lhe o conteúdo da vida.
Hoje em que tudo passa numa corrida,
empurrando tudo e todos, qual efeito de dominó em queda, hoje, em que parar, é
sinónimo de desaparecer, hoje, é aquele tempo em que não mais se escutam as
memórias, porque elas são feitas de nós vazios. Hoje, pensa Sofia, erguendo o
queixo acima da linha do horizonte, é o meu tempo de recordar.
As suas memórias vestem o tempo. Ei-las ali
mesmo defronte, sentadas, à espera de serem catalogadas no armário do
pensamento.
Fora numa manhã qualquer, não sabe bem o mês se Junho ou Julho,
a memória titubeia, mas sabe de certeza que era manhã, quando o pai veio
buscá-la. Veio numa visita fugaz, e levou-a. Lembra-se ainda desse dia. O pai.
A alegria de o ver foi dividida com a tristeza da despedida à mãe. O pai levou-a
no velho volvo preto. Foi sentadinha atrás nos bancos de napa bege, não havia
cintos e muito menos cadeiras. Os carros eram tão poucos. Falaram durante algum
tempo. Ela falou, fez-lhe muitas perguntas. Ele respondeu pouco. O sono
tomou-a. Embalou-se no movimento do rodar e adormeceu. Quando acordou já estava
escuro. O pai a abaná-la e a dizer-lhe:
- Maria Sofia acorda, já chegamos. Acorda
filha.
Meio estremunhada, lá se deixou levar. No dia
seguinte ,despertou num quarto que não era o seu. Deixou-se ficar muito
sossegadinha. À espera de alguém. Teve medo. Aquela sensação de vulnerabilidade,
que a acompanharia pela vida fora, sempre que se encontrava perante o
desconhecido. Naquela manhã mantinha-se quieta na cama alta, no quarto de
paredes brancas e cortinados azuis com ramos de flores de laços vermelhos.
Escutava, muito quieta os sons da casa.
Ouve passos e rapidamente fecha os olhos com força. A
porta abre-se. Alguém entra. Finge dormir. Esse alguém senta-se na cama, e
passa-lhe a mão pelos cabelos. Ouve a voz do pai murmurando baixinho: So-fi-a. Entreabre os olhos devagarinho. É o pai., é ele. Um sorriso feliz
inunda-lhe o rosto. Lança os braços em redor do pescoço aperta-o. encostando os caracóis ao rosto.
Tanto tempo. Tanta solidão de gestos. Um ano de saudade, fazia-a apertar o pescoço
do pai como se o gesto mitigasse a ausência.
O pai fez-lhe festas no cabelo e suavemente
desprendeu-se.
Já em pé olhou-a sorrindo e disse:
-Levanta-te minha preguiçosa, que hoje temos
muito que fazer.
-Onde estamos paizinho? Onde vamos? O que
vamos fazer?
-Calma. Uma coisa de cada vez.
Por esta altura, já ela saltara da cama e,
cirandava de um lado para o outro. Parecia uma mosca tonta. Até que a janela
lhe prendeu o olhar.
-Oh! Que lindo! Olha, Olha paizinho!
-Sim Sofia, é o mar.
-Paizinho onde estamos?
-Estamos na praia. Este ano vais passar as
férias de verão comigo.
-Sim, a mãezinha disse-me que eu passaria
contigo. Que vocês não vão viver mais juntos, pois não? E suspirando, - tenho
que me habituar.
Encolhe os ombros. Uma névoa rebelde faz-lhe
tremer a alegria.
-Pois é assim Sofia. E tu já és uma menina
crescida. Já percebes, o pai e mãe agora vivem longe um do outro.
-Eu sei. Eu tenho vivido só com a mãe. Tu só
me visitaste duas vezes. Eu sei.
Carlos pigarreia. Não é fácil manter uma
conversa com uma garota de oito anos. Não é fácil falar da sua vida com a sua
filha. Nada é fácil em toda a situação. Ele fora o culpado, se acaso houve
culpados. Melhor foram os dois culpados. Deixaram-se arrastar para um casamento
apenas por inércia ,e o resultado, estava bem à vista. Foram seis anos de
alheamento, de disfarce, de cansaço. Finalmente tinha tido a coragem de falar
com Alice. A reação dela deixara-o espantado. Alice, para não variar, fora de uma
verticalidade e frieza espantosa. Nada exigira, não clamara, , não chorara, não desatinara.
E assim, simplesmente,informou a família mais chegada, tratou dos assuntos que
lhe diziam respeito e serenamente como se fosse algo porque tinha sempre
esperado, reiniciou a sua vida. Alice parecia respirar uma serenidade feliz.
Algo que o deixou de inicio atónito ,em seguida quase quase humilhado e agora , ao longe, quase a admirava.
Admirar, admirar, não seria bem o caso, dado que a atitude da mulher magoou-o
bem lá no fundo, mais do que a coisa em si. Para ele, Alice sempre fora um
túmulo de surpresas, nem sempre boas, é verdade, todavia, toda aquela
naturalidade fê-lo ter a certeza, que eram os dois a desejarem pôr um ponto
final numa frase de dois sujeitos sem predicado.
Ficou Sofia.
Como ele gostava da sua filhinha. Não sabia
exactamente como a mimar, mas em todo o processo fora a ausência da garota que
o ferira mais. A solidão do afeto.
Recomeçara de novo, sozinho mas com
determinação. Sabia o que queria. Na mente delineava-se o amanhã. Sabia o que
queria. Ia lutar por isso. Os dois estavam juntos. Pai e filha.
- Que praia é esta paizinho?
As perguntas de Sofia não lhe davam tréguas.
Os pensamentos que descansassem. A sua filhinha estava ali. Que vontade de a
abraçar, de a beijar. Mas não, não, não o faria. Não seria capaz. Era algo que não
sabia explicar. Ficaria sem jeito, quase despido. Transmitir as emoções era algo
que um homem não fazia, por muita vontade que tivesse. Emoções assim às claras
e logo com uma criança!
E a falta de hábito também o tornara
desajeitado. Poucos percebiam ,que muita daquela aparente frieza ou desinteresse,
não era senão uma incapacidade, uma inibição de expressar os afetos. Sofia, porém saltitava
de pergunta em pergunta, abria os braços, rodava sobre si. Tudo isto numa
enxurrada de emoções que o deixava boquiaberto. Onde fora esta criança buscar
tamanho caudal emotivo? A ele
certamente que não, e à mãe muito menos.
Agarrou doce mas firmemente na filha. Fê-la
parar e olhou-a nos olhos.
- Pára Sofia, ainda ficas zonza. Vamos lá.
Vou chamar a Ricardina, que vai tratar de ti. É boa pessoa e tu vais gostar
dela. Prometes que vais portar-te bem?
-Sim, paizinho. Eu vou ser boazinha.
- Está bem. Espero por ti lá em baixo para
tomarmos o pequeno -almoço.
-Um beijinho, paizinho. Só um…beijinho…
- Está bem, vá lá…
Sofia esticou-se toda enquanto Jorge se
baixava. Havia uma cumplicidade de gestos. As palavras não eram necessárias.
Foi assim que aquele verão começou.
Quando acordava e saltava para o chão,
enfiava o fato de banho, bebia o leite na cozinha e corria para a praia. Mesmo
do outro lado da cancela. Ficava ali deitada na areia, ouvindo o mar que
crescia dentro dela. Corria no areal . Ali
mesmo. Molhava os pés, as pernas. Enrolava-se na areia molhada. Um croquete de
areia como lhe chamava Ricardina. Só quando ela chegava Sofia, podia ir tomar banho. Mas pertinho. Nada de
muito longe.
Ricardina tirava os sapatos pretos, espetava
sempre o dedão num gesto que nunca vira ninguém fazer e de toalhão na mão, ali
ficava, ora puxando as saias, ora girando na espuma sempre de olhar arguto, não fosse o mar roubar-lhe a encomenda. Os gestos tinham a sonoridade do seu nome. Em cada requebro, Sofia, ouvia a voz de Ricardina, ora doce, estrídula, perto e longe. Foi um verão de cheiro e sons de mar.
O fim de tarde era outra coisa. Quando o pai chegava partiam então barquito com um motorzito que roncava e vomitava o cheiro de
gasolina na esteira das águas de espuma branca. Foi assim que aprendeu o falar
do mar. Os seus segredos, sussurros e lamentos. Os dias de águas mansas e os
outros, das enrufadas. Não tinha medo. O pai dizia-lhe:
-Segura-te bem, Sofia.
- Está bem paizinho.
- Não tenhas medo.
- Não tenho paizinho, estou contigo.
- Olha Sofia, olha o sol. Olha a cor. O ouro
do mundo.
- É lindo! Mas porque é ouro?
-Porque é puro e brilhante.
- Ah! Mas ouro não é o meu fio?
-É Sofia é. Mas o sol também é. Outro ouro.
- Ah, já percebi paizinho. Há muitos ouros,
é?
- Sim, Sofia.
- O ouro da água, olha paizinho. O ouro
grande está entornar-se para o mar. Já viste? Também é ouro, não é?
-Claro que é Sofia. Vês como percebeste!
- Paizinho?!
-Sim?
-Porque é que a gente é tão pequenina?
-Pequenina?
-Sim paizinho. Olha é tudo grande, o sol, o
mar, as rochas…
-Ah, Sofia.
- Só tou a ver, só tou a olhar.
- Sofia, somos assim para podermos encaixar
nas belezas do mundo. Tal como os teus cubos do jogo. Percebeste?
-
Assim-assim. Mais ou menos.
-Sofia os teus cubos precisam de estar todos
no lugar certo para contarem a história não é?
-É…
- Pois então, nós também precisamos de
encaixar nos lugares para contarmos uma história
- Uma história? Qual? Conta!
-Sofia, o pai não te vai contar porque tu é
que a vais escrever e depois ler. Tens que crescer. É assim a história dos
grandes. Percebes?
-Hum… hum… mais ou menos. Vou pensar.
- Então pensa.
E daquelas palavras húmidas fez-se o seu
tesouro de memória. Ainda hoje abre o baú daquele verão e encontra sempre
alguma palavra que lhe dá alento para seguir em frente.
Em finais de Setembro, Sofia foi devolvida à
mãe. Lembra-se perfeitamente, lembra-se do ano 1962.
Um comentário:
Uma comovente história
no ciclo das marés
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